A SEGUNDA GUERRA DO CONGO
Número de mortos: 3,8 milhões
Posição na lista: 27
Tipo: guerra hegemônica
Linha divisória ampla: hutus versus tutsis, pouco importando quem mais se intrometa
Época: 1998–2002
Localização: Congo Maior
Principais Estados participantes: República Democrática do Congo versus Ruanda e Uganda
Estados participantes secundários: Angola, Zimbábue, Namíbia, Chade (do lado do Congo) e Burundi (do lado de Ruanda)
Principais não Estados participantes: Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire, Forças Democráticas Aliadas, Assembleia Congolesa pela Democracia, Interahamwe, mai-mai, Movimento pela Libertação do Congo
Quem geralmente leva a maior culpa: Paul Kagame (Ruanda), Laurent Kabila (Congo) e Yoweri Museveni (Uganda)a
Outro culpado: a guerra civil africana
Fatores econômicos: columbita-tantalita (coltan), diamantes, madeira
A pergunta irrespondível que todo mundo faz: Isso aconteceu há poucos anos. Por que não ouvi falar nada a respeito?
A Segunda Guerra do Congo se situa no fim de uma reação em cadeia que começou nos distantes nevoeiros do tempo, e que veio ricocheteando aleatoriamente, até que terminou destruindo milhares de vidas que não tinham nada a ver com o começo. O genocídio de 1994 em Ruanda dispersou milhares de refugiados em toda a região dos Grandes Lagos da África. Ironicamente esses refugiados não eram as vítimas tutsis do genocídio, mas sim os culpados hutus, que haviam perdido o controle de Ruanda e fugiam dos vingativos rebeldes tutsis, os quais haviam assumido o governo. Cerca de 1 milhão desses hutus fugitivos ficaram amontoados nos campos de refugiados do Congo Maior.
Mobutu sai de cena
Durante o genocídio de Ruanda, o maior dos dois Congos, o antigo Estado Livre do Congo, conforme vimos no capítulo anterior, passou a se chamar Zaire e a ser governado por Mobutu Sese Seko, um velho tirano, um bandido, que vinha saqueando sistematicamente seu país por três décadas, reunindo uma fortuna pessoal calculada como uma das maiores do mundo. Ele sobreviveu à usual série de golpes, incursões fronteiriças e guerras civis que acompanhavam todo ditador africano, mas aquele influxo maciço de refugiados transbordando por suas fronteiras foi demais para o velho, afligido por um câncer. Ele perdeu o controle da situação, e essas províncias da fronteira tornaram-se, para todos os aspectos práticos, uma terra de ninguém. Enquanto as agências internacionais de ajuda viajavam em comboios armados e lutavam para manter viáveis os campos de refugiados, as milícias hutus os usavam como bases para se reorganizarem, visando retomar o governo em Ruanda. Eles mantinham a prática combatendo os tutsis locais do Congo Maior, conhecidos como banyamulengos.
Temendo uma ressurgência hutu, Paul Kagame, governante tutsi de Ruanda, queria desarmar os elementos dessa etnia baseados no Congo e prender os chefões, mas Mobutu não cooperava, de modo que ele teve de ser substituído. Os ruandenses precisavam de um congolês importante para encetar a missão, de modo que apoiaram um rebelde congolês desempregado, Laurent Kabila, que vinha perambulando sem rumo certo pela África oriental, esperando surgir uma oportunidade.
Kabila ficara escondido na sombra dos homens mais carismáticos da Crise Congolesa, uma série de guerras civis que se seguiu imediatamente à independência, em 1960. Kabila começou se associando ao amado presidente esquerdista do país, Patrice Lumumba. Depois do assassinato deste nas mãos de rebeldes em 1961, Kabila ajudou a separar uma província oriental congolesa como um enclave marxista. O próprio Che Guevara, o lendário revolucionário latino-americano, apareceu por lá para lutar em prol da nova nação comunista, mas ele rapidamente se desiludiu. Como ele observa em seu diário: “Todo dia era a mesma velha história: Kabila não chegou hoje, mas vai estar aqui amanhã, e, se isso não acontecer, ele virá depois de amanhã.”
“Kabila não põe os pés na frente de batalha há séculos”, queixou-se Che. Em vez disso, Kabila passava grande parte de seu tempo em Paris, no Cairo e em Dar es Salaam, ficando “nos melhores hotéis, emitindo comunicados e bebendo uísque escocês na companhia de lindas mulheres”, ou simplesmente indo “dos bares para os prostíbulos”.1
Então, depois que esse enclave foi conquistado pelo exército zairiano na década de 1970, Kabila desapareceu e todo mundo presumiu que morrera. Era visto de vez em quando, geralmente envolvido em um sequestro ou em um acordo comercial nebuloso, mas ninguém lhe prestou muita atenção, até que ele ficou amigo do presidente Yoweri Museveni, de Uganda, que sugeriu seu nome aos ruandenses como um possível presidente do Congo.2
Com plena legitimidade assegurada pela Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo-Zaire (AFDL), de Kabila, tropas de Ruanda e de Uganda cruzaram a fronteira em outubro de 1996, para remover Mobutu do poder e dispersar ainda mais os hutus. Os 1,4 milhão de refugiados hutus registrados pela agências de ajuda no Zaire fugiram da chacina em todas as direções, e quando a região se acalmou o bastante para que aquelas instituições retomassem suas operações, mais de 200 mil refugiados hutus haviam desaparecido na confusão.3 Só Deus sabe o que aconteceu àquelas pessoas, mas provavelmente foram mortas. A Anistia Internacional comunicou que a AFDL e o exército ruandense massacraram muitas delas.4
Mobutu fugiu da capital em maio de 1997, e morreu de câncer no estômago no Marrocos alguns meses mais tarde. Kabila entrou em Kinshasa e vitoriosamente proclamou a nova República Democrática do Congo. Assim terminou a Primeira Guerra do Congo.
A Guerra Mundial da África
Assim que se estabeleceu no palácio presidencial, Kabila rapidamente se livrou de seus amigos. Nos dias em que já agonizava, Mobutu fora forçado a afrouxar as restrições sobre os direitos humanos e sobre a oposição política, mas agora Kabila reverteu essas duas pequenas melhorias. Tentou assegurar sua independência em relação aos ruandenses que o apoiavam destituindo o general ruandense que era agora chefe do estado-maior do exército do Congo, e dissolvendo sua guarda pessoal, formada também por ruandenses. Finalmente, em julho de 1988, ele ordenou que todas as tropas estrangeiras abandonassem o país.
Não há certeza sobre se Ruanda realmente acatou essa ordem, ou se simplesmente fingiu aceitá-la, mas isso não tem importância, porque no dia 2 de agosto de 1998 duas unidades do exército congolês estacionadas ao longo da fronteira se rebelaram, dando início à Segunda Guerra do Congo. Quando Kabila avançou contra os rebeldes, as forças ruandenses foram em ajuda deles. Para evitar outras rebeliões, as unidades tutsis do exército congolês estacionadas perto da capital, Kinshasa, receberam ordem de entregar as armas. Elas se recusaram, mas as unidades do exército congolês de outras etnias atacaram os rebeldes e as eliminaram. Um pogrom geral contra tutsis de todos os tipos, militares, civis, homens, mulheres e crianças, irrompeu em todo o Congo.5
No dia 4 de agosto, um avião que transportava soldados ruandenses e ugandenses atravessou todo o território até a extremidade ocidental do país, onde aterrissou em uma base do exército que abrigava 10 mil a 15 mil ex-legalistas de Mobutu como prisioneiros de guerra da Primeira Guerra do Congo. Os prisioneiros foram libertados, armados e organizados em uma nova força de combate que partiu para a capital, a fim de derrubar Kabila. Nesse ínterim, todo o espectro de políticos congoleses, desde os primeiros companheiros de Mobutu até os seus ex-inimigos, formou o Esforço Congolês pela Democracia (RCD). Algumas semanas depois, Kabila parecia condenado, mas então, no dia 28 de agosto, a força expedicionária mobutista-ruandense-ugandense no oeste foi atacada e destruída por tropas da vizinha Angola, que já suportara demais invasões de fronteira e intrigas da parte de Mobutu para permitir que seus seguidores assumissem o controle. O Zaire interferira na guerra civil em Angola (1975-94), de modo que agora Angola estava devolvendo o favor.6
Vamos voltar atrás um pouco. Como é que a Uganda entrou nesse conflito? O país, como tantos outros da África subsaariana, tinha um grave problema de insurgentes. As Forças Democráticas Aliadas (ADF), que operavam nas regiões fronteiriças de Uganda e do Congo, não eram as maiores nem as piores tropas rebeldes de Uganda, mas os ugandenses perceberam que teriam uma chance de esmagar esse grupo juntando-se à invasão ruandense. Em fevereiro de 1999, Uganda montou uma operação de cooperação com os congoleses, no chamado Movimento de Libertação do Congo (MLC), composto principalmente de ex-mobutistas, na província natal de Mobutu de Equateur. Uganda colocou o MLC encarregado das províncias vizinhas congolesas em troca de eles eliminarem as ADF.
Nesse ínterim, Kabila mobilizou apoio entre as milícias exiladas ruandenses da etnia hutu, e aceitou tropas oferecidas por diversas nações vizinhas, ansiosas por restaurar a estabilidade na região.
Em meados de 1999, todos os exércitos estavam posicionados, e não houve mais surpresas. O Congo sofreu uma dolorosa partilha em três: Uganda ficou com o nordeste, Ruanda com o sudeste, e Kabila com o oeste. Uma grande cicatriz cortou o meio do país, onde os diversos exércitos faziam incursões, patrulhavam e saqueavam o território um do outro.
Houve pelo menos vinte tentativas de organizações internacionais para realizar um cessar-fogo, antes que finalmente isso acontecesse. O Acordo de Cessar-Fogo Lusaka foi assinado em julho de 1999, o qual solidificou a partilha até que surgisse alguma coisa melhor.
É claro que as negociações se arrastaram. As partes em conflito não tinham pressa em partir, pois todas elas estavam ganhando muito dinheiro com a guerra. A não observância da lei e da ordem permitia que saqueassem seus territórios ocupados, extraindo diamantes, ouro, madeira e columbita-tantalita, ou coltan, um mineral raro, essencial para a fabricação de telefones celulares e computadores. Como o Congo fornece 80% desse mineral para o mundo, o preço subiu de 60 para 800 dólares o quilo, e as minas ilegais se multiplicaram por toda a zona de guerra, com os mineiros abatendo a tiros os gorilas e elefantes, já em vias de extinção, para obtenção de comida.7 As tropas ugandenses e seus aliados rebeldes se apoderaram de todo o estoque de madeira e café do nordeste do país, que eles enviavam para Uganda ganhando muito dinheiro com a exportação.8
Kabila sai de cena
No dia 16 de janeiro de 2001, um dos guarda-costas de Kabila o assassinou. A princípio, o governo negou que acontecera alguma coisa de mau ao presidente, e seu principal assistente apareceu na televisão pedindo que a nação permanecesse calma. Finalmente, depois de dias de especulação, foi preciso admitir que Kabila de fato morrera. Dois anos mais tarde, esse mesmo assistente principal foi condenado por ter planejado o assassinato de seu chefe como parte de um fracassado golpe de Estado, provavelmente em cooperação com o Esforço Congolês pela Democracia e também com os ruandenses.9
O filho de Kabila, Joseph Kabila, assumiu o cargo de presidente, e, até o momento em que redijo estas linhas, parece ser melhor do que o pai. Abriu o governo para as vozes da oposição e começou a fazer negociações sérias visando a paz para o Congo. Em outubro de 2006, eleições em âmbito nacional, que observadores de fora consideraram livres e justas de maneira geral, confirmaram Kabila no cargo. Como declarou à BBC: “A guerra no Congo levou a acordos comerciais nebulosos, mas Kabila não estava diretamente implicado em nenhum deles.”10 Uma definição bastante boa de honestidade naquela parte do mundo.
Ruanda e o Congo assinaram um cessar-fogo em Pretória, África do Sul, no dia 30 de julho de 2002. O Congo negou oficialmente ter dado abrigo a qualquer hutu envolvido no genocídio de Ruanda em 1994, mas concordou, de qualquer modo, a entregá-los a seu país de origem. Em troca, Ruanda concordou em retirar suas tropas do Congo. Outro acordo bilateral entre os dois países, em 6 de setembro de 2002, terminou aquela parte da guerra. A retirada das tropas estrangeiras deixou os vários grupos paramilitares rebeldes no Congo, mas todos eles receberam participação no novo governo de transição.
A despeito das grandes movimentações de tropas e reorganização do poder político, continuaram a ocorrer conflitos esporádicos dispersos durante alguns anos. Alguns já começaram a chamar essas lutas de a Terceira Guerra do Congo, mas devido a problemas de tempo, espaço e simplificação, vamos parar por aqui a história da Segunda Guerra do Congo.
O estilo de guerra
O Comitê Internacional de Socorro fez uma pesquisa sobre os habitantes da zona de guerra e publicou um relatório calculando em 3,8 milhões mais de mortes do que de costume, desde a eclosão da Segunda Guerra do Congo, a maioria por doença e fome, que se propagaram na onda da devastação. Apenas 10% a 15% dessas mortes da guerra foram devidas diretamente à violência.11
As guerras mais sangrentas da história são aquelas que envolvem os soldados mais eficientes e mais bem equipados que estiverem disponíveis no mundo na ocasião. Exércitos no máximo de sua eficiência, por exemplo, travaram as duas guerras mundiais, e conquistaram grande parte do mundo sob o comando de Napoleão e Gêngis Khan. Eram os mais destrutivos exércitos de seu tempo, e, aproveitando seu treinamento, eliminaram enorme quantidade de vidas humanas.
Os exércitos da guerra no Congo pertencem a uma categoria inteiramente diferente. Essa guerra foi travada por bandos de adolescentes com pouca disciplina, portando armas pequenas e antiquadas, e sem lealdade a qualquer comandante, a não ser a quem lhes pagava. Espalhavam-se por uma frente fragmentada, e raramente se empenhavam em batalhas verdadeiras, que não duravam mais do que umas poucas horas. A disciplina era brutal e a vida era barata. Para se protegerem das balas no combate, acreditavam mais em feitiços mágicos do que no treinamento. Suborno e saque campeavam, e gastava-se mais tempo aterrorizando os habitantes locais do que combatendo o inimigo. De acordo com as agências de ajuda, 60% dos combatentes na guerra tinham o vírus causador da AIDS, e um terço das mulheres que eles estupravam ficava infectado.12
Destacaram-se pela violação dos direitos humanos os mai-mai, uma reunião de milícias locais, de laços frouxos, que lutavam no centro do Congo contra ruandenses e ugandenses, embora não necessariamente a favor de um governo central. A cidade de Kibombo mudou de mãos diversas vezes, e cada vez que isso acontecia, os soldados saqueavam, estorquiam os habitantes e, no fim, se retiravam, levando com eles umas poucas mulheres para uso no futuro. É típica a experiência de uma garota de 16 anos: em outubro de 2002, Onya e sua mãe estavam num grupo de 48 mulheres que haviam saído juntas para cuidar das colheitas, procurando segurança no número. Foram encontradas por uma patrulha dos mai-mai que as espancou, expulsou-as do seu campo e começaram a estuprá-las. A mãe escapou depois de alguns dias, mas Onya foi mantida como “esposa” até março de 2004, forçada a trabalhar na lavoura, cozinhar e propiciar sexo. Finalmente os mai-mai fugiram depois de perderem uma batalha importante, e ela conseguiu voltar para Kibombo.13
a Espero que você tenha notado que dois heróis de capítulos anteriores são os vilões deste capítulo. História é uma coisa complicada.