A GUERRA SOVIÉTICO-AFEGÃ

Número de mortos: 1,5 milhão1

Posição na lista: 40

Tipo: guerra civil ideológica

Linha divisória ampla: comunistas versus mudjahidins

Época: 1979-92

Localização: Afeganistão

Principais Estados participantes: Afeganistão, União Soviética

Principais não Estados participantes: muitos chefes guerreiros tribais

Quem geralmente leva a maior culpa: Leonid Brejnev

Outro culpado: a guerra terrestre das superpotências na Ásia

A pergunta irrespondível que todo mundo faz: Isso causou a queda da União Soviética?

Golpes e contragolpes

Logo no início da Guerra Fria, o Afeganistão fora um Estado-cliente morno da União Soviética. O país não era comunista, mas os soviéticos estavam ansiosos para manter estável seu vizinho, de modo que forneciam, sem remorsos, à monarquia em Cabul todas as armas e dinheiro de que ela necessitava para manter a ordem.

Em julho de 1973, o rei do Afeganistão passava férias na França, mas um golpe por parte de seu primeiro-ministro e primo, general Mohammad Daoud Khan, tornou desnecessária a sua volta. O país passou de uma monarquia modorrenta para uma ditadura modorrenta, sem que as Nações Unidas tivessem tempo de piscar; entretanto, essa interrupção do status quo fez com que ambos os lados da Guerra Fria reconsiderassem a situação. Daoud não tinha planos políticos nem rumo específico, mas quando o Irã, na época um Estado-cliente dos Estados Unidos governado pelo xá, começou a derramar dinheiro no país para comprar a sua amizade, os comunistas afegãos planejaram seu próprio jogo de poder.

Em abril de 1978, comunistas no exército do Afeganistão tomaram o poder e mataram Daoud. O novo líder, Nur Mohammad Taraki, começou as usuais reformas comunistas, visando tirar o país da Idade Média, o que deflagou uma pequena guerra civil por todo o país, entre comunistas e tradicionalistas. Taraki começou a mandar rebeldes e dissidentes para a nova prisão de Policharki, construída pelos soviéticos, perto de Cabul, onde dezenas de milhares foram mortos e jogados em covas coletivas durante a década seguinte.

Com a revolução fundamentalista muçulmana assumindo o poder no Irã, de janeiro a abril de 1979, os russos ficaram inquietos com as minorias muçulmanas que viviam dentro de suas fronteiras, e estavam ansiosos para que o Afeganistão não fugisse a seu controle. Aumentaram rapidamente a ajuda ao país e enviaram mais assessores para o governo.

Em março de 1979, trabalhadores afegãos que haviam retornado recentemente do Irã com ideias islâmicas se rebelaram contra os programas seculares dos comunistas na cidade afegã de Herat. A guarnição local de exército também se amotinou, apoderando-se da cidade. Perseguiram e mataram dezenas, talvez centenas, de assessores soviéticos e suas famílias, fazendo desfilar seus corpos mutilados pelas ruas. Em retaliação, tanques afegãos e aviões soviéticos reduziram a cidade a pó, matando cerca de 20 mil heratianos.2

Em setembro de 1979, o líder soviético Leonid Brejnev encontrou-se com Taraki, mas continuou a recusar o pedido do líder afegão para que tropas terrestres interviessem no país. Brejnev sabia que uma intervenção ostensiva apenas faria o povo afegão se voltar contra o seu governo comunista. Quase imediatamente em seguida à sua volta a Cabul, Taraki foi assassinado num contragolpe liderado por seu substituto, Hafizullah Amin, um comunista independente, educado nos Estados Unidos. Brejnev ficou chocado com o crime de seu recente hóspede e reconsiderou a intervenção.a

Em dezembro de 1979, comandos soviéticos surgiram do nada, atacando o palácio e matando Amin. Então o presidente do país, Babrak Kamal, preferido de Brejnev, retornou do seu exílio na Rússia e foi colocado no governo. Brejnev rapidamente aprovou o pedido de Kamal para o envio de um grande efetivo de tropas terrestres soviéticas.3

A guerra

Nesse ponto, poucos dias depois de ter começado, todo mundo sabia que os soviéticos já haviam perdido a guerra. Ou pelo menos foi isso que alegaram mais tarde. Em suas memórias, todos os generais soviéticos juraram que haviam tentado dissuadir Brejnev de invadir o país. Assessores do presidente americano Jimmy Carter disseram ter dado risadas e percorrido alegremente os corredores da Casa Branca,b agora que a Rússia estava prestes a ter o seu próprio Vietnã.

Na prática, levou quase uma década para que a União Soviética percebesse que não poderia vencer a guerra.

A guerra no Afeganistão não se desenrolou de acordo com nenhuma estrutura tradicional. Foi principalmente uma guerra de patrulhas, sortidas e ofensivas locais contra uma colcha de retalhos de chefes tribais e alianças de rebeldes. Em 1984, os soviéticos tinham 115 mil soldados no país, mas apenas 15% deles estavam disponíveis para combates ofensivos. Os outros 85% ficavam amarrados a guarnições estáticas, e nunca realmente controlaram mais do que as grandes cidades e as estradas que as ligavam. O restante do país pertencia aos guerrilheiros e chefes tribais. Os mudjahidins, isto é, rebeldes muçulmanos, tinham o Paquistão e o Irã como refúgios seguros para treinar e se recuperar, fora do alcance soviético.

Os Estados Unidos, em parceria com nações conservadoras muçulmanas, como a Arábia Saudita, enviaram dinheiro e suprimentos para os rebeldes via Paquistão. A nova República Fundamentalista Islâmica do Irã também apoiou os rebeldes, embora definitivamente sem entrar em parceria com os Estados Unidos.

Rebeldes do grupo étnico tajik, sob a liderança de Ahmad Shah Masoud, dominaram o vale do Panjsher durante toda a era soviética e a era dos talibãs. Como ele divide a estrada principal entre Cabul e a fronteira soviética, o controle do vale era vital para o resultado da guerra. Os soviéticos lançaram até nove ataques maciços de blindados contra os bastiões dos rebeldes, sem conseguir tomar posse deles.

Quando os rebeldes se mostraram escorregadios demais para serem derrotados, as forças comunistas reagiram simplesmente matando quem pudessem encontrar: reféns, membros das famílias ou transeuntes que parecessem suspeitos. Apesar da censura da imprensa, relatos fragmentados de atrocidades vazavam da zona de guerra. Qualquer explosão de bombas ou ataque de foguetes por parte dos rebeldes podia provocar uma brutal retaliação. Em 1979, as forças soviéticas e afegãs mataram 1.300 habitantes da província de Konarha.4 No início de 1985, os soviéticos massacraram centenas de civis na província setentrional de Kunduz.5 Como represália a um ataque a um comboio perto de Kandahar, em outubro de 1983, três aldeias próximas foram riscadas do mapa.6

Diminuindo o esforço

Em 1985, os mudjahidins estavam quase falidos, mas os soviéticos não sabiam disso. Em vez de aumentar o esforço de guerra, o novo regime reformista de Mikhail Gorbachov em Moscou começou a reconsiderar toda a aventura afegã. Durante os anos de 1985 e 1986, os soviéticos se retraíram de operações bélicas importantes, deixando os grandes combates para o exército afegão. Nessa altura, os soviéticos só iniciavam alguma ação com pequenas incursões de comandos feitas por forças especiais. Em 1987, a política soviética era apenas de se engajar em batalhas defensivas, e apenas quando necessário.

O presidente Kamal aposentou-se em Moscou em maio de 1986, e o governo foi entregue a Muhammad Najibullah, chefe da polícia secreta. Durante 1987, ele tentou ser menos ditatorial e atrair a oposição moderada para o seio do governo, numa tentativa de dividir a rebelião.

Numa reunião particular em setembro de 1987, o ministro do Exterior soviético, Eduard Shevardnadze, tentou atrair o secretário de Estado norte-americano, George Shultz, para um acordo de cooperação em relação àquele país. Tentou convencer seu colega americano de que o fundamentalismo muçulmano logo seria mais perigoso para o Ocidente do que o comunismo, e que as superpotências deveriam reconstruir em conjunto a nação despedaçada pela guerra. Nada resultou disso, mas é uma dessas oportunidades perdidas que sempre parecem maior quando as vemos em retrospectiva, especialmente depois do 11 de setembro de 2001, quando mudjahidins, agindo do Afeganistão, atacaram os Estados Unidos.

Em outubro de 1987, com a guerra esmaecendo, havia 2,9 milhões de refugiados afegãos em acampamentos no Paquistão, e 2,3 milhões no Irã.7 Os Acordos de Genebra, que normalizaram as relações entre o Afeganistão e o Paquistão, foram assinados em abril de 1988, e são geralmente tidos como o começo do fim da guerra, embora só incluíssem nações soberanas e não tivessem a concordância dos mudjahidins. Os soviéticos começaram a retirar suas tropas em maio, com o último soldado saindo em fevereiro de 1989.

Esse foi o último conflito da Guerra Fria, e hoje ficou claro que a União Soviética não podia se dar ao luxo de igualar seus rivais americanos. A guerra no Afeganistão custara à União Soviética mais ou menos o mesmo que a Guerra do Golfo, em 1991, custaria aos americanos, isto é, 70 bilhões de dólares8 contra 61 bilhões de dólares,9 respectivamente, mas os resultados foram radicalmente diferentes. Para os soviéticos, aqueles bilhões de dólares foram extorquidos do povo e distribuídos em dez anos, custando 13.310 vidas aos soviéticos, e deixando-os no final derrotados, falidos e exaustos. Por mais ou menos o mesmo preço, uns trocados por padrões ocidentais, os americanos puderam lutar uma guerra concentrada, vencendo-a em menos de um ano com a perda de apenas 383 vidas.c

Uma guerra sem fim

Contrariamente a todas as previsões feitas na época, o governo comunista em Cabul ainda aguentou por diversos anos depois da saída dos russos. Conseguiu manter com sucesso os rebeldes acuados, e foram apenas divisões internas que finalmente derrubaram o governo. Quando os rebeldes avançaram sobre a capital, o presidente Muhammad Najibullah renunciou e passou o governo para um subordinado, que também não conseguiu se manter no cargo. Em 1992, a milícia talibã de fundamentalistas muçulmanos tomou a cidade e aprisionou Najibullah. Ele permaneceu na prisão durante alguns poucos anos, até que, em setembro de 1996, foi entregue à multidão, que o castrou, fuzilou e pendurou seu corpo num sinal de trânsito.

O linchamento de Najibullah é um lugar tão bom quanto qualquer outro para se fechar o capítulo sobre a guerra no Afeganistão. Grande parte do país continua sob o domínio de chefes tribais, e o mundo, como um todo, não reconhece os talibãs como governantes legítimos, mas o comunismo não era mais uma alternativa, de modo que o mundo ignorou o país por muitos anos. Desde então a guerra tomou um novo rumo, o qual, até agora, não matou gente bastante para poder incluí-la na minha lista.

a Não contribuiu para a boa reputação de Amin junto a Moscou o fato de ele ter tido 14 encontros suspeitos com Adolph Dubs, o embaixador americano no país. Em fevereiro de 1979, Dubs foi se-questrado por misteriosos assaltantes e morto durante uma tentativa de resgate. A maioria dos que investigaram o caso suspeita que Taraki planejou esse sequestro (Harrison, “End of the Road” [“O fim da estrada”]).

b Não foi exatamente assim, mas o resumo é esse mesmo.

c Na verdade, grande parte dessa conta foi paga pelos países árabes ricos em petróleo que os Estados Unidos estavam defendendo, mas isso apenas chama a nossa atenção para o fato de que o Ocidente tinha muito mais dinheiro do que o Oriente, e podia gastar muito mais com a sua máquina de guerra.