Ao se formular ou reformular um arcabouço curricular, sempre cabe a pergunta sobre os motivos pelos quais esta ou aquela disciplina está incluída e qual o seu objetivo na formação do profissional. Analisar a presença e os conteúdos de disciplinas de ciências sociais e humanas, enfatizando a antropologia, ensinadas em cursos de nutrição no Brasil, é o objetivo deste estudo. A título de comparação, foram estudados também alguns programas adotados nos Estados Unidos e na Inglaterra, que compõem a formação de nutricionistas e de cientistas sociais. Não se trata de um estudo abrangente sobre o ensino da nutrição; espera-se, no entanto, com ele contribuir para o aperfeiçoamento da presença das ciências sociais no ensino da nutrição.
A formação de nutricionistas brasileiros, idealizada primeiramente pela geração dos médicos nutrólogos, ocorreu no final de década de 30 e na subseqüente. O primeiro curso foi criado em 1939, no Instituto de Higiene de São Paulo, atual curso de graduação em Nutrição do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Seguiram-se, em 1940, no Rio de Janeiro, os cursos técnicos de dietistas, do Serviço Central de Alimentação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), que deram origem, em 1943, ao Curso de Nutricionista do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), atual curso de graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Em 1944 foi criado o curso de Nutricionista da Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth, atual curso de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 1948 teve início o curso de Nutricionistas da Universidade do Brasil, por iniciativa de Josué de Castro, atual Instituto de Nutrição, que alberga o curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Vasconcelos, 2002).
Outros cursos foram criados na década de 50, os quais estão entre os mais antigos: são os da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Federal de Pernambuco, do Instituto de Fisiologia e Nutrição da Faculdade de Medicina do Recife, criado pelo médico Nelson Ferreira de Castro Chaves. Até 1968 existiam seis cursos de nutrição no Brasil, e o sétimo surgiu no Rio de Janeiro, em 1968, na Universidade Federal Fluminense.
No âmago da forte expansão dos cursos superiores no Brasil, mais especificamente os de nutrição impulsionaram-se na década de 70, graças ao II Programa de Alimentação e Nutrição II (Pronan II), que continha entre suas diretrizes o estímulo à formação de recursos humanos em nutrição (MEC, 1983). Havia no Brasil, até 1979, sete cursos de nutrição, especialmente públicos, e até o final da década de 80 foram criados mais 33 cursos. Em 2003, após a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que impulsionou o ensino privado, chegou-se a 169 cursos (Calado, 2003).
Os médicos nutrólogos, que também participaram da formulação das primeiras intervenções governamentais no setor, tiveram forte influência na formação de uma rede de especialistas também imbricada na constituição dos primeiros cursos de nutrição. A ênfase no processo de formação do nutricionista nas suas origens combinava, em amplo sentido, tanto a capacitação de um profissional para a atuação na dietoterapia/nutrição clínica quanto a alimentação institucional/alimentação coletiva (Vasconcelos, 2002).
Na conformação de um pensamento social sobre a alimentação como uma questão coletiva, sobressaíram-se também os nutrólogos representados por um grupo de intelectuais, entre os quais se destacam Josué de Castro, Jamesson Ferreira Lima, Nelson Chaves e Ruy Coutinho, entre outros que contribuíram para a conformação do campo da nutrição no Brasil, com estudos e debates sobre a fome, os problemas alimentares e nutricionais e as intervenções governamentais a respeito. Josué de Castro, numa perspectiva que problematiza a autonomia entre a dimensão biológica e social, revela, segundo os seus estudiosos, vários matizes no seu pensamento sobre a alimentação, incluindo a relação entre eugenia, raça e nacionalidade; a importância da alimentação na constituição do trabalhador brasileiro; a geografia da fome, o círculo vicioso da pobreza, nos diferentes momentos de sua produção, numa nítida perspectiva de entrecruzar os saberes (Magalhães, 1997). Apesar desse debate, predomina na formação dos nutricionistas a vertente biologista da nutrição, que oculta a dimensão social, reduzindo-a aos processos fisiológicos e individuais; foi o que concluiu Bosi (1988), ao estudar os currículos de graduação em nutrição após 1970.
O currículo mínimo estabelecido em 1964 e predominante até o engendramento das reformas curriculares, no final da década de 70 e mais enfaticamente nos anos 80, era constituído por dois grupos de disciplinas: as básicas (anatomia, histologia, fisiologia humana, bioquímica, bromatologia, dietética, psicologia e microbiologia) e as profissionalizantes (fisiopatologia da nutrição, técnica dietética, arte culinária, administração dos serviços de refeições, sociologia e economia aplicadas, dietoterapia, puericultura e dietética infantil, higiene e administração de saúde pública, pedagogia aplicada à nutrição, estatística e inquéritos alimentares). Criada em Bogotá em 1973, a Comissão de Estudos e Programas Acadêmicos de Nutrição e Dietética na América Latina (Cepandal) passou a servir de referência para as discussões curriculares que se sucederiam na década seguinte.
O Diagnóstico Nacional dos Cursos de Nutrição (1981), realizado pela Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC), compara os currículos das universidades brasileiras com o proposto pela Cepandal e encontra adequada carga horária das disciplinas das áreas biológica e multidisciplinar, as quais apresentavam-se acima das recomendações, enquanto que as disciplinas das áreas de ciências sociais e econômicas e de educação em saúde pública encontravam-se abaixo do proposto. Lembrando o afirmado por Bosi (1988) a respeito das conclusões desse diagnóstico, tal desequilíbrio entre as áreas leva a uma baixa compreensão do social na formação do nutricionista, acarretando um hiato na articulação do biológico com o social.
A necessidade de formar um profissional criativo e inquiridor, com capacidade de articular os aspectos biológicos e sociais, justificou a recomendação de se introduzir as disciplinas metodologia científica, antropologia e filosofia nos currículos de nutrição e a implementação das já existentes, como sociologia, economia e psicologia (MEC, 1983). Tensões entre as perspectivas social e biológica se expressaram também em diferentes instâncias de discussão sobre o perfil do nutricionista (Lima, 1984; Febran, 1987; Ypiranga & Gil, 1987; PUC-Campinas, 1988).
Recentemente, Motta, Oliveira e Boog (2003) analisaram o perfil do profissional de 42 cursos de nutrição divulgados em sites das instituições que oferecem graduação em nutrição. Identificaram escassas menções sobre o caráter crítico e o compromisso com as transformações sociais. A formação ética e humanística apareceu como um dos itens menos valorizados na divulgação dos cursos; predominou a identificação do nutricionista como profissional da saúde e sobretudo a valorização do mercado de trabalho.
Procuramos aqui verificar como as disciplinas das ciências humanas e sociais, particularmente a antropologia, fazem parte dos currículos dos cursos de nutrição. O atual debate enseja essa discussão, apesar dos esforços acumulados nesse sentido anteriormente, sem que uma análise específica sobre aquelas disciplinas tenha sido efetuada.
Procedimentos metodológicos
Para o estudo da composição curricular e da carga horária das disciplinas oferecidas, foram analisados os cursos de nutrição fundados até o inicio dos anos 80 (Asbran, 1991), que dispunham daquelas informações divulgadas na Internet na primeira quinzena de março de 2002. Nessas condições encontramos informações dos cursos da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Pará (UFPA), Pontificia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), Universidade de Ijuí (Unijuí) e Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
A carga horaria disciplinar dos currículos dos cursos de nutrição foi analisada por áreas de conhecimento – definidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) –, e a presença de disciplinas obrigatórias e eletivas/optativas da área de ciências humanas foi identificada. Não foi incluída a carga horária das disciplinas eletivas/optativas e de educação física e também da disciplina voltada para monografia da UFPA. Trabalhamos, entretanto, com a carga horária total referente às disciplinas obrigatórias, excluindo as mencionadas.
As seguintes áreas de conhecimento foram identificadas: 1) ciências humanas (H): sociologia, filosofia, antropologia, geografia e psicologia; 2) ciências biológicas (B): bioquímica, farmacologia, parasitologia, microbiologia, fisiologia, imunologia e biologia geral; 3) ciências sociais aplicadas (SA): administração, economia, comunicação, demografia e outras; 4) ciências da saúde (CS): bromatologia, farmacologia, epidemiologia, saúde pública e outras; e 5) ciências exatas (E): matemática, química e estatística, entre outras. Nas disciplinas da área da saúde não foram incluídas as específicas da área de nutrição, as quais foram separadas entre disciplinas profissionalizantes (P) e profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas (PS): nutrição em saúde pública e educação nutricional. As disciplinas que não se enquadravam nesses grupos foram chamadas de outras (O): língua portuguesa, antropologia teológica, práticas de formação etc. A carga horária das disciplinas de estágio foi dividida entre estágio profissionalizante (EP) e estágio profissionalizante com interface com as ciências sociais e humanas (EPS): estágio em saúde pública.
Procurou-se também identificar e discutir os conteúdos e metodologias de ensino de algumas disciplinas das ciências sociais e humanas, inclusive de antropologia, nos cursos de graduação em nutrição. Foram analisados os conteúdos de programas disponibilizados por coordenadores ou professores dos cursos mais antigos de nutrição, fundados até o início da década de 80. A cada um dos cursos foram solicitados os programas de ensino das disciplinas de ciências sociais e humanas. Incluem-se nessa parte do estudo os programas da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), antiga Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara (Fefieg), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal Fluminense (UFF).
Em relação aos cursos internacionais, tomaram-se para análise alguns cursos ministrados por universidades norte-americanas e inglesas publicados pela Association for the Study of Food and Society, em 1990, na obra Teaching Food and Society: a collection of syllabi and instructional materiais. No contexto norte-americano, a presença da antropologia especializada nos assuntos de nutrição e alimentação, bem como o acúmulo significativo de pesquisas sobre antropologia e alimentação na Inglaterra e o seu ensino na formação de nutricionistas e dos próprios cientistas sociais em ambos os países, constituem experiências importantes, que podem servir como contrapontos à nossa análise. A mencionada publicação incluiu os programas de ensino ministrados por universidades norte-americanas, dos quais cinco eram cursos de sociologia ou antropologia da alimentação e três de nutrição, que incluíam conteúdos de cultura e alimentação ou nutrição, e outros cinco cursos, que se referiam à geografia; ao serviço social; às ciências políticas; ao folclore; à ecologia e à política em relação à fome mundial. Foram também considerados dois cursos ministrados por universidades inglesas relacionados à sociologia e à antropologia da alimentação.
Cursos de nutrição brasileiros e distribuição de cargas horárias
Amplas variações de carga horária total (diferença de até 1.270 horas) e de horas atribuídas por área de conhecimento são encontradas entre os cursos analisados, confirmando o estudo de Calado (2003), no qual se observou que 45% dos cursos de nutrição no Brasil têm entre 3.000 e 3.500 horas e 37% entre 3.500 e 4.000 horas, enquanto em nosso estudo a variação foi de 2.520 a 3.790 horas. Esse dado interfere nas proporções de cargas horárias dos cursos que estão sendo considerados aqui com base na análise percentual das cargas horárias por área de conhecimento (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Distribuição percentual da carga horária por áreas de conhecimento de cursos de nutrição – 2002
Entre a carga horária mínima e a máxima há variações importantes: as disciplinas profissionalizantes tinham sua carga horária variando entre o mínimo de 630 horas e o máximo de 1.584 horas, e as disciplinas profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas tiveram essa variação com o mínimo de 90 horas e o máximo de 210. A variação de carga horária das disciplinas de estágio profissionalizante foi de 180 a 880 horas; nas profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas foi de 120 a 306 horas.
Na área de ciências humanas, houve uma diferença de 195 horas entre a carga horária máxima e a mínima, e na de ciências sociais aplicadas, de 165 horas nos cursos examinados. A participação da carga horária das disciplinas da área de ciências humanas foi em média de 4,98% e oscilou entre 2,62% e 8,33% da carga horária total, representando uma variação de 90 a 285 horas. As ciências sociais aplicadas têm em média 3,6% da carga horária total, variando entre 0,99% e 5,43%, o que significa variações nos valores de carga horária entre 30 e 195 horas. Nos currículos dos cursos de nutrição estudados, essas disciplinas são representadas por economia, desenvolvimento da comunidade e orientação bibliográfica, entre outras. Esta última, ainda que classificada nessa categoria, não aborda o conteúdo de ciências sociais aplicada tal como o concebemos aqui. Apesar da diferença de procedimentos metodológicos, o Diagnóstico dos Cursos de Nutrição (MEC, 1983) já apontava uma defasagem de disciplinas que compunham a área de ciências sociais e humanas em relação ao currículo proposto pela Cepandal (Opas, 1979), que recomendava 8% da carga horária para as disciplinas de ciências sociais e econômicas.
As ciências exatas, ainda segundo o Gráfico 1, ocupam em média 3% da carga horária dos cursos, chegando ao máximo de 7,6%, representados pelas disciplinas química, química orgânica, estatística, bioestatística e matemática, devendo-se observar que a tendência a incluir disciplinas da área de ciências exatas é recente nos cursos. Observa-se a mesma tendência com a categoria ‘outras’ disciplinas, representadas por língua portuguesa e práticas de formação, entre outras cujas cargas horárias oscilam do mínimo de 15 horas ao máximo de 272 horas, perfazendo a média de 90 horas para o conjunto dos cursos estudados.
A área de ciências biológicas ainda tem um peso importante de participação na carga horária curricular, somando 19,4% em média a sua participação na carga horária total dos cursos, a qual representa o mínimo de 492 (13,10%) e o máximo de 780 (28,57%) horas. As ciências da saúde (saúde pública, epidemiologia, farmacologia e outras) dispõem em média de 7,17% do total das horas curriculares, sendo que a carga horária mínima foi de 90 (3,26%) e a máxima de 420 (12,12%) horas.
As disciplinas profissionalizantes perfazem em média 33,2%, oscilando entre o mínimo de 25,0% e o máximo de 42,1% da distribuição percentual da carga horária. As disciplinas profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas (nutrição em saúde pública e educação nutricional) somam em média 4,7% da carga horária total, variando entre o mínimo de 3,26% e o máximo de 6,06%.
As disciplinas de estágios profissionalizantes ocupam em média 15,2% da carga horária curricular, com variações expressivas de 6,52% (180 horas) ao máximo de 23,2% (880 horas). Os estágios profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas ocupam 6,6% da carga horária total, com o mínimo de 3,9% (120 horas) e o máximo de 9,9% (306 horas). Deve-se observar que, na categoria de disciplinas de estágio, separamos os estágios com interface com as ciências sociais e humanas, do mesmo modo que o fizemos para as disciplinas teóricas por entendê-las nas suas interfaces com elas.
Pode-se concluir que na formação básica do nutricionista pesam as disciplinas das áreas biológicas e da saúde, que somam em média, conjuntamente, 26,57% da carga horária total, enquanto as ciências humanas e sociais respondem em média por apenas 8,58% e as disciplinas profissionalizantes (P, PS, EP, EPS) pesam 59,68% do total curricular, marcando um perfil mais centralizado na formação técnica, em que a saúde pública (PS e EPS) participa com 11,32% da carga horária curricular, restando portanto os 5,66% para as áreas de exatas e outras. Embora essa análise quantitativa não seja suficiente para qualificar o perfil da formação profissional do nutricionista, ela aponta em termos disciplinares as tendências que a demarcam. Serão retomados a seguir a análise de quais disciplinas estão presentes nos currículos e, posteriormente, os conteúdos ensinados em alguns cursos, conforme mencionado anteriormente.
As disciplinas de ciências humanas e sociais
Em mais da metade dos cursos analisados, há disciplinas obrigatórias e optativas/eletivas de antropologia. Em apenas dois deles tratava-se de antropologia da alimentação (Quadro 1). Sociologia e psicologia foram disciplinas predominantes da área de humanidades nos cursos de nutrição. Como recomendado pelo Diagnóstico Nacional dos Cursos de Nutrição de 1981, disciplinas como iniciação filosófica e metodologia da pesquisa, entre outras da área de filosofia, deveriam ser incorporadas, e fazem parte do currículo de apenas cinco dos 12 cursos estudados. Disciplinas da área de geografia fazem parte do currículo de três cursos, sob a designação de Geografia econômica e aplicada à nutrição e América Latina e desenvolvimento sustentável.
Ainda que não seja expressiva, pode-se observar pela denominação das disciplinas a tendência de alguns cursos a aplicá-las à nutrição, embora pareça prevalecer a aproximação mais disciplinar do que interdisciplinar, dificultando a interlocução das ciências sociais com a formação profissional do nutricionista; elas permanecem mais associadas à formação básica, como assinalado.
Nas diretrizes curriculares propostas pelo Conselho Nacional de Educação no contexto da LDB, as disciplinas das áreas biológicas e da saúde, das ciências da alimentação, nutrição e alimentos devem compor a formação do profissional, voltadas aos aspectos biofísicos, psicológicos, sociais e culturais da população, atendendo às demandas regionais e nacionais (Motta, Oliveira & Boog, 2003). Vale perguntar até que ponto essas composições curriculares respondem às recomendações dessas novas diretrizes, na medida em que refletem reformas anteriores, lembrando que esse grupo de cursos estudados é formado por cursos mais antigos e já consolidados.
Talvez a flexibilidade proposta pela nova LDB deva ser cuidadosamente estudada para dar um sentido mais articulado às disciplinas que compõem o currículo da área, evitando imprecisões e dispersões curriculares.
Conteúdos de ensino de ciências sociais nos cursos de nutrição
Nos seis cursos de graduação em nutrição mais antigos no Brasil que fazem parte desta etapa do estudo (USP, UniRio, Uerj, UFRJ, UFBA, UFPE e UFF), essas disciplinas são ministradas por professores tanto pertencentes aos próprios cursos como a departamentos de ciências sociais e humanas.
O ensino de disciplinas específicas de sociologia (geral e aplicada) esteve presente em cinco cursos, sendo que apenas um associava conteúdos sociológicos aos da economia, intitulando-se ciências sociais e econômicas da nutrição. Três cursos ensinavam disciplinas de antropologia social e de psicologia social, enquanto que economia e geografia econômica constavam em dois cursos.
Os conteúdos de sociologia, sempre de natureza introdutória, pouco se articulavam com uma leitura sociológica das questões relativas à nutrição e à alimentação, centrando-se apenas na especificidade da sociologia (seu objeto, objetividade, totalidade), nas correntes clássicas do pensamento sociológico (Marx, Weber e Durkheim), com reduzida incorporação de autores contemporâneos ou de outras correntes de pensamento. A conceituação básica se dirigia a tópicos como estrutura social e sistema de estratificação social; mudança social; ideologia e sistemas de valores; teoria da ação social; interação e socialização, burocratização e organização social, indivíduo e sociedade, entre outros.
Apenas alguns cursos inseriam conteúdos de sociologia aplicada à nutrição, fazendo interlocução interdisciplinar da sociologia com a nutrição ou saúde pública, o que se dava conforme as clientelas dos cursos. Nesse caso, as relações estabeleciam-se tanto pela associação entre saúde e sociedade, debatendo temas como políticas e instituições de saúde, as conjunturas e condições de saúde, quanto pela articulação entre nutrição e sociedade, quando se discutiam alimentação/ nutrição como componentes das políticas sociais governamentais, o problema da fome no Brasil e as suas conseqüências, os padrões de alimentação, a estrutura agrária, a produção e o consumo de alimentos e suas transformações e conseqüências, de acordo com o processo de industrialização.
Residualmente, outros conteúdos, designados de sociologia aplicada, eram discutidos, tais como os movimentos sociais; gênero e família e a condição da mulher; raça e etnia; exclusão social e pobreza; relações entre Estado e sociedade; violência. Refletiam processos sociais recentes da sociedade brasileira, com baixa adaptação dos conteúdos às questões específicas da nutrição, tratando de problemas sociais sob o ângulo da sociologia da intervenção.
Apenas um curso de sociologia aplicada à nutrição demonstrou preferência por organizar grupos de alunos para realizar trabalhos de campo em bairros periféricos, sem prender-se exclusivamente às questões da nutrição/alimentação, mas a um conjunto de problemas sociais, vigentes nos centros urbanos, como os meninos de rua; ambulantes; asilos hospitalares; refeitórios populares, entre outros.
Reportando-se às experiências de ensino das ciências sociais nos cursos de graduação de nutrição, Adorno (1995:141) referiu-se à perspectiva de “transposição de mundos” ou ao “contato entre mundos” – o outro, enfim –, à medida que introduziu, nos anos de 1987 e 1989, atividades de campo que julgou adaptadas para alunos de cursos de graduação, dado o seu perfil etário e ritmo. São atividades que estimulam um olhar sobre o ‘sentido das coisas’, o deslocamento para as experiências distantes do seu universo, em que se desenrolam contatos, conversas que muitas vezes incluem a comida, o alimento, perseguidas pelas técnicas de nutrição. Trata-se de uma aproximação com a perspectiva antropológica.
Os cursos de antropologia social, ministrados por apenas três dos programas examinados, introduziram trabalhos de campo, envolvendo pequenos projetos de pesquisa ou observações, o que implica ir ao encontro do ‘outro’ nos seus espaços e contextos, uma experiência que quer ser transformadora. Os fundamentos teóricos e metodológicos da antropologia – juntamente com a discussão sobre os hábitos alimentares, as relações entre comida e simbolismo; o corpo, saúde e doença; dietas alimentares, cultura e saúde; relação entre gênero e alimentação, destacando o papel feminino na provisão da alimentação – compõem a reflexão antropológica da alimentação, completada em alguns programas pela discussão das relações entre nutrição e sociedade (desigualdades sociais na alimentação; os contextos socioeconômicos e culturais da alimentação cotidiana, as mudanças nos padrões de consumo).
Das disciplinas profissionalizantes com interface com as ciências sociais e humanas (nutrição em saúde pública e educação nutricional), esta última é a que faz maior interlocução com a antropologia. Embora elas não tenham sido objetos de análise, o conteúdo de um programa de educação nutricional obtido foi considerado para se ter um exemplo dessa interlocução, ficando a sugestão de uma análise mais detalhada para pesquisas futuras. O programa estudado enfocou as práticas educativas dos nutricionistas dirigidas à clínica, à saúde pública e à coletividade, fazendo interlocução com a abordagem socioantropológica da alimentação, em especial, para compreender as implicações de vários fatores dessa natureza que afetam as práticas alimentares, ao lado das especificidades de classe. Após reflexões introdutórias dessa natureza, eles se concentraram na educação alimentar, nos seus fundamentos, teorias e metodologias de intervenções utilizadas, elucidando ainda a história da institucionalização dessas práticas educativas no Brasil.
Ao lado dos programas de ensino preocupados com a intervenção do nutricionista, dois cursos destinavam-se ao desenvolvimento de comunidade, visando a instrumentalizar os alunos para planejar e executar intervenções sociais, mediante a participação social e o desenvolvimento da cidadania.
Apenas dois programas se referiram aos conteúdos de natureza econômica e à geografia econômica, introduzindo conceitos econômicos sobre produção/ circulação e consumo de alimentos; especificidades da produção alimentar no Brasil e da estrutura agrária e características da população.
Três programas de ensino de psicologia apresentaram os fundamentos conceituais de suas diferentes abordagens (teoria gestalt; psicanálise; cognitivismo; cultura e personalidade) ao lado da discussão dos distúrbios comportamentais alimentares, tais como anorexia, bulimia e obesidade, abordados basicamente, do ponto de vista do indivíduo, como problemas psicológicos.
Programas de ensino de universidades norte-americanas e inglesas
Programas de ensino das universidades norte-americanas
Tomamos como objeto desta análise, primeiramente, os conteúdos e metodologias de ensino empregadas pelos sete programas de sociologia ou antropologia da alimentação ministrados pelas universidades norte-americanas (universidades do Texas, de Harvard, Michigan, Millersville, Indiana, Pacific e Aquinas College).
Todos os programas foram unânimes em incluir os assuntos cultura, alimentação e nutrição; hábitos e os comportamentos alimentares. O primeiro subconjunto de assunto incluiu os tabus e as aversões alimentares; alimentação e simbolismo ou comunicação; construções sociais e conceitos sobre a alimentação; padrões culturais, normas e valores. Discussões sobre antropologia ou sociologia da alimentação como item específico introdutório dos cursos apenas fez parte de três programas ministrados por cientistas sociais, que apresentaram os fundamentos teórico-metodológicos da abordagem da alimentação feita com base em autores como Mary Douglas (1966, 1974, 1979), Marwin Harris (1985, 1987) e Clifford Geertz (1960), entre outros, representantes respectivamente das perspectivas estruturalista e culturalista (materialista e interpretativa).
Quanto aos hábitos alimentares, há referências à sua constituição e formação pela via do processo de socialização nos grupos primários, principalmente na família, complementada pelos grupos secundários, como a escola. Foram abordadas as crenças e as ideologias alimentares influentes nos hábitos alimentares; as diferenças entre culturas, que neles se expressam, as suas mudanças, juntamente com as cozinhas nacionais, regionais e internacionais. Também foram feitas referências aos hábitos alimentares, associados aos grupos religiosos e a grupos específicos (vegetarianos e naturalistas), que proliferam na sociedade.
Destacaram-se ainda discussões sobre os hábitos específicos de classes e segmentos sociais, bem como a relação da alimentação com os regionalismos e as identidades sociais, juntamente com a tendência da padronização da dieta, na sociedade urbano-industrial, convivendo ao lado das persistências de crenças e práticas tradicionais alimentares. Os hábitos alimentares também foram analisados à luz dos processos socioeconômicos e culturais, que os mantêm ou transformam.
Os comportamentos alimentares, por sua vez, referiam-se à comensalidade; às normas e etiquetas; às trocas e doações de alimentos; aos rituais de grupos específicos, religiosos, étnicos e yuppies, em processo de ascensão social.
Quatro programas discutiram a alimentação numa perspectiva histórica, incluindo o problema mundial da alimentação, fome, crise alimentar e desnutrição, enfocando causas e conseqüências desses problemas na sociedade norte-americana e em outros países terceiro-mundistas. A análise histórica da alimentação deu-se sob forte influência de autores filiados à história social ou à Escola dos Annales, destacando-se referências a autores como Braudel (1985), Alexander e Kisbán (1986) e Tannahil (1973), entre outros.
Os conteúdos dos demais programas de sociologia e antropologia são dispersos; seus temas ora se aproximaram de desordens, aversões, restrições e distúrbios alimentares e da alimentação na família (socialização, regras e normas de consumo, divisão sexual do trabalho doméstico no preparo dos alimentos e sua distribuição no espaço doméstico), ora se referiram à ecologia e ao sistema alimentar norte-americano e à ordem social.
Os quatro programas de ensino intitulados ‘de nutrição’ eram bastante heterogêneos e foram ministrados pela Pensylvania State University, pela University of Connecticut, pela San Jose State University e pela Michigan State University. Um deles enfocou o sistema alimentar norte-americano, entendido nas suas dimensões histórica, cultural e tecnológica. Introduziu ainda a discussão dos processos de produção agrícola e industrial, moldando os hábitos dos consumidores, como também as contemporâneas modalidades de produção/consumo de complexas cadeias alimentares, envolvendo supermercados, os fast-food franchises, os movimentos alternativos, juntamente com os riscos da incorporação de novas tecnologias nos alimentos.
Outro curso analisou os padrões culturais, considerando as influências étnicas, religiosas e outros fatores culturais, sempre presentes na moldagem das culinárias de vários países, como França, China e Estados Unidos. Os demais programas interessaram-se pela interação da nutrição com a cultura, examinando os fatores socioeconômicos, culturais e étnicos, que interferem nas preferências e nos padrões alimentares de indivíduos e grupos. Ao lado disso, abordaram a produção e a tecnologia da alimentação, juntamente com os valores associados à alimentação, à modernização da estrutura alimentar e às relações entre cultura e alimentação, do ponto de vista da antropologia cultural. Foram também considerados o simbolismo, as religiões e suas relações com a alimentação, juntamente com os vários fatores culturais associados às escolhas e ao preparo dos alimentos.
Esses últimos programas são exemplos interdisciplinares que reconhecem, de um lado, a presença de necessidades biológicas atendidas pela nutrição, e de outro a necessária associação da nutrição com as dimensões socioculturais, esforçando-se ainda para integrar o nível macro (produção, consumo e distribuição dos alimentos, tecnologias e dimensões históricas) com o micro (comportamentais) de indivíduos e grupos étnicos, religiosos ou de outros segmentos sociais, procurando compreender as suas escolhas alimentares, os hábitos e as suas formas de preparar os alimentos.
Além da sociologia e da antropologia, outros cursos de ciências sociais incluem discussões sobre a alimentação. O curso de geografia ministrado pela Simon Fraser University abordou temas como os condicionantes ambientais da alimentação; nutrição e biologia; sociologia, ideologia e cozinhas; história e política econômica da alimentação; tecnologias do preparo dos alimentos; regionalização da cultura alimentar. Um curso de ciência política, ministrado pela San Diego State University, centrou-se nas questões da fome e da pobreza nos Estados Unidos e no Terceiro Mundo e também na agricultura norte-americana, no comércio internacional e nas alternativas de política de ajuda alimentar. Na Brown University, encontramos um curso de ecologia sobre a fome mundial e finalmente um curso de serviço social, ministrado pelo Department of Social Work, o qual tomou a fome como objeto de política social.
Os programas de ensino de duas universidades inglesas
Os conteúdos dos programas ensinados em duas universidades inglesas (Oxford Polythecnical e London University) serão examinados a seguir.
O curso ministrado pela Polithecnical Oxford University privilegiou os enfoques sociológico e histórico, cujos conteúdos incluíam: 1) a história da alimentação nos diferentes períodos, enfocando-se produção, distribuição, preparo e consumo de alimentos; 2) seleção, preferências e hábitos alimentares, juntamente com as ideologias que os moldam, ligadas aos movimentos religiosos, de saúde e naturalista, como também outros fatores socioculturais e econômicos, influenciando, na sociedade urbano-industrial, a seleção, as preferências e os hábitos alimentares; 3) a sociologia da comida e da hospitalidade, que discutia os assuntos ligados à linguagem dos alimentos, à relação entre a cozinha e a sociedade, as funções sociais da alimentação, o significado de gênero e a divisão sexual do trabalho, e finalmente 4) as implicações práticas da alimentação.
Na London University, os conteúdos centravam-se principalmente nos processos de produção, distribuição e consumo, combinando as micro e as macroanálises. Dessa forma, não era esquecida, na realização do consumo alimentar, a importância da família, da divisão sexual do trabalho no preparo dos alimentos e as questões associadas ao gênero, à comensalidade na distribuição dos alimentos, ao lado dos elementos ecológicos, cognitivos e simbólicos que permeiam a alimentação. Mudanças da dieta localizadas tanto no processo de produção, distribuição e consumo quanto na urbanização eram consideradas, juntamente com a avaliação de projetos alimentares e a análise das preferências e da racionalidade, impingidas aos comportamentos pelas intervenções que também suscitam reflexões éticas e o repensar a educação nutricional à luz das contribuições antropológicas.
Metodologias de ensino adotadas
Nos programas de ensino nacionais, prevaleceram as aulas expositivas com reduzida incorporação de outras metodologias, exceto naqueles que fizeram uma ligação com a sociologia da intervenção, parcialmente voltada para os problemas nutricionais. Nos cursos de antropologia, trabalhos de campo, execução de projetos de pesquisa ou observações ao lado de aulas expositivas foram as metodologias mais adotadas.
As metodologias de ensino adotadas em quase todos os programas norte-americanos examinados utilizavam seminários e aulas expositivas, associados a um conjunto de atividades práticas, compostas de estudos e reflexões críticas sobre temas; elaboração de relatórios de visitas ou a realização de pequenos exercícios de pesquisa, com o uso de metodologias empregadas pelas ciências sociais (qualitativas e quantitativas), feitas sobre temas específicos sugeridos pelos professores e escolhidos pelos alunos. Entre esses exercícios estavam a realização e a análise de entrevistas feitas mediante roteiros sobre os hábitos e preferências alimentares ou a realização de textos em grupo mediante pesquisa bibliográfica, capazes de comparar a alimentação de diferentes grupos étnicos.
Alguns exemplos de assuntos sugeridos para as pesquisas incluíam um repertório dos menus cotidianos de diferentes categorias sociais, segundo sexo, idade, classe social, etnias, ciclos de vida e eventos comemorativos; rituais alimentares religiosos; restrições e tabus associados à alimentação.
Os programas de nutrição se valiam de exercícios, extraídos de casos clínicos ou de situações envolvendo intervenções associadas ao combate à desnutrição, de tal forma que era solicitada dos alunos a reflexão crítica sobre as propostas formuladas ou a busca de alternativas para torná-las mais efetivas. Exercícios também estimulavam discussões sobre as implicações éticas e de comportamento de certas categorias de doentes (diabéticos) em relação à alimentação.
Entre as metodologias didáticas empregadas nos programas ingleses, destacaram-se os seminários, a elaboração de papers pelos alunos, a partir da escolha de assuntos abordados nos cursos; eles também eram acompanhados pelos professores em discussões em pequenos grupos. Incluía-se ainda a capacitação nos métodos de pesquisa social, aplicados a assuntos bem circunscritos, cujo desenvolvimento se fazia durante o curso.
Conclusão
A presença de uma ampla variedade de disciplinas das áreas de ciências humanas e sociais nos currículos dos cursos de nutrição no Brasil, analisados na primeira parte deste estudo, insinua concepções distintas do que se espera da participação dessa área do saber na formação do nutricionista. Tanto no que diz respeito à presença de disciplinas quanto no que se refere à distribuição de sua carga horária, observa-se dispersão da composição disciplinar dos cursos, que mostram frágeis elos com a formação do nutricionista. Os conteúdos disciplinares também reforçam essa fragilidade e a falta de clareza do que se espera dessa formação, que se volta, predominantemente em algumas disciplinas, para uma formação básica disciplinar das ciências sociais e humanas. Portanto, parece insuficiente somar um conjunto disperso de disciplinas de áreas cujo papel na formação e na prática profissional do aluno não se explicita.
Nesse sentido, a conformação daquelas disciplinas encontrada aqui parece mais indicar uma fragmentação e uma agregação aleatória do que um corpo mais estruturado, com disciplinas que foram adicionadas ao currículo, talvez mais por preocupação em responder às exigências formais sobre sua presença do que por esforços efetivos de integrá-las mais sistematicamente na formação do futuro profissional. Incorporadas como componentes periféricos, as disciplinas nem sempre se articulam com a formação do profissional que capacite os alunos para uma visão interdisciplinar da alimentação humana. Apesar dos problemas assinalados na inserção das ciências sociais e humanas nos currículos de nutrição, reconhecemos a importância dessas disciplinas para a compreensão mais ampliada de seu próprio objeto, bem como para enriquecer e instrumentar os nutricionistas para equacionarem a pertinência das intervenções nutricionais individuais ou coletivas.
Entretanto, concordando com as observações feitas por Bosi (1996), a carga horária e a presença de disciplinas nos currículos podem ser superficiais e inespecíficas, na medida em que podem se compor como uma ‘colcha de retalhos’ de uma série de disciplinas ministradas superficialmente, com problemas de seqüência de conteúdos e de pertinência à prática dos futuros nutricionistas – o que se aplica tanto às disciplinas básicas como às demais.
A presença das disciplinas das áreas de humanas e sociais, tal como encontramos neste trabalho, reflete a herança do currículo mínimo estabelecido pelo MEC e que vingou até que as reformulações curriculares desencadeadas na década de 80 procurassem atender às novas recomendações derivadas do Diagnóstico Nacional dos Cursos de Nutrição (1981). Mesmo assim, havia um padrão curricular dos cursos de nutrição, e as mudanças direcionavam-se ao currículo proposto pela Cepandal. A nova LDB flexibilizou sobremaneira os currículos e o entendimento da participação disciplinar das diferentes áreas. É também possível que a flexibilidade proposta por essa legislação tenha concorrido seriamente para a dispersão dos conteúdos e a definição das disciplinas que compuseram os currículos de forma aleatória.
Como sugerem os programas examinados aos quais se teve acesso, a presença do ensino das ciências sociais e humanas relacionadas à alimentação não se restringe aos cursos de nutrição nos Estados Unidos e na Inglaterra. O crescente interesse das ciências sociais por esse tema parece ser amplo e abrangente, integrando várias dimensões e perspectivas de abordagem da alimentação, que se apresentam como especialização, gerando pesquisas e atividades de ensino sobre o tema, tanto na formação de futuros cientistas sociais como na de nutricionistas. Os conteúdos ensinados nos cursos internacionais são menos dispersos e tomam a alimentação ou a nutrição como objetos centrais de reflexão e ensino.
No caso brasileiro, percebe-se a grande heterogeneidade nos enfoques e a dissociação dos conteúdos das ciências sociais em relação às questões associadas à alimentação na sua totalidade e complexidade. Com raras exceções, os programas se preocuparam em promover a interlocução interdisciplinar da nutrição com as ciências sociais, o que demanda esforços de reconstrução dos conteúdos ensinados e atualizações bibliográficas, sabendo-se de sua escassez no Brasil, o que pode enriquecer e atualizar os conteúdos de ensino, em especial da antropologia.
Além desse tipo de dificuldade, certamente persistem resistências, no âmbito da nutrição, à abertura de um diálogo mais estreito com as ciências sociais e humanas, tidas como ‘desinteressantes’ e com menor status diante das reflexões e das pesquisas nutricionais que têm no laboratório e na clínica as suas principais fontes, contrapostas, portanto, àquelas que se valem de outras metodologias qualitativas, que são históricas, ideológicas e por muitas vezes ‘subjetivas’, porque lidam com os significados e sentidos das coisas, que se interpenetram nas técnicas. Também da parte dos cientistas sociais que são chamados aos cursos de nutrição, talvez persistam ainda idéias de que as questões alimentar e nutricional são objeto secundário de reflexão para as ciências sociais, não despertando interesse mais substantivo, o que dificulta a sua capacitação para essa área de conhecimento.
Somente à medida que reconhecermos a complexidade e a abrangência da alimentação humana, que requer a conjugação das ciências biológicas com as sociais e com a ampliação dos esforços cooperativos na pesquisa, nas discussões e no ensino, entre cientistas sociais e nutricionistas, talvez seja possível começar uma caminhada, na qual as idéias preconcebidas se dissipem e reconstruam passo a passo novas perspectivas na produção do conhecimento e no ensino, em que as ciências sociais possam se inserir de modo mais orgânico e homogêneo.
Um dos desafios que se apresentam é a articulação do corpo de conhecimentos que caracteriza as habilidades do nutricionista com as abordagens da alimentação e suas dimensões socioculturais, econômicas e políticas, que podem contribuir positivamente tanto nas intervenções quanto na análise da alimentação e da nutrição como resultantes daquelas dimensões, que certamente se completam com sua expressão biológica.
Outro desafio é viabilizar uma proposta curricular que inclua e contamine o estudante com problemas que transponham barreiras disciplinares, superando a dicotomia das áreas biológicas e humanas, colocando-as em diálogo. Isso vai ao encontro de uma proposta interdisciplinar na pesquisa e no ensino, particularmente com a ampliação e o aperfeiçoamento das metodologias de ensino.
Um elenco de disciplinas pode constituir diversas bagagens de conhecimento, cada qual com seus instrumentos que remetam a conteúdos disciplinares específicos. Todavia, devem-se buscar olhares que transcendam os instrumentos e seus limites. Ainda assim, é insuficiente somar os diferentes olhares de maneira fragmentada e compartimentada, tornando-se necessário reconstruir programas disciplinares que integrem objetos sob diferentes olhares capazes de redefini-los, evitando-se as sobreposições disciplinares que se hierarquizam, mediante a supremacia de um saber sobre o outro. Conseqüentemente, as práticas pedagógicas requerem redefinições capazes de articular, em torno de temas ou problemas específicos, as perspectivas teórico-conceituais e práticas. Assim, é pertinente focalizar no ensino problemas que se tornam, simultaneamente, fontes de reflexão teórica e prática, em que o exercício da pesquisa ou da intervenção será estimulado na formação do aluno.
Referências Bibliográficas
ADORNO, R. C. F. A escola, o campo, a diversidade e o jogo: as ciências sociais e as trilhas do ensino em uma instituição de saúde pública. In: CANESQUI, A. M. (Org.) Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, Abrasco, 1995. p. 133-143.
ALEXANDER, F. & KISBÁN, E. Food in Change: eating habits from Middle Ages to the present day. Edinburgh, Scotland: John Donald Publishers and National Museum of Scotland, 1986.
BOSI, M. L. M. A Face Oculta da Nutrição: ciência e ideologia. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, EdUerj, 1988.
BOSI, M. L. M. Profissionalização e Conhecimento. São Paulo: Hucitec, 1996.
BRAUDEL, F. The Structures of Everyday Life: the limits of the possible. Trans. S. Reynolds. New York: Harper & Row, 1981.
BRAUDEL, F. Civilization and Capitalism 15th-18th Century, 1. The Structures of Everyday Life: the limits of the possible. London: Collins, 1985.
CALADO, C. L. A. A expansão dos cursos de nutrição no Brasil e a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 2003. Disponível em: <http://www.cfn.org.br/variavel/destaque/expansao.doc>. Acesso em: 15 mar. 2002.
DOUGLAS, M. Deciphering a meal. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, 101:61-81, 1966.
DOUGLAS, M. & NICOD, M. Taking the biscuit: the structure of British meais. New Society, 30:744-747,1974.
DOUGLAS, M. Les structures du culinaire. Communications, 31:145-169,1979.
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE NUTRIÇÃO (FEBRAN). Definição do profissional nutricionista segundo objetivo de formação e objeto de trabalho: análise do trabalho realizado pelos cursos no período de abril a julho de 1987. Seminário sobre a Formação em Nutrição no Brasil: ênfase na graduação. Salvador, 1987. (Mimeo.)
GEERTZ, C. The slametan communal feast as a ritual. In: GEERTZ, C. The Religion of Java. Chicago: Universtity of Chicago Press, 1960. p. 1-15.
HARRIS, M. Good to Eat: riddles of food & culture. New York. Simon and Shuster, 1985.
HARRIS, M. The Sacred Cow and the Abominable Pig: riddles offood and culture. New York: Touchstone Books, Simon and Schuster Inc., 1987.
LIMA, M. S. S. Formação do nutricionista no Brasil: análise crítica e perspectivas. Alimentação e Nutrição, jun. 1984, p. 55-56.
MAGALHÃES, R. Fome: uma (re)leitura de Josué de Castro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Diagnóstico Nacional dos Cursos de Nutrição. Brasília: MEC, 1983.
MOTTA, D. G; OLIVEIRA, M. R. M. & BOOG, M. C. F. A formação universitária em nutrição. Pro-posições, 14(1):69-86,2003.
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD (OPAS). Formación Académica de Nutricionistas-Dietistas en América Latina, Washington: Opas, 1979. (Publicación científica, 340)
PUC-CAMPINAS. Projeto Pedagógico do Curso de Nutrição. Faculdade de Nutrição, 1988. (Mimeo.)
TANNAHIL, R. Food in History. New York: Stein and Day, 1973.
VASCONCELOS, F. A. G Como Nasceram os Nossos Anjos Brancos: a construção do campo da nutrição em saúde pública em Pernambuco. Recife: Edições Bagaço, 2001.
YPIRANGA, L. & GEL, F. Formação profissional do nutricionista: por que mudar? Trabalho apresentado no Seminário sobre a Formação em Nutrição no Brasil: Ênfase na Graduação. Salvador, 1987. (Mimeo.)