12
— Não foi só uma gastroenterite, foi?
Ella e Margaret estavam na cozinha, fazendo picles de pepino, quiabo e casca de melancia. O trabalho era árduo e não havia atalhos para esse processo. Os legumes e as cascas tinham de ser cuidadosamente lavados, fatiados e branqueados. As jarras Mason e suas tampas tinham de ser fervidas. Os temperos e o vinagre eram cozinhados em fogo brando juntos, para obter os melhores sabores.
Tudo na cozinha estava fumegando.
Inclusive Ella, que puxou para trás cachos de cabelo que haviam se soltado do seu coque. Ela olhou para Margaret, que distribuía generosamente uma mistura de vinagre recendendo a endro sobre as hastes de pepino que empurrara firmemente para dentro de uma jarra. Ella estava preparada para se fazer de desentendida ou mentir em resposta à pergunta de Margaret, mas, quando sua leal empregada se virou para olhá-la, soube que essa duplicidade era inútil.
Margaret sabia, ou pelo menos pressentia, que o sr. Rainwater sofria de uma doença, e não seria enganada pela explicação que eles tinham dado no dia em que o dr. Kincaid foi chamado a casa para tratá-lo.
— Não, Margaret. Não foi só uma gastroenterite.
— Ele não come muito. Come menos a cada dia que passa. Achei que fosse apenas o calor. — Margaret pôs o selo na borda da jarra e depois enroscou o anel. Enxugando as mãos no avental, virou-se para Ella. — Ele está muito doente?
— Muito.
Ella não precisou se estender. Seu tom disse tudo. Os olhos de Margaret ficaram marejados de lágrimas.
— Pobre, pobre alma. Quanto tempo tem?
— Ninguém sabe ao certo.
— Um ano?
Ella balançou a cabeça.
— Não tanto.
Margaret ergueu o avental para soluçar na bainha dele.
— Por favor, não diga nada sobre isso a ninguém, especialmente a ele. Ele não quer que ninguém saiba. Não quer fazer um estardalhaço disso. Não aja de um modo diferente com ele. Prometa-me que não fará isso.
— Não farei — murmurou Margaret, enxugando os olhos. — Mas não vai ser fácil, porque penso muito nele. Ele é um cavalheiro, o homem branco mais decente que conheço.
— Se você se sente assim em relação a ele, a melhor coisa que pode fazer é tratá-lo normalmente. Não deixe transparecer que sabe.
— Sim, senhora.
Ella começou a fatiar rodelas de pepino para seus picles agridoces.
— A senhora sabia? Antes do dia em que tivemos de chamar o médico?
— Sabia antes de ele se mudar.
— A senhora é uma boa mulher.
Segurando uma faca acima da tábua de cortar, Ella ergueu a cabeça e olhou pela janela por sobre o escorredor. O vapor a embaçara. Enquanto olhava, o vapor se condensou em uma gota de água iridescente que desceu pelo vidro como uma gota de chuva, ou lágrima.
Depois daquela conversa com Margaret, Ella começou a prestar mais atenção ao apetite do sr. Rainwater, ou à falta dele. Monitorava quanta comida ele deixava no prato após cada refeição. Uma noite, quando estava tirando a mesa, perguntou-lhe se o bolo de carne não estava ao seu gosto.
— Estava delicioso, sra. Barron. Mas meus olhos foram maiores do que minha barriga. Servi-me de um pedaço muito grande.
Mas, dali em diante, ele tentou limpar mais seu prato. Ella ficou animada, até uma noite em que viu do quão pouco se serviu. Sua porção de frango e almôndegas era menor do que ela servira para Solly.
Ella não mencionou isso para ele na frente das irmãs Dunne ou do sr. Hastings, que ficou desapontado quando o sr. Rainwater recusou uma partida de xadrez e, dizendo que preferia ler naquela noite, pediu licença e foi para o andar de cima.
Antes de ir para a cama, Ella decidiu vê-lo. Raramente ia para o andar de cima quando seus hóspedes haviam se recolhido, achando que eles tinham direito à privacidade. Mas sabendo que o sr. Rainwater sofrera em silêncio durante uma noite inteira e a metade de um dia antes de ela descobrir seu sofrimento, sentiu que tinha um motivo para quebrar sua regra. Disse a si mesma que se nenhuma luz brilhasse por baixo da porta dele não o perturbaria, e ninguém jamais saberia que estivera ali. Mas se a luz estivesse acesa, verificaria se ele estava confortável.
Assim que Ella alcançou o patamar da escada, viu que a porta do sr. Rainwater era a única com uma luz brilhando por baixo. Mantendo seus passos leves para não incomodar os outros ou alertá-los de sua presença, andou pelo escuro corredor até o quarto dele, onde bateu levemente na porta.
— Sim?
— Sou eu, sr. Rainwater — sussurrou Ella. — O senhor está bem?
— Sim.
Ella esperou ele dizer mais. Quando não disse, perguntou se poderia entrar.
— Sim.
Ela abriu a porta. O sr. Rainwater estava sentado na beira da cama, mas era óbvio que estivera deitado segundos antes. O travesseiro tinha a marca da sua cabeça e seus cabelos estavam desgrenhados. Ele estava vestido, embora tivesse tirado o paletó e a gravata e abaixado os suspensórios. Os punhos da camisa estavam desabotoados. Seus sapatos estavam no chão ao lado da cama, mas ele ainda usava meias.
Sua pele estava pálida como cera, mas isso podia ser atribuído ao brilho forte da luminária de leitura na mesa de cabeceira, que também transformava suas órbitas em cavernas escuras, evitando que ela examinasse seus olhos.
Ella entrou no quarto, mas deixou a porta aberta.
— Espero não estar incomodando.
— De modo algum.
— Eu queria lhe perguntar se o senhor acha que eu deveria escrever para uma daquelas escolas para crianças especiais que o dr. Kincaid recomendou.
O sr. Rainwater a olhou por um longo instante, e então se levantou.
— A senhora não acreditou em mim.
— Como?
— A senhora não acreditou em mim quando eu lhe disse que estava bem. Foi por isso que veio.
Ella sorriu, envergonhada.
— Confesso que sim.
— A senhora mente muito mal.
— Sei disso.
— Não é um defeito ser tão honesta que não consegue esconder uma mentira.
Eles sorriram um para o outro.
— E o senhor?
— Se eu minto bem?
— O senhor está bem?
— Sim.
Ela apontou com a cabeça para o livro que ele tinha em uma das mãos, com o dedo indicador marcando onde estava.
— O senhor realmente subiu cedo para poder ler seu livro.
— Adeus às armas. Já o leu?
— Eu queria ler. Não tenho muito tempo para leitura.
— É ótimo.
— Tem um final triste?
— Dizem que é triste, mas bonito. Eu a informarei.
Agora se sentindo inoportuna, Ella recuou e estendeu o braço para a maçaneta da porta.
— Peço desculpas pela intrusão. Notei que não comeu bem esta noite. Queria me certificar de que não estava… de que estava descansando bem.
— Agradeço sua preocupação, mas estou bem.
— Então boa-noite, sr. Rainwater.
— Boa-noite, sra. Barron.
Ela fechou a porta, mas ficou encolhida por vários momentos no corredor escuro, com a mão segurando a maçaneta e o coração apertado de indecisão, perguntando a si mesma se havia feito bem em fingir que não vira na mesa de cabeceira, junto com as abotoaduras de ouro e o relógio de bolso, a seringa e ampola de analgésico.
Na manhã seguinte, Ella ainda não tinha certeza. Deveria ou não avisar o dr. Kincaid, a quem prometera telefonar ao menor sinal de desconforto do sr. Rainwater? Estava prestes a dar o telefonema quando o sr. Rainwater se juntou às irmãs Dunne à mesa de jantar.
— Qual é o café da manhã de hoje, senhoras?
— Panquecas — informou-lhe a srta. Violet.
— Meu favorito.
— O meu também.
Para não ficar atrás da irmã, a srta. Pearl disse:
— E o mais delicioso melão doce que tivemos em toda esta estação.
— Então deve ser isso.
— Isso o que, sr. Rainwater?
— A fonte desse brilho especial nas duas esta manhã — disse ele, provocando-as com uma piscadela. — Melão doce!
Elas riram nervosamente e a srta. Pearl o acusou de ser um travesso galanteador. Os olhos dele se encontraram com os de Ella quando ela despejou café em sua xícara.
— Bom-dia, sra. Barron.
— Espero que tenha tido uma noite tranquila, sr. Rainwater.
— Dormi como um bebê.
Mas suas olheiras profundas a fizeram se perguntar se, na verdade, ele mentia melhor do que ela. Ele comeu bem no café da manhã, o que a tranquilizou um pouco. Depois da refeição, levou uma caixa de dominós, um baralho e Solly para a varanda da frente. Ficaram lá por uma hora. Quando ele trouxe Solly de volta, sorriu para o garoto.
— Bom trabalho, Solly.
— Ele fez algo de especial?
— Tudo que ele faz é especial, sra. Barron.
— Sim, é. — Após um segundo, ela disse: — O que eu lhe perguntei na noite passada não foi apenas uma desculpa para ver como o senhor estava. Gostaria da sua opinião.
— Sobre as escolas para as crianças especiais?
— Eu deveria lhes escrever e perguntar sobre seus currículos?
— Que mal haveria nisso?
— Nenhum, eu suponho, embora ache que nunca conseguiria mandar Solly para longe.
— Enquanto não souber mais, não poderá tomar uma decisão inteligente. O próprio Murdy admitiu que sabe muito pouco sobre crianças como Solly. Mas essas escolas podem fornecer respostas e orientação.
Mudando de ideia, ela disse:
— Pedirei algumas informações.
— Ótimo. — Parecendo feliz com a decisão dela, o sr. Rainwater pediu licença e continuou a andar pelo corredor central na direção da escada. Quando estava a meio caminho da subida, Ella o chamou.
— Posso lhe levar alguma coisa, sr. Rainwater?
Ele parou e se virou.
— Como o quê?
— Um copo de chá gelado?
— Não, obrigado.
— Estava terrivelmente quente na varanda.
— Não estou com sede.
Ele deu os próximos passos, um pouco mais devagar, pensou Ella.
— Tem certeza de que está se sentindo bem? O senhor parece…
O sr. Rainwater se virou.
— Estou bem.
Era a primeira vez que Ella o ouvira levantar a voz, a primeira vez em que ele algum dia revelara irritação, e isso foi um tamanho choque que por um momento ela não conseguiu pensar no que dizer ou fazer. Então pegou Solly pela mão e o levou para a cozinha, deixando a porta se fechar atrás deles.
Depois do almoço, Ella decidiu ir com Solly a pé para a cidade. Tanto quanto eles precisavam de exercício, ela acreditava que esse tempo fora de casa faria bem a ambos.
Contudo, fazia um calor inclemente. O vestido de Ella estava úmido de suor quando eles chegaram à mercearia. Seu interior comparavelmente frio pareceu agradável, e Solly ficou contente em observar o ventilador de teto, por isso ela vagueou por entre as prateleiras enquanto ia eliminando itens de sua lista de compras. Logo terminou.
— Isso é tudo por hoje, sra. Barron?
— Sim, obrigada, sr. Randall. Ah, espere, dois Dr Peppers gelados, por favor.
O merceeiro olhou de relance para Solly, que estava em pé ao lado dela, balançando a cabeça.
— Certo. Quer que eu abra para a senhora?
— Por favor.
Uma grande mão entrou em seu campo de visão direito e jogou duas moedas de cinco centavos de dólar no balcão.
— Por minha conta. — Quando Ella se virou, deu de cara com Conrad Ellis. Seu olhar malicioso era mais desfigurante que sua deplorável marca de nascença.
— Faz muito tempo que não a vejo, Ella.
— Olá, Conrad.
Ele avaliou a aparência de Ella de um modo que era insultante e fez a pele dela formigar.
— Está bonita. Continua em boa forma. — Ella não respondeu a isso. Seu aparente embaraço só fez aumentar o sorriso de Conrad. Olhando para o sr. Randall, ele disse: — Os Dr Peppers são por minha conta.
— Obrigada, Conrad — disse Ella firmemente —, mas o sr. Randall os porá na minha conta.
Conrad se esticou sobre o balcão e socou o braço do merceeiro.
— O sr. Randall me deixará lhe pagar um refrigerante, não é, sr. Randall?
O comerciante deu um sorriso fraco para Ella.
— Eu já tinha fechado sua conta, sra. Barron. — Ele não tinha, mas obviamente não queria discutir com Conrad. Pegou as moedas no balcão, se virou rapidamente e pegou dois refrigerantes na caixa de metal. Tirou lascas de gelo das garrafas e se apressou a abri-las. Depois as pôs sobre o balcão.
— Obrigado. Vou encaixotar suas compras e enviar pelo filho de Margaret.
— Obrigada.
Depois de olhar desconfiadamente para Conrad, ele desapareceu em seu almoxarifado.
Conrad era uma presença volumosa que Ella tentou ignorar enquanto pegava a mão de Solly e se dirigia à porta. Ficou feliz por não haver mais ninguém na loja, porque não queria nenhuma testemunha desse encontro. Ao mesmo tempo, desde a retirada do sr. Randall, estava sozinha com Conrad, o que a deixava claramente desconfortável e até mesmo com um pouco de medo.
Ao passar por Conrad, ele disse:
— Ei, você esqueceu suas bebidas.
— Mudei de ideia.
— Uau! Não seja assim, Ella. — Conrad agarrou o braço de Ella, que o puxou imediatamente para trás. Ele riu. — Qual é o problema? Não tem tempo para conversar com um velho amigo?
— Hoje não. Preciso ir para casa.
— Ainda está cozinhando e limpando para outras pessoas?
— Estou dirigindo um negócio.
— É esse o nome que dão para fazer camas e esfregar chãos todos os dias? Dirigir um negócio? — bradou ele com desdém. — É boa demais para isso, Ella. Nunca deseja algo melhor?
— Não.
— Aposto que deseja — disse ele, arrastando as palavras.
Ella tentou evitá-lo, mas ele deu um rápido passo para o lado e bloqueou seu caminho.
— Deixe-me passar, Conrad.
— Teve notícias daquele seu marido miserável?
Ella tentou novamente evitá-lo, mas ele era rápido demais para ela, principalmente porque ela puxava Solly pela mão.
— Ele simplesmente fugiu, não foi? Por causa do seu filho aqui. Acho que não conseguiu suportar este garoto ser o idiota da cidade.
Ella ferveu de raiva quando Conrad se inclinou e se pôs ao nível dos olhos de Solly, que olhou através dele.
— Afinal de contas, o que há com ele? — Conrad acenou sua mão na frente do rosto de Solly e disse com voz de falsete: — Uhu-uhu! Tem alguém aí?
— Pare com isso! — Ella tentou empurrar Conrad para o lado, mas foi como tentar empurrar um vagão de trem. Ele pôs a mão sobre a dela, prendendo-a em seu peito. Ela tentou soltá-la, mas Conrad a apertou sob a dele. — Solte-me!
Rindo de seus esforços inúteis, ele disse:
— Sempre teve coragem, Ella. Eu gostava disso. Nem mesmo a fuga do seu marido a venceu, não é? Apesar da vergonha de seu filho. Agora que o vi de perto, isso mostra que não podemos acreditar em tudo que ouvimos. O que ouvi foi que ele ba… ba… baba, e está o tempo todo su… su… sujando as ca… ca… calças.
— O senhor realmente deveria tentar corrigir essa gagueira, sr. Ellis.
O sr. Rainwater abriu a porta de tela da mercearia e entrou. Ella quase chorou de alívio quando o viu. Conrad soltou a mão dela e se virou para ver quem interrompera sua intimidação.
— Boa-tarde, sra. Barron. — O sr. Rainwater ergueu a aba do seu chapéu ao se aproximar, colocando-se habilmente entre ela e Conrad.
Eles olharam nos olhos um do outro. Com esforço, Ella controlou sua respiração.
— sr. Rainwater.
— Margaret me disse que a senhora havia vindo para a cidade. Eu tinha um assunto para resolver, por isso pensei em encontrá-la e me oferecer para levar a senhora e Solly em casa.
— Isso é muito gentil da sua parte. Obrigada.
Ele fez um amplo movimento circular com o braço, indicando-lhe para ir na direção da porta e se afastar de Conrad.
Mas Conrad não seria ignorado. Segurou o ombro do sr. Rainwater e o fez se virar de frente para ele.
— Ei, ouvi falar em você.
— Também ouvi falar no senhor.
— Não gostei particularmente do que ouvi.
O sr. Rainwater sorriu agradavelmente.
— Então também temos isso em comum.
Conrad demorou vários segundos para entender o que ele quis dizer e, quando entendeu, seus olhos se estreitaram até se tornarem fendas cheias de maldade, e sua marca de nascença escurecer com a raiva.
— É o novo hóspede de Ella.
— Sim, estou alugando um quarto na casa dela.
Conrad abafou o riso e perguntou maliciosamente:
— O que mais está fazendo lá?
O sr. Rainwater permaneceu em pétreo silêncio, embora Ella reconhecesse o familiar enrijecimento de seu maxilar. Conrad tinha uns 20 quilos a mais do que ele, mas o sr. Rainwater não pareceu nem um pouco intimidado.
— Por favor, saia do caminho, sr. Ellis. Estamos prontos para ir agora.
Conrad ergueu as duas mãos, se rendendo.
— Certo, certo. Eu só estava tentando comprar um refrigerante para Ella e seu filho idiota. Fazer algo de bom para ela. — Ele dividiu um sorriso insinuador entre eles.
— Sabe o que eu acho? Acho que é você que está fazendo algo de bom para ela. Todas as noites? Quando as luzes se apagam naquela grande casa velha? — Ele deu uma piscadela obscena para Ella.
O sr. Rainwater pôs a mão na região lombar dela e a empurrou gentilmente na direção da porta. Ella sentiu a pressão de seu toque e ficou confortada com o quanto era forte. Colocando Solly na frente dela, o impeliu na direção da porta. Quase a tinham alcançado quando Conrad segurou novamente o ombro do sr. Rainwater.
— Está pensando que porque é parente do dr. Kincaid pode meter seu nariz onde não é chamado? Bem, não pode. Aqui não gostamos de forasteiros intrometidos. Está me ouvindo? Se quer se intrometer, criar problemas, incitar os negros e a gentalha, vá fazer isso em outro lugar e me poupe o trabalho de ter de chicotear seu traseiro.