HEIDEGGER

Martin Heidegger (1889-1976) nasceu na Alemanha e foi um dos filósofos mais originais e influentes do século XX. Procurou, a partir de uma crítica radical à tradição da metafísica ocidental (que segundo sua interpretação se origina em Platão), dar um novo rumo, um novo sentido à filosofia, que fosse também a busca de algo mais originário, mais fundamental, a retomada da ontologia, a superação do “esquecimento do Ser”, que teria ocorrido nesta tradição.

Sua principal obra, que permaneceu inacabada, Ser e tempo (Sein und Zeit, cf. 1927), foi publicada quando Heidegger era professor na Universidade de Marburg. Dessa mesma época são o livro Kant e o problema da metafísica (1929), em que critica o neokantismo, e os textos “O que é a metafísica” (1929) e “Sobre a essência da verdade” (1930). Nesses escritos Heidegger desenvolve sua crítica à tradição e formula sua nova perspectiva filosófica.

A análise erudita e original que Heidegger propõe da Alegoria da Caverna de Platão (República, VII) é ilustrativa disso. Ele localiza nesse texto uma alteração profunda no sentido do conceito grego de verdade (alétheia), alteração que marcará o desenvolvimento da tradição metafísica ocidental. Alétheia teria originariamente, na tradição poética e mítica grega e chegando aos pré-socráticos, o sentido de manifestação, de desvelamento do Ser. Etimologicamente, é uma palavra formada pelo alpha privativo grego, que designa a negação, servindo de prefixo ao termo lethe, véu, encobrimento. Alétheia significa, assim, literalmente “desvelamento”, “descobrimento”, “retirada do véu”. “Verdade” tem, portanto, um sentido primordialmente ontológico, significando o mostrar-se do Ser. Quando, no texto da Alegoria da Caverna, Platão descreve o processo de libertação do prisioneiro, mostra como este, ao se libertar, sente-se desorientado pela visão direta do fogo na caverna, e depois da luz no mundo externo, que o ofuscam. É necessário, diz Platão, que o prisioneiro adapte a sua visão a essa nova realidade, para que possa ver corretamente (orthótes). Essa noção de “visão correta” inaugura, segundo Heidegger, a tradição metafísico-epistemológica. A verdade passa a ser agora definida como adequação do olhar ao objeto, como correspondência entre o modo de ver e a natureza da coisa, encontrada, por exemplo, na fórmula aristotélico-escolástica segundo a qual a verdade é a adequação do intelecto com a coisa. Isto levou à perda do sentido originário de manifestação/revelação do ser. A verdade torna-se assim uma relação sujeito-objeto, base de toda concepção tradicional de epistemologia – central no pensamento moderno, mas originando-se, segundo essa interpretação, já na teoria platônica do conhecimento.

Contra essa tendência dominante, Heidegger visa trazer à luz o Ser, pesquisar o sentido do Ser, enquanto desvelamento, manifestação. É necessária, assim, uma análise ontológica e hermenêutica (interpretativa, de compreensão de sentido) que revele “o ente que nós somos”, o ser-aí, o Dasein. Para Heidegger, o homem é o único ente que busca o Ser. Em sua terminologia, Dasein deve substituir “sujeito”, ou “eu”, devido ao sentido que esses termos adquiriram na filosofia da consciência e da subjetividade do período moderno.

Também a questão do Tempo tem um lugar central na análise de Heidegger. A temporalidade é a estrutura mais fundamental do Ser. O ser-aí (Dasein) existe como antecipação, como previsão de seus projetos, e caracteriza-se assim como possibilidade, como ser-possível, voltado para o futuro. Porém, o ser-aí existe como um Ser já lançado, já se encontra no mundo, portanto está também voltado para o passado e depende de sua memória. Além disso, o ser-aí existe como presença, existe no presente, cujo modo de apreensão é a intuição. Esses são os elementos constitutivos do ser-aí, enquanto temporalidade. Segundo Heidegger, “a essência (Wesen) do ser-aí reside em sua existência” (Ser e tempo, §9).

Já no §34 encontramos o início da reflexão de Heidegger sobre a linguagem, através da distinção que formula entre discurso (Rede) e linguagem (Sprache), embora essa não seja ainda uma questão central em seu pensamento. Nos textos, da década de 1950, reunidos em A caminho da linguagem (1959), sua reflexão mais elaborada sobre a linguagem, temos a visão segundo a qual a linguagem deve ser vista fora da relação com a subjetividade, uma vez que não é o ser humano, mas a linguagem, que fala: “Die Sprache spricht” (“A linguagem fala”), é como ele expressa essa visão.

A recuperação do sentido originário de Ser e da verdade como manifestação da essência se dá através de uma retomada, de uma releitura, de alguns filósofos pré-socráticos, notadamente Heráclito e Parmênides, e da interpretação da obra de poetas alemães do período do romantismo (século XIX, principalmente), como Hölderlin, Novalis, Rilke, bem como de poetas contemporâneos como Paul Celan e Stefan George. Para Heidegger, a linguagem dos poetas, livre da influência metafísica e epistemológica, encontra-se mais próxima do Ser, é capaz de expressar o sentido do Ser de forma mais autêntica – “Ser significa, no fundo, para os gregos, presença (Anwesenheit)” (Introdução à metafísica, 1935).

É preciso, assim, buscar essa linguagem que manifesta o Ser. No texto “A essência da linguagem” (1957-58), Heidegger desenvolve essa temática, e na “Carta sobre o humanismo” (1947) encontra-se sua famosa afirmação de que “a linguagem é a morada (casa) do Ser”.

CARTA SOBRE O HUMANISMO

A linguagem e o Ser

Escrita em 1947 (publicada em 1949) em resposta ao filósofo francês Jean Beaufret, nessa obra Heidegger procura dar um novo sentido a “humanismo”, afastando-se da concepção tradicional, sobretudo existencialista. Deve-se levar em conta que Jean-Paul Sartre havia apresentado uma conferência em 1945, intitulada “O existencialismo é um humanismo” (publicada no ano seguinte), e que o próprio Beaufret havia escrito textos sobre o humanismo. A questão de Beaufret é como se pode dar um novo sentido ao humanismo. Heidegger toma como ponto de partida o sentido de “homem” suposto em “humanismo” e explora suas relações com o cristianismo, o marxismo e o existencialismo. Afirma então que o homem é o “pastor do Ser”, e que sua relação com o Ser se dá sobretudo através da linguagem, entendida como “morada (casa) do Ser”, como seu “abrigo”. A linguagem não é assim apenas um instrumento, algo de que dispomos para nos comunicar, mas o homem pertence à linguagem.

Estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a essência do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito. A sua realidade efetiva segundo a utilidade que oferece. Mas a essência do agir é o consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa até a plenitude de sua essência; levá-la à plenitude, producere. Por isso, apenas pode ser consumado, em sentido próprio, aquilo que já é. O que todavia “é”, antes de tudo, é o Ser. O pensar consuma a relação do Ser com a essência do homem. O pensar não produz nem efetua esta relação. Ele apenas a oferece ao Ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo Ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, o Ser ter acesso à linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Nesta habitação do Ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são os guardas desta habitação. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do Ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam. Não é por ele irradiar um efeito, ou por ser aplicado, que o pensar se transforma em ação. O pensar age enquanto exerce como pensar. Este agir é provavelmente o mais singelo e, ao mesmo tempo, o mais elevado, porque interessa à relação do Ser com o homem. Toda a eficácia, porém, funda-se no Ser e espraia-se sobre o ente. O pensar, pelo contrário, deixa-se requisitar pelo Ser para dizer a verdade do Ser. O pensar consuma este deixar. Pensar é l’engagement par l’Être. Ignoro se do ponto de vista linguístico é possível dizer ambas as coisas (“par” e “pour”), numa só expressão, a saber: penser, c’est l’engagement de l’Être. Aqui, a palavra para o genitivo “de l’…” visa expressar que o genitivo é, ao mesmo tempo, genitivus subjectivus e objectivus. Mas nisto não se deve esquecer que “sujeito e objeto” são expressões inadequadas da Metafísica que se apoderou, muito cedo, da interpretação da linguagem, na forma da “Lógica” e da “Gramática” ocidentais. Mesmo hoje, mal somos capazes de pressentir o que se esconde neste processo. A libertação da linguagem dos grilhões da Gramática e a abertura de um espaço essencial mais original estão reservadas como tarefa para o pensar e o poetizar. O pensar não é apenas l’engagement dans d’action em favor e através do ente, no sentido do efetivamente real da situação presente. O pensar é l’engagement através e em favor da verdade do Ser. A sua história nunca é completa, ela sempre está na iminência de vir a ser. A história do Ser sustenta e determina cada condition et situation humaine.

Supondo que em si nos seja dado questionar tão simploriamente: como se comporta, então, o Ser em relação à ex-sistência? O Ser é a relação, na medida em que retém, junto a si, a ex-sistência na sua essência existencial, isto é, ex-stática, e a recolhe junto a si, como o lugar da verdade do Ser, no seio do ente. Pelo fato de o homem como ex-sistente vir a postar-se nesta relação que é a forma como o próprio Ser se destina, enquanto o homem o sustenta ex-staticamente, isto é, assume com cuidado, ele desconhece primeiro o mais próximo e atém-se ao que vem depois deste. Ele pensa até que isto é o mais próximo. Contudo, mais próximo que o próximo e, ao mesmo tempo, mais remoto que o mais longínquo para o pensamento corrente, é esta proximidade a verdade do Ser.

O esquecimento da verdade do Ser, em favor da agressão do ente impensado na sua essência, é o sentido da “decaída” nomeada em Ser e tempo. A palavra não se refere a uma queda do homem, entendida do ponto de vista da “filosofia moral” e ao mesmo tempo secularizado, mas nomeia uma relação essencial do homem com o Ser, no seio do Ser referenciado à essência do homem. Portanto, as expressões preparatórias “autenticidade” e “inautenticidade”, usadas como prelúdio, não significam uma distinção moral-existencial, nem “antropológica”, mas a relação “ex-stática” do ser humano com a verdade do Ser que é a primeira a ter que ser pensada porque até agora oculta para a Filosofia. Mas esta relação é como é não em razão da ex-sistência, mas a essência da ex-sistência é existencial-ex-staticamente a partir da essência da verdade do Ser.

QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO

  1. Em que medida a concepção de Heidegger de linguagem pode ser situada em sua crítica da tradição filosófica?
  2. Qual é, para Heidegger, a relação entre linguagem e natureza humana, segundo a Carta sobre o humanismo?
  3. Comente a frase de Heidegger “A linguagem é a morada do Ser”.
  4. Como se pode entender, para Heidegger, a expressão “trazer a linguagem” na Carta sobre o humanismo?

LEITURAS SUGERIDAS

Dubois, Christian. Heidegger: Introdução a uma leitura, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.

Inwood, Michael. Dicionário Heidegger, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.

Loparic, Zeljko. Heidegger, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.

Nunes, Benedito. Hermenêutica e poesia, Belo Horizonte, UFMG, 1999.

Stein, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger, Porto Alegre, EDPUCRS, 2002.