5
Uma semana se passou. Ella viu pouco David Rainwater, a não ser no café da manhã e no jantar. Durante as refeições, ele demonstrou notável tolerância com a tagarelice e mal disfarçada curiosidade das irmãs Dunne.
As solteironas começaram a “se vestir” para o jantar, descendo todas as noites usando seus melhores trajes de domingo e suas joias e explicando essa súbita vaidade perguntando, retoricamente, de que adiantava terem coisas bonitas se nunca as usavam. Uma noite Ella chegou até a sentir um cheiro de colônia e suspeitou que viesse da srta. Pearl, toda faceira na companhia do novo hóspede.
O sr. Hastings voltou em uma tarde, mal tendo tempo para lavar as mãos e o rosto antes do jantar. Quando Ella estava servindo a salada, as irmãs fizeram as apresentações.
— Prazer em conhecê-lo, sr. Rainwater — disse o vendedor. — Será bom ter outro homem na casa. O senhor joga xadrez?
— Infelizmente, não muito bem.
— Ótimo! Talvez eu possa ganhar uma partida para variar. Ah, sra. Barron, senti falta da sua comida. Não havia nada como ela onde estive.
— Obrigada, sr. Hastings. O senhor teve uma viagem produtiva?
— Lamento dizer que não tenho nada do que me gabar. Meus clientes não compraram o que costumavam comprar. Na verdade, nada nem mesmo perto do que compravam, porque não conseguem vender os estoques que já têm. Hoje em dia ninguém pode se dar ao luxo de comprar artigos de armarinho. As pessoas têm sorte se conseguem comer regularmente. Apesar dos discursos otimistas do sr. Roosevelt, os tempos parecem estar ficando piores, não melhores.
— O que deveria tornar todos nós mais gratos por nossas bênçãos — entoou a srta. Violet.
Naquela noite, depois do jantar, os dois homens jogaram xadrez na sala de estar formal enquanto as irmãs ouviam rádio na sala de estar informal. Ella conseguia ouvir a música enquanto trabalhava na cozinha. De vez em quando, detectava uma voz masculina vindo da sala da frente.
O sr. Hastings ficou na casa por dois dias, e depois carregou obstinadamente suas malas com amostras escada abaixo até seu carro.
— Devo voltar na próxima terça-feira — informou a Ella. — Eu lhe telefonarei se por algum motivo me atrasar.
— Tenha uma boa viagem, sr. Hastings.
Ele a cumprimentou com um toque na aba de seu chapéu e foi embora. Naquela noite, logo após o jantar, o sr. Rainwater pediu licença e subiu para seu quarto. Não havia passado mais nenhuma noite sentado na varanda, pelo menos não que Ella soubesse.
Os encontros deles eram cordiais, mas breves e formais, como se ambos tomassem cuidado para não ofender um ao outro. Como Ella havia pedido, o sr. Rainwater nunca mais se levantou quando ela entrou em um aposento ou lhe fez outra clara cortesia. Para Ella, parecia que eles tinham brigado. Não tinham. Não exatamente. Mas ela evitava ficar a sós com ele, e ele não fazia nenhuma tentativa de procurá-la.
O que era como deveria ser.
O sr. Rainwater morava na casa havia duas semanas quando eles tiveram outra conversa particular. Ella estivera limpando o andar superior enquanto Margaret estava na sala da frente remendando uma cortina e atenta a Solly, que brincava com carretéis de linha, um de seus passatempos favoritos.
Ella estava descendo com seu cesto de material de limpeza quando ouviu um som de raspagem que não conseguiu identificar. Seguiu-o através da cozinha, pela porta dos fundos e ao redor da casa.
O sr. Rainwater estava usando uma enxada para cortar o solo seco entre filas de tomateiros. Com seu paletó e colete pendurados em um pau de cerca, estava só de camisa e com os punhos enrolados até os cotovelos. Seus suspensórios formavam um X nas costas sobre o ponto em que o suor colara a camisa à sua pele.
— sr. Rainwater!
A exclamação dela o fez se virar.
— Sra. Barron. — Apoiando um dos braços no cabo da enxada, ele empurrou o chapéu para trás e limpou o suor da testa com a manga da camisa.
— O que está fazendo? — perguntou ela.
O sr. Rainwater olhou do cabo da enxada para o solo recém-trabalhado e as ervas daninhas arrancadas pela raiz que murchavam ao sol. Quando ergueu a cabeça, olhou para Ella com o mal contido divertimento que agora era familiar, mas não menos perturbador.
— Estou capinando a horta.
Sua calma afirmação do óbvio a deixou ainda mais zangada. As ervas daninhas retiradas eram prova de que a horta precisava de atenção, mas a presunção dele era indefensável.
— Eu mesma ia fazer isso amanhã. — Ela olhou de relance para o sol escaldante da tarde. — Cedo. Antes de ficar quente demais.
Ele deu uma risada.
— Está quente. Quase quente demais para respirar.
— É aí que eu quero chegar, sr. Rainwater. Além de fazer meu trabalho para mim, o que não deveria, especialmente antes de me perguntar primeiro, um trabalho árduo como capinar uma horta não pode ser bom para um homem na sua condição.
O divertimento desapareceu e o rosto dele se tornou sarcástico, a pele firmemente esticada sobre os ossos proeminentes.
— Prometo não cair morto sobre seus tomateiros.
O tom dele a atingiu como um tapa no rosto. Talvez ela tivesse até mesmo recuado, porque ele imediatamente deixou a enxada cair de debaixo do braço e deu um passo em sua direção.
— Sinto muito. — Ele tirou o chapéu e passou os dedos pelos cabelos, empurrando-os para trás antes de pôr novamente o chapéu. — Por favor, desculpe-me. Isso foi intempestivo.
Ela ainda estava surpresa demais para falar.
— Acha que porque peguei a enxada para capinar a horta estou sugerindo que não tem competência para fazer isso? — perguntou ele. — Não é nada disso, sra. Barron. Não parei para pensar que interpretaria mal minhas intenções. Na verdade, não parei para pensar em nada. Isso foi uma decisão impulsiva, e o fato é que não o fiz pela senhora. Fiz por mim.
Ela ergueu a cabeça e olhou para o rosto dele.
— Eu quero e preciso de algo para fazer. Não tenho feito nada de produtivo desde que cheguei, e detesto inatividade. Faz os dias e as noites passarem muito devagar. — Ele deu um sorriso triste. — Talvez a senhora pense que eu gostaria que o tempo passasse devagar, mas deploro ficar ocioso. Quero me manter ocupado e ativo pelo máximo de tempo que puder.
Ele a olhou fixamente por vários instantes, o rosto com uma expressão intensa, como se desejasse que ela entendesse. Então suspirou, seus ombros caindo levemente. Abaixou-se e pegou a enxada.
— Vou colocá-la de volta no galpão.
Ele pegou seu paletó e o colete no pau de cerca e passou pela frágil porteira de rede do galinheiro, que às vezes, mas raramente, desencorajava os coelhos a saquearem a horta.
Quando passou por ela, Ella disse:
— Não tive a intenção de parecer tão zangada.
Ele parou e a encarou. Os olhos de Ella estavam na altura de seu pescoço, onde ele havia afrouxado a gravata e desabotoado o colarinho. Sua pele estava brilhante de suor. Ele cheirava a sal de suor, sol, calor de verão e solo argiloso recém-revolvido.
Estava quase quente demais para respirar, pensou Ella. De qualquer forma, o ar que inalava parecia insuficiente.
— Meus hóspedes não deveriam realizar minhas tarefas.
— Mesmo se realizar uma tarefa fizer um deles feliz?
Ella ergueu os olhos na direção dos dele.
Com uma voz suave, ele perguntou:
— Que mal há nisso, sra. Barron?
— O mal que há nisso é que não quero quebrar minha rotina. — Parecendo desesperada, quase com medo, respirou profundamente antes de continuar: — Se eu deixasse todos os hóspedes fazerem o que quisessem, quando quisessem, a casa logo estaria um caos. Não posso deixar…
Ella ficou chocada e se calou quando ele pôs a mão em seu ombro. Mas, antes de poder realmente registrar que a estava tocando, percebeu que não lhe prestava mais atenção. Olhava para além dela. Ele deixou suas coisas caírem no chão e, de um modo gentil e ao mesmo tempo firme, a afastou para o lado e passou correndo por ela.
— Irmão Calvin?
Ela se virou e viu o pregador montado em uma mula. Com as pernas penduradas dos lados do animal, o irmão Calvin estava caído para frente, a testa quase tocando a crina dura. Enquanto ela observava, atônita, o pregador soltou a corda que servia de rédea, tombou para um lado e deslizou da mula para o chão.
Quando o sr. Rainwater o alcançou, ajoelhou-se e o virou cuidadosamente de barriga para cima. Ella sufocou um grito ao ver o rosto do pregador. Estava ensanguentado e inchado. O sr. Rainwater sibilou por entre os dentes. Ella, reagindo à emergência, virou-se e correu para a porta da cozinha. Gritou pela porta de tela para Margaret e depois voltou correndo e se ajoelhou ao lado dos dois homens.
— O que aconteceu com ele?
— Acho que levou uma surra — respondeu o sr. Rainwater.
O irmão Calvin sangrava por vários cortes no rosto e couro cabeludo. Suas roupas estavam rasgadas. Só calçava um pé de sapato. Estava consciente, mas gemendo, e sua cabeça pendeu para trás quando o sr. Rainwater deslizou o braço por baixo do seu ombro e o sentou.
— Ajude-me a levá-lo para dentro — disse a Ella.
O tamanho do homem tornava aquilo um esforço. O sr. Rainwater pôs um dos braços do pregador ao redor dos seus ombros e Ella fez o mesmo. Cada qual colocou um ombro sob uma axila do pregador, depois eles tentaram levantar o homem, ao mesmo tempo que lutavam para se manter em pé. Movendo-se devagar, eles o carregaram e o arrastaram com dificuldade para a escada dos fundos.
Margaret abriu a porta de tela e, ao ver seu querido pastor naquela condição, começou a gritar.
— Pare com isso! — ordenou Ella. — Precisamos da sua ajuda. Pegue os pés dele.
A empregada se calou, perplexa. Desceu a escada, colocou um dos pés do pregador sob cada braço e depois subiu a escada. Todos os três cambalearam e tropeçaram sob o peso dele, mas conseguiram passá-lo pela porta.
O sr. Rainwater disse:
— Abaixem-no até o chão.
Fizeram isso o mais gentilmente possível, mas o irmão Calvin continuou a gemer e Ella temeu que suas piores lesões fossem internas.
— Pegue algumas toalhas e uma bacia de água — disse ela a Margaret. — E vá buscar mercurocromo no meu banheiro. Onde está Solly?
— Bem atrás da senhora. Trouxe-o comigo quando me gritou.
Solly estava sentado no chão com as costas apoiadas na porta da despensa e as pernas em ângulo reto com o corpo. Olhava para seus sapatos e os batia um no outro, aparentemente inconsciente do que estava ocorrendo.
Ella se virou para o irmão Calvin, que gemeu quando o dedo do sr. Rainwater examinou um grande galo em sua têmpora.
— Devo chamar o dr. Kincaid? — perguntou ela.
— E o xerife.
— Não! — O irmão Calvin abriu rapidamente os olhos. No olho direito, a íris negra flutuava em uma densa poça vermelha. — Não. Por favor, não. Nada de médico. Nada de xerife.
Ao falar, balançou a cabeça enfaticamente, o que devia ter lhe causado grande dor, porque fechou os olhos de novo e gemeu. Margaret trouxe a bacia de água. O mais gentilmente que pôde, Ella lavou suas feridas e depois lhes aplicou antisséptico.
Finalmente os gemidos diminuíram, mas ele não parava de agradecer a bondade de Ella. Apesar de sua condição, estava preocupado com a mula.
— E quanto a ela? — perguntou Ella.
— Não é minha. — Entre gemidos de dor, ele lhes disse que temia que o animal se perdesse, por isso o sr. Rainwater saiu para amarrá-lo em um pau de cerca. Depois voltou e assegurou ao pregador que a mula emprestada não iria a parte alguma.
O irmão Calvin os convenceu de que era capaz de se levantar, por isso eles o ajudaram a se sentar em uma cadeira à mesa.
— Está sentindo dor em algum lugar por dentro? — perguntou-lhe Ella.
— Nas costelas. Algumas podem estar quebradas.
— Poderia estar sangrando internamente?
Ele balançou a cabeça.
— Não, senhora. Não é assim tão ruim.
Mas era ruim o suficiente para assustar a srta. Violet. Ela entrou na cozinha para fazer alguma coisa, mas ver um negro sangrando sentado à mesa a fez parar. Ela apontou a mão manchada pela idade para seu peito ossudo e gritou:
— Ah, meu Deus! — Depois foi embora rapidamente.
Fosse o que fosse que estivesse acontecendo, aparentemente a mulher idosa não queria participar disso. O que era melhor para Ella.
Margaret pôs uma xícara de chá ao alcance do pregador. O irmão Calvin a pegou com as duas mãos e bebeu. Ella notou que os nós dos dedos dele estavam arranhados e sangrando. Ele também devia ter dado alguns socos dolorosos.
— O que aconteceu? Quem fez isso? — perguntou o sr. Rainwater. Sua camisa branca estava manchada com o sangue do outro homem, mas ele não pareceu ter notado.
— Eles estavam atirando em vacas.
— Deus tenha misericórdia — gemeu Margaret.
— Homens do governo? Do Serviço de Alívio da Seca?
O pregador fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— De quem era o rebanho? — perguntou Ella.
— Pritchett, esse é o nome dele.
Ella olhou para o sr. Rainwater.
— George Pritchett. A família dele trabalha naquela fazenda de gado leiteiro há pelo menos três gerações.
O programa do governo federal fora criado mais cedo naquele ano para proteger fazendeiros e criadores de gado leiteiro e de corte da ruína total. A pior seca em cem anos tinha conferido aos estados das planícies o apelido de Tigela de Pó. A terra antes cultivada ou usada como pasto era agora um grande deserto, fustigado pelo vento e por hordas de insetos.
Em uma reação à crescente emergência, o Congresso destinara milhões de dólares à compra de animais de criadores de gado leiteiro e de corte cujos rebanhos estavam literalmente morrendo de fome. Os agentes tinham autorização para pagar até 20 dólares por cabeça, o que era muito abaixo do valor de mercado em tempos normais, mas melhor do que nada na situação de crise.
Aquele programa parecia viável. Os animais considerados suficientemente saudáveis para consumo eram enviados para a Federal Surplus Relief Corporation (FSRC) para abate e processamento. A carne enlatada era então distribuída para comunidades temporárias, cozinhas públicas e para ser servida aos pobres. Fazendeiros e rancheiros ganhavam alguma coisa e as pessoas famintas eram alimentadas.
Mas também havia um aspecto inquietante no programa. O gado não escolhido para consumo era morto e enterrado no ponto de compra. Podia ser todo o rebanho de um rancheiro ou a única vaca leiteira de um fazendeiro. Embora o programa se destinasse a evitar que famílias sofressem os duplos efeitos da seca e depressão econômica, ver o trabalho de uma vida inteira ser destruído de um modo tão brutal era de partir o coração.
O irmão Calvin continuou:
— Eles escolheram as mais gordas do rebanho, que não eram muitas, e as puseram em um caminhão. As que sobraram foram agrupadas no fundo de um buraco que haviam cavado, grande como esta casa. Seis dos atiradores ficaram na borda.
“O sr. Pritchett entrou na casa com a esposa e os filhos e fechou a porta. Simplesmente não pôde suportar ver aquelas vacas serem mortas onde estavam. Não pareceu se importar com o quanto recebera por elas. Seu coração e espírito estavam dilacerados.”
Ao dizer isso, a voz do pregador ganhou força. Ecoou nas paredes da cozinha como se ele estivesse no púlpito, advertindo sobre o inferno e o enxofre.
— Então eles abriram fogo. Os primeiros tiros assustaram as vacas. Elas mugiram enquanto caíam. Vacas, bezerros, até o último deles.
Ella ficou enjoada ao pensar em tamanha carnificina. Margaret apertou os lábios trêmulos com uma das mãos. O maxilar magro do sr. Rainwater se moveu como se ele estivesse rangendo os dentes.
Ella disse:
— Sei que isso é necessário. Visa ajudar. Mas parece muito cruel.
— Especialmente para um homem que trabalhou dia e noite para formar um rebanho — disse o sr. Rainwater. — Quem bateu no senhor, irmão Calvin? Por quê?
O homem limpou os olhos com o punho arranhado.
— Aquela gente da favela ouviu falar no que ia acontecer na casa do sr. Pritchett. Eles vieram. Negros e brancos juntos. Unidos pela fome. Vieram com as facas e machadinhas que tinham. Trouxeram tinas e panelas, achando que podiam retalhar aquelas vacas, pegar a carne que sobrara naquelas carcaças magras antes que se estragasse ao sol ou fosse coberta de poeira. Gente que tem vivido de farinha, água e salada de erva-da-américa não é exigente em relação aos seus cortes de carne.
Os olhos dele começaram a lacrimejar de novo.
— Mas assim que aqueles homens do governo foram embora, alguns nativos vieram se certificar de que as vacas mortas não seriam retalhadas. Eram liderados por um homem branco com uma marca de nascença púrpura no rosto e que carregava um rifle.
— Conrad.
O sr. Rainwater olhou intensamente para Ella, que dissera o nome.
— Conrad Ellis — disse ela. — Ele tem uma marca de nascença que cobre a maior parte do seu rosto. Acho que chamam isso de mancha de vinho do Porto.
— Eu digo que é a marca de Caim — murmurou Margaret.
— Ele é intimidador. Sempre foi — disse Ella.
— É pior que o diabo.
Ignorando o desprezo de sua empregada, Ella continuou:
— O sr. Ellis, o pai de Conrad, tem uma fábrica de empacotamento de carne. Ele compra da maioria dos rancheiros locais.
— Pessoas obterem carne de graça não seria bom para seu negócio — observou o sr. Rainwater. — Então ele mandou o filho para lá para se certificar de que não obteriam nenhuma.
Ella franziu as sobrancelhas.
— Conrad não precisaria de uma desculpa. Ele gosta de bater nos outros. Está sempre procurando briga.
— Especialmente desde que…
— Margaret.
A reprimenda implícita impediu a empregada de prosseguir, mas ela pareceu mais irritada que uma vespa ao se levantar, murmurando:
— Vou fazer um pouco de café.
O sr. Rainwater dividiu um olhar curioso entre Ella e Margaret, e o pousou em Ella, que ignorou as perguntas não feitas e voltou sua atenção para o irmão Calvin, que dizia:
— Sem dúvida aquele rapaz branco estava procurando briga hoje.
Ele terminou sua xícara de chá e a pôs cuidadosamente sobre a mesa.
— Assim que os atiradores do governo foram embora, as pessoas da favela, e eu com elas, corremos para aquele buraco e começamos a retalhar as vacas. Como já estavam mesmo mortas, poderiam alimentar suas famílias. Esta noite. Não esperar o governo distribuir a carne enlatada. Esse foi o meu raciocínio. Acho que o do sr. Pritchett também, porque ele e a esposa voltaram lá para fora e entregaram facas de cozinha para quem não tinha.
“Então aqueles rapazes chegaram em uma picape fazendo algazarra, tocando a buzina e disparando armas de fogo. Saltaram da carroceria brandindo bastões de beisebol e rifles e gritando para as pessoas se dispersarem. Como ninguém lhes deu atenção e elas continuaram a retalhar as vacas, eles começaram a bater em cabeças com os bastões e cabos de rifles. Não importava se eram homens, crianças ou mulheres.”
— Onde estavam as autoridades?
— O xerife estava lá com um monte de assistentes. Vendo, mas sem fazer nada, até o sr. Pritchett pegar sua espingarda de caça. Ele gritou para os rapazes saírem da sua fazenda e deixarem aquelas pessoas pobres em paz, que tudo que elas queriam era carne que iria para o lixo. O xerife lhe disse para abaixar aquela espingarda idiota antes de matar alguém.
Nesse ponto o pregador começou a balançar a cabeça e chorar mais copiosamente.
— Eu vi com meus próprios olhos. Aquele malvado com a marca de nascença foi até a varanda e arrancou um garotinho dos braços da sra. Pritchett. A criança não devia ter mais de dois ou três anos. Ele ameaçou esmagar a cabeça dela se o sr. Pritchett não abaixasse sua espingarda e deixasse que eles e seus colegas garantissem que o programa do governo seria cumprido como deveria ser.
— Cristo.
O pastor olhou tristemente para o sr. Rainwater.
— Que Deus lhe perdoe a blasfêmia, sr. Rainwater. Aquilo foi uma visão horrível. Apavorante aos olhos Dele também. — Ele enxugou novamente suas lágrimas. — Não acho que o sr. Roosevelt tivesse isso em mente, não é? Seja como for, vendo sua esposa histérica e a vida de seu garotinho ameaçada, o bem-intencionado sr. Pritchett simplesmente desistiu.
“Ele se sentou nos degraus de sua varanda e observou aqueles rapazes malvados expulsando os famintos de volta para a favela. Tudo que pôde fazer foi ficar sentado lá e chorar sobre o sangue deixado em seu pasto. Ele tinha visto a maioria daquelas vacas nascer, provavelmente ajudado a tirar algumas de dentro de suas mães. Vê-las sendo mortas daquela maneira, e depois desperdiçadas…” O pregador perdeu a vontade de continuar.
Quando ele parou de falar, os únicos ruídos na cozinha foram os do bule de café borbulhando no fogão e Solly batendo seus sapatos um no outro. Finalmente, Ella perguntou:
— O que vai acontecer agora?
— As vacas serão enterradas.
O irmão Calvin fez um sinal afirmativo com a cabeça, concordando com a explicação do sr. Rainwater.
— Havia tratores com carregadeiras frontais estacionados na estrada da fazenda, prontas para encher o buraco que haviam cavado. — Ele balançou a cabeça pesarosamente. — Sei que os homens precisam aceitar o trabalho que conseguem. Mas sei que eu nunca conseguiria atirar em vacas lerdas e seus bezerros. Não conseguiria enterrar suas carcaças em um buraco enquanto crianças famintas choravam por perto e precisavam jantar.
O sr. Rainwater se inclinou sobre a mesa na direção dele.
— O senhor estava tentando ajudar as pessoas da favela e se envolveu na confusão?
— Sim. Às vezes eu vou lá e realizo serviços religiosos para aquelas pessoas — explicou ele. — Eu as incentivei a estarem preparadas quando aqueles atiradores fossem à fazenda dos Pritchett e lhes prometi carne. Pelo menos um osso para uma panela de sopa. Não esperava que homens ameaçassem esmagar a cabeça de garotinhos com bastões de beisebol. — Seus ombros largos tremeram quando ele começou a chorar sentidamente. — Eu me sinto responsável por cada golpe desferido.
Ella pôs a mão confortadoramente no antebraço dele.
— A culpa não foi sua, irmão Calvin. Estava tentando ajudar. — Ela olhou para o sr. Rainwater. — O senhor conhece o dr. Kincaid melhor do que eu. Acha que ele iria à favela tratar das pessoas mais feridas? Posso lhe pedir para fazer isso, mas o senhor é parente dele.
O sr. Rainwater se levantou e começou a abaixar as mangas da camisa.
— Vou procurá-lo agora.
— Passe aqui antes de ir para a favela. Margaret e eu vamos juntar algumas coisas.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça ao sair pela porta dos fundos.
Ella estava esperando por eles quando o sr. Rainwater voltou, meia hora depois, com o dr. Kincaid.
— Preciso de ajuda! — gritou ela da varanda da frente.
Os dois homens pegaram as caixas de comida, roupas e itens domésticos e as carregaram para o carro do sr. Rainwater.
— A senhora arrumou tudo isso no pouco tempo em que estive fora? — perguntou ele, erguendo um saco de farinha cheio de roupas que não cabiam mais em Solly.
— Estou juntando isso há algum tempo, esperando o momento certo para dar.
Enquanto os homens arrumavam as últimas coisas no carro, Ella voltou apressadamente para a cozinha, pediu a Margaret para ficar de olho em Solly e prometeu voltar a tempo de servir o jantar. Depois pegou seu chapéu e saiu correndo pela porta da frente.
— Esperem, estou indo.
— Isso não é necessário, sra. Barron — disse o médico. Ele estava suando profusamente.
— Sei que não é, mas posso ajudar.
— Talvez Margaret fosse mais adequada…
— Margaret é negra, dr. Kincaid. Não quero pô-la em risco de represálias de um grupo de delinquentes preconceituosos. Eles gostam de intimidar. Ainda mais quando suas vítimas são negras.
O médico olhou na direção do sr. Rainwater em busca de reforço, mas ele ficou do lado dela.
— Isso não se pode negar, Murdy.
O médico pôs rapidamente seu chapéu na cabeça.
— Então vamos. A sra. Kincaid está tendo um ataque de nervos com essa situação. Jurou que mandaria as autoridades me procurarem se eu não voltasse daqui a uma hora.
Mas uma hora não era tempo suficiente para atender a todos os feridos na fazenda de Pritchett.
Ella e o sr. Rainwater distribuíram aspirinas e conforto para aqueles com ferimentos menos graves, enquanto o médico tratava dos piores. Ele imobilizou ossos de homens, que davam longos goles de bebidas ilegais para suportar a dor. Pôs ataduras em ferimentos que sangravam. Suturou os cortes que pôde com seus limitados recursos materiais e passou bálsamo antisséptico no restante quando sua linha de sutura acabou. Ajudou no parto de um natimorto de uma mulher que disse esgotadamente que era uma pena seu filho ter morrido, mas de qualquer maneira não poderia alimentar outra boca. Disse que sua pequena alma estava melhor no céu.
Quando todos os feridos foram tratados, Ella e o sr. Rainwater circularam entre as frágeis meias-águas, tendas remendadas, caixas de papelão e carros enferrujados que serviam de abrigo. Distribuíram as roupas, os itens domésticos e a comida que tinham trazido. Os olhares que as pessoas lançavam a Ella eram indiferentes à sua generosidade ou pateticamente gratos por ela. Ella achou as duas reações igualmente perturbadoras.
Depois de ter dado tudo que trouxera, ela atravessou novamente o acampamento e foi ao encontro do dr. Kincaid, que estava dando instruções para a mulher cujo filho nascera morto.
O dr. Kincaid se afastou da cama da mulher, uma tampa de uma caixa que ela arrastara para a sombra de uma nogueira-pecã, e pôs as mãos na parte inferior das costas, enquanto se esticava. Ele havia deixado seu paletó e chapéu no carro. Sua camisa estava suja e molhada de suor. A manga cheirava a sangue.
— Acho que ajudamos um pouco — observou.
— Não o suficiente.
— Não. Nunca é o suficiente. — Ele sorriu amargamente para Ella. — Ainda assim, é melhor voltarmos antes que a sra. Kincaid mande um grupo de busca armado.
— Vai haver dor? — perguntou-lhe Ella.
— Não, não muita. A criança era pequena e só tinha sete meses. Até que foi um parto relativamente fácil.
Mas então ele percebeu que Ella não se referia à mulher que perdera seu filho. Estava olhando para o sr. Rainwater, que apertava a mão de um homem vestido apenas com um macacão sujo. Em cada uma das pernas do homem havia uma criança encardida e descalça agarrada ao brim com mãos ainda mais sujas. Ele segurava uma terceira criança nos braços. Ella o ouvira dizer ao sr. Rainwater que sua esposa havia morrido de tuberculose uma semana antes, e não sabia como iria procurar trabalho e ao mesmo tempo cuidar dos filhos.
Ela estava muito longe para ouvir o que os dois falavam um para o outro agora, mas imaginou que o sr. Rainwater estava lhe dizendo para não perder a esperança. Ele soltou a mão do homem, despenteou os cabelos de uma das crianças e se virou para voltar na direção dela e do médico.
Ella olhou para o dr. Kincaid, sua pergunta pairando entre eles.
— Sim — disse ele.
Um arrepio a percorreu. Ela engoliu em seco.
— Pode lhe dar alguma coisa para isso?
— Quando ele pedir, sim.
— Ele vai pedir?
O médico observou seu parente passando ao redor de fogueiras e um amontoado de pessoas.
— Sim, sra. Barron — respondeu o médico tristemente. — Ele vai.