17
Havia um silêncio imenso no topo da montanha, e Ransom também tinha caído desmoronado diante do par humano. Quando por fim ergueu o olhar dos quatro pés abençoados, ele se descobriu falando involuntariamente, embora com voz embargada e olhos turvos.
– Não se afastem, não me levantem do chão – disse ele. – Nunca vi homem nem mulher antes. Passei toda a vida entre sombras e imagens partidas. Ó, meu Pai e minha Mãe, meu Senhor e minha Senhora, não se mexam, não me respondam ainda. Meus próprios pai e mãe eu nunca vi. Aceitem-me como seu filho. Estivemos sós no meu mundo por muito tempo.
Os olhos da Rainha o contemplaram com amor e reconhecimento, mas não era a Rainha quem mais ocupava seus pensamentos. Era difícil pensar em qualquer outra coisa que não fosse o Rei. E como eu… eu que não o vi… vou lhes dizer qual era sua aparência? Foi difícil até mesmo para Ransom me falar do rosto do Rei. Mas não nos atrevemos a ocultar a verdade. Era aquele rosto que nenhum homem pode dizer que não conhece. Talvez se queira perguntar como era possível contemplá-lo sem cometer idolatria, sem confundi-lo com aquilo de que ele era apenas a imagem. Pois a semelhança era, a seu próprio modo, infinita, tanto que quase seria possível sentir assombro por não encontrar a dor em seu semblante nem ferimentos em suas mãos e pés.
No entanto, não havia perigo de confundir, nem um único momento de confusão, nem o mínimo impulso da vontade no sentido de uma reverência proibida. Ali onde a semelhança era maior, o equívoco era menos possível. Talvez seja sempre assim. Uma primorosa imagem de cera pode ser tão parecida com um homem que por um instante nos engane. O retrato perfeito, que é muito mais profundamente parecido com ele, não o faz. Imagens de gesso do Sagrado podem até agora ter atraído para si a adoração que deveriam ter despertado pelo Ser real. Mas aqui, onde Sua imagem viva, como Ele por dentro e por fora, feita por Suas próprias mãos nuas das profundezas da capacidade artística divina, Sua obra-prima de autorretrato produzida por Sua oficina para regalar todos os mundos, andava e falava diante dos olhos de Ransom, ela jamais poderia ser considerada mais do que uma imagem. Mais que isso, a própria beleza da imagem residia na certeza de que se tratava de uma cópia, semelhante e não a mesma, um eco, um verso, uma deliciosa reverberação de música não criada prolongada em um meio criado.
Ransom perdeu-se por um tempo, maravilhado com essas coisas, tanto que, quando voltou a si, descobriu que Perelandra falava, e o que ouviu parecia ser o final de um longo discurso.
– As terras flutuantes e as terras firmes – dizia ela –, o ar e as cortinas nos portões da Imensidão dos Céus, os mares e a Montanha Sagrada, os rios acima e por baixo da Terra, o fogo, os peixes, os pássaros, os animais, e os outros das ondas que vocês ainda desconhecem. Tudo isso Maleldil põe em suas mãos a partir deste dia pelo tempo que vocês viverem e ainda mais. De agora em diante minha palavra não é nada. A palavra de vocês é uma lei imutável e a própria filha da Voz. Em todo o trajeto que este mundo percorre em torno de Arbol, vocês são Oyarsa. Aproveitem bem. Deem nomes a todas as criaturas, conduzam todas as naturezas para a perfeição. Fortaleçam os mais fracos, iluminem os mais escuros, amem a todos. Louvados sejam e se rejubilem, ó homem e mulher, Oyarsa-Perelendri, o Adão, a Coroa, Tor e Tinidril, Baru e Baru’ah, Ask e Embla, Yatsur e Yatsurah, queridos de Maleldil. Louvado seja Ele!
Quando o Rei falou em resposta, Ransom voltou a erguer o olhar para ele. Viu que o casal de humanos estava agora sentado em uma mureta baixa que se erguia perto da margem do lago. Tão forte era a luz que eles lançavam na água reflexos claros, como poderiam ter lançado em nosso próprio mundo.
– Receba nossa gratidão, bela mãe de criação – disse o Rei –, principalmente por este mundo em que você labutou por tantas eras, como a própria mão de Maleldil, para que tudo estivesse pronto para nós quando despertássemos. Até hoje não a conhecíamos. Muitas vezes nos perguntamos de quem seria a mão que víamos nas longas ondas e nas ilhas brilhantes; e de quem seria o sopro que nos encantava no vento pela manhã. Pois, embora naquela época fôssemos jovens, tínhamos a vaga noção de que dizer que era Maleldil era a verdade, mas não a verdade inteira. Este mundo nós recebemos. Nossa alegria é ainda maior porque o recebemos como dádiva tanto sua quanto d’Ele. Mas o que Ele põe em sua cabeça para você fazer de agora em diante?
– Cabe a você decidir, Tor-Oyarsa – disse Perelandra –, se eu agora me comunico somente na Imensidão dos Céus ou também naquela parte da Imensidão dos Céus que é para vocês um Mundo.
– É nosso grande desejo – disse o Rei – que você permaneça conosco, tanto pelo amor que temos por você como para você poder nos fortalecer com seus conselhos e mesmo com suas operações. Somente depois de girarmos muitas vezes em torno de Arbol atingiremos a plena capacidade de gerir o domínio que Maleldil põe em nossas mãos. Não estamos ainda maduros o suficiente para conduzir o mundo pelos Céus nem para fazer tempo bom e chuva no nosso mundo. Se lhe parecer bom, fique.
– Estou satisfeita – disse Perelandra.
Enquanto esse diálogo prosseguia, era um espanto que o contraste entre o Adão e o eldil não provocasse desarmonia. De uma parte, a voz de cristal, desprovida de emoções, e a expressão imutável no rosto branco como a neve. Da outra, o sangue correndo nas veias, o sentimento tremendo nos lábios e cintilando nos olhos, a força dos ombros do homem, o assombro dos seios da mulher, um esplendor de virilidade e uma riqueza de feminilidade desconhecidos na Terra, uma torrente de perfeita animalidade. E, no entanto, quando eles se encontravam, um não parecia ofensivo, nem o outro espectral. Animal rationale – um animal, mas também uma alma racional. Essa, lembrou-se ele, era a antiga definição de Homem. Mas até aquele momento ele nunca tinha visto a realidade. Pois agora ele via esse Paraíso vivo, o Senhor e a Senhora, como a resolução das discórdias, a ponte que une o que de outro modo seria um hiato na criação, o fecho do arco inteiro. Ao entrar naquele vale da montanha, eles de repente tinham unido a calorosa multidão de animais atrás dele à inteligência transcorpórea a seu lado. Eles fechavam o círculo; e, com sua vinda, todas as notas isoladas de força ou beleza que aquela congregação tinha tocado até aquele momento tornaram-se uma única música. Mas agora o Rei voltava a falar.
– E, como não é simplesmente uma dádiva de Maleldil – disse ele –, mas também uma dádiva de Maleldil através de você, e por isso mais valiosa, também não é através apenas de você, mas através de um terceiro. E por isso novamente mais valiosa. E esta é a primeira palavra que digo como Tor-Oyarsa-Perelendri: que em nosso mundo, enquanto for mundo, não há de chegar manhã nem noite em que nós e todos os nossos filhos não falemos com Maleldil sobre Ransom, o homem de Thulcandra, e que não o louvemos entre nós. E a você, Ransom, digo o seguinte: que você nos chamou de Senhor e Pai, Senhora e Mãe. E acertadamente, pois esse é nosso nome. Mas, de outro modo, nós o chamamos de Senhor e Pai. Pois parece-nos que Maleldil o fez entrar no nosso mundo no dia em que chegou ao fim nosso tempo de sermos jovens. E a partir daquele dia deveríamos cair ou nos elevar, atingindo a degradação ou a perfeição. Maleldil tinha nos levado aonde Ele pretendia que estivéssemos. Mas dos instrumentos de Maleldil para tudo isso, você foi o principal.
Eles fizeram que Ransom atravessasse a água até onde estavam, e ele foi andando, pois ela lhe chegava só aos joelhos. Ele teria se jogado a seus pés, mas eles não permitiram. Levantaram-se para recebê-lo e os dois o beijaram, de boca a boca, de coração a coração, como o abraço de iguais. Eles o teriam feito sentar-se entre eles, mas, quando viram que isso o perturbava, desistiram. Ele foi e se sentou no chão plano, abaixo deles e um pouco para a esquerda. Dali ele estava de frente para a congregação: as formas imensas dos deuses e a aglomeração de animais. E então a Rainha falou.
– Assim que você levou embora o Ser do Mal – disse ela – e que acordei do meu sono, minha mente se desanuviou. Para mim é um assombro, Malhado, que durante todos aqueles dias você e eu pudéssemos ter sido tão jovens. Agora está tão claro o motivo para ainda não morar na Terra Fixa. Como eu poderia desejar morar lá se não fosse por ela ser Fixa? E por que eu haveria de querer o Fixo se não fosse para ter certeza de ser capaz de um dia determinar onde eu estaria no dia seguinte e o que me aconteceria? Era para rejeitar a onda… tirar minhas mãos das mãos de Maleldil, dizer a Ele: “Não assim, mas assim”, para pôr sob nosso próprio controle que tempos deveriam vir rolando em nossa direção… como se colhêssemos frutos hoje para comer amanhã em vez de pegar o que se apresentasse. Teria sido um amor sem emoção e uma confiança muito frágil. E a partir daí como poderíamos chegar a voltar ao amor e à confiança?
– Entendo bem – disse Ransom. – Se bem que no meu mundo isso seria considerado loucura. Somos maus há tanto tempo… – e então ele parou, em dúvida se estava sendo compreendido e surpreso por ter usado uma palavra para dizer maus, que até aquele momento não sabia que conhecia, e que não tinha ouvido em Marte nem em Vênus.
– Agora sabemos essas coisas – disse o Rei, vendo a hesitação de Ransom. – Tudo isso, tudo o que aconteceu em seu mundo, Maleldil pôs em nossa mente. Nós tomamos conhecimento do mal, embora não como o Ser do Mal desejava que aprendêssemos. Aprendemos mais do que do outro modo e o conhecemos melhor, pois é a vigília que compreende o sono; não o sono que compreende a vigília. Existe uma ignorância do mal que provém de ser jovem. Existe uma ignorância mais trevosa que provém de cometê-lo, da mesma forma que homens ao dormir perdem a noção do sono. Vocês em Thulcandra são mais ignorantes do mal agora do que nos tempos antes que seu Senhor e sua Senhora começaram a praticá-lo. Mas Maleldil nos fez sair de uma ignorância, e nós não entramos na outra. Foi pelo próprio Ser do Mal que Ele nos fez sair da primeira. Mal imaginava aquela mente das trevas a missão que ele de fato veio cumprir em Perelandra!
– Perdoe-me, meu Pai, se falo tolamente – disse Ransom. – Entendo como o mal chegou ao conhecimento da Rainha, mas não como chegou a seu conhecimento.
Então, inesperadamente, o Rei riu. Seu corpo era muito grande, e seu riso era como um terremoto nele, alto, profundo e prolongado, até que por fim Ransom riu também, apesar de não ter entendido a piada. E a Rainha riu também. E as aves começaram a bater as asas, e os animais a agitar a cauda. A luz pareceu mais forte, e a animação da congregação inteira se acelerou. E novas modalidades de alegria que não tinham nada que ver com a hilaridade, como a compreendemos, impregnou a todos eles, como se fosse a partir do próprio ar, ou como se houvesse dança na Imensidão dos Céus. Há quem diga que sempre há.
– Sei o que ele está pensando – disse o Rei, contemplando a Rainha. – Ele está pensando que você sofreu e lutou, e que eu recebo um mundo como recompensa. – Ele então se voltou para Ransom e prosseguiu. – Você está certo. Agora eu sei o que dizem em seu mundo sobre a justiça. E talvez digam bem, pois naquele mundo as coisas sempre estão abaixo da justiça. Mas Maleldil sempre está acima dela. Tudo é dádiva. Sou Oyarsa não por dádiva apenas d’Ele, mas pela de nossa mãe de criação; não apenas pela dela, mas pela sua; não apenas pela sua, mas pela de minha mulher. Mais que isso, de certo modo, pela dádiva dos próprios animais e aves. Através de muitas mãos, enriquecida por muitos tipos diferentes de amor e trabalho, a dádiva chega a mim. É a Lei. Os melhores frutos são colhidos para cada um por alguma outra mão.
– Não foi só isso o que aconteceu, Malhado – disse a Rainha. – O Rei não lhe contou tudo. Maleldil empurrou-o longe para um mar verde, onde florestas cresciam desde o fundo até romper as ondas…
– Seu nome é Lur – disse o Rei.
– Seu nome é Lur – repetiram os eldila. E Ransom percebeu que o Rei tinha feito não uma observação, mas um pronunciamento.
– E lá em Lur (é muito longe daqui) – disse a Rainha –, coisas estranhas lhe aconteceram.
– É aceitável perguntar sobre essas coisas? – disse Ransom.
– Foram muitas coisas – disse Tor, o Rei. – Por muitas horas, aprendi as propriedades das formas, desenhando linhas na relva de uma ilhota na qual eu viajava. Por muitas horas, aprendi coisas novas a respeito de Maleldil, de Seu Pai e da Terceira Pessoa. Sabíamos pouco sobre isso quando éramos jovens. Mas depois Ele me mostrou em uma escuridão o que estava acontecendo com a Rainha. E eu soube que ela poderia ser destruída. E então vi o que tinha acontecido em seu mundo, como sua Mãe caiu e como seu Pai caiu com ela, sem com isso fazer-lhe bem algum e trazendo as trevas para todos os seus filhos. E então surgiu diante de mim como algo que vinha na direção de minha mão… o que eu deveria fazer em caso semelhante. Ali tomei conhecimento do mal e do bem, da aflição e da alegria.
Ransom tinha calculado que o Rei relataria sua decisão; mas, quando a voz do Rei foi sumindo em um silêncio pensativo, ele não se atreveu a questioná-lo.
– Sim… – disse o Rei, meditando. – Mesmo que um homem fosse partido ao meio e uma metade se transformasse em terra, a metade viva ainda deveria seguir Maleldil. Pois se ela também se deitasse e se tornasse terra, que esperança haveria para o todo? Porém, enquanto uma metade vivesse, através dela Ele poderia instilar vida de volta na outra. – A essa altura ele fez uma longa pausa e então voltou a falar, um pouco rápido. – Ele não me deu certeza alguma. Nenhuma terra firme. É sempre preciso atirar-se na onda. – Então desanuviou o semblante e se voltou para o eldil, falando com uma voz diferente.
– Decerto, ó, mãe de criação – disse ele. – Temos muita necessidade de aconselhamento pois já sentimos crescer em nosso corpo algo que nossa jovem sabedoria dificilmente consegue alcançar. Eles nem sempre serão corpos presos aos mundos inferiores. Ouçam a segunda palavra que pronuncio como Tor-Oyarsa-Perelendri. Enquanto este Mundo girar em torno de Arbol dez mil vezes, julgaremos e inspiraremos nosso povo a partir deste trono. Seu nome é Tai Harendrimar, O Monte da Vida.
– Seu nome é Tai Harendrimar – disseram os eldila.
– Na Terra Fixa que no passado foi proibida – disse Tor, o Rei –, construiremos um lugar esplendoroso em honra a Maleldil. Nossos filhos curvarão em arco as pilastras de pedra…
– Que são arcos? – disse Tinidril, a Rainha.
– Arcos – disse Tor, o Rei – são o que acontece quando pilastras de pedra lançam galhos, como árvores, e emaranham seus ramos para sustentar uma enorme cúpula, como se fosse de folhagem, mas as folhas são de pedra esculpida. E ali nossos filhos farão imagens.
– Que são imagens? – disse Tinidril.
– Magnífica Imensidão dos Céus! – exclamou o Rei com uma forte risada. – Parece que há palavras novas em demasia no ar. Eu tinha imaginado que essas coisas saíam de sua cabeça para entrar na minha. E vejam só, você nem as tinha cogitado. Entretanto, creio que Maleldil as passou para mim através de você. Vou mostrar-lhe imagens, vou mostrar-lhe casas. Pode ser que nessa questão nossas naturezas estejam invertidas e seja você que fecunde e eu que dê à luz. Mas vamos falar de questões mais simples. Preencheremos este mundo com nossos filhos. Conheceremos este mundo até o centro. Faremos os animais mais nobres tão sábios que eles se tornarão hnau e falarão. Sua vida despertará para uma nova vida em nós, como nós despertamos em Maleldil. Quando chegar a hora, e as 10 mil revoluções estiverem prestes a terminar, rasgaremos a cortina celeste, e a Imensidão dos Céus há de se tornar tão familiar aos olhos de nossos filhos quanto as árvores e as ondas são familiares aos nossos olhos.
– E depois disso, Tor-Oyarsa? – disse Malacandra.
– Depois é intenção de Maleldil liberar o acesso à Imensidão dos Céus. Nossos corpos serão alterados, mas não totalmente. Seremos como os eldila, mas não totalmente como os eldila. E assim todos os nossos filhos e filhas serão alterados na época de sua maturidade, até que se complete o número que Maleldil leu na mente de Seu Pai antes do início dos tempos.
– E esse – disse Ransom – será o fim?
Tor, o Rei, olhou para ele com espanto.
– O fim? – disse ele. – Quem falou de fim?
– O fim de seu mundo, é o que quero dizer – disse Ransom.
– Ó, Esplendor dos Céus! – disse Tor. – Seus pensamentos são diferentes dos nossos. Por volta dessa época, não estaremos longe do início de todas as coisas. Mas há uma questão a ser resolvida antes do verdadeiro início.
– E qual é essa questão? – perguntou Ransom.
– Seu próprio mundo – disse Tor –, Thulcandra. O cerco a seu mundo será levantado, a mancha negra será extinta antes do verdadeiro começo. Nessa época, Maleldil guerreará… em nós, e em muitos que foram uma vez hnau no seu mundo, e em muitos distantes e em muitos eldila, e, em último lugar, em Si Mesmo revelado, Ele descerá a Thulcandra. Alguns de nós irão antes. É minha intenção, Malacandra, que tu e eu estejamos entre esses. Nos abateremos sobre sua Lua, na qual há um mal secreto, e que é como o escudo do Senhor das Trevas de Thulcandra, marcada por muitos golpes. Nós a destruiremos. Sua luz será extinta. Os fragmentos dela cairão em seu mundo, e os mares e o vapor subirão de tal modo que os habitantes de Thulcandra não mais verão a luz de Arbol. E à medida que Maleldil Em Pessoa se aproximar, as coisas do mal em seu mundo hão de se mostrar desprovidas de disfarces, e assim pestes e horrores cobrirão suas terras e mares. Mas no final tudo será limpo, e será apagada até mesmo a lembrança de seu Oyarsa das Trevas, e seu mundo será belo, agradável e estará reunido ao campo de Arbol. E seu verdadeiro nome será ouvido novamente. Mas pode ser, Amigo, que nenhum rumor de tudo isso circule em Thulcandra? Seu povo acha que seu Senhor das Trevas segurará a presa para sempre?
– Em sua maioria – disse Ransom –, eles pararam de pensar nesse tipo de coisa. Alguns de nós ainda têm o conhecimento, mas não percebi de imediato do que você estava falando, porque o que vocês chamam de início nós estamos acostumados a chamar de Fim dos Tempos.
– Eu não o chamo de início – disse Tor, o Rei. – É somente a erradicação de uma partida em falso, para que o mundo então possa começar. Como quando um homem se deita para dormir e descobre uma raiz torcida debaixo do ombro, ele muda de lugar e depois disso seu verdadeiro sono começa. Ou como um homem que, ao pôr os pés em uma ilha, dá um passo em falso. Ele se equilibra e só então começa sua caminhada. Você não chamaria essa tentativa de se equilibrar de fim dos tempos?
– E toda a história de minha espécie não passa disso? – indagou Ransom.
– Não vejo mais que inícios na história dos Mundos Inferiores – disse Tor, o Rei. – E em seu mundo nem houve um início. Você fala do entardecer antes que o dia tenha amanhecido. Eu agora mesmo inicio 10 mil anos de preparação… eu, o primeiro de minha espécie, minha espécie a primeira das espécies a começar. Eu lhe digo que, quando o último de meus filhos estiver maduro, e a maturidade tiver se espalhado deles a todos os Mundos Inferiores, haverá rumores de que a manhã está por chegar.
– Estou cheio de dúvidas e ignorância – disse Ransom. – Em nosso mundo, aqueles que chegaram a conhecer Maleldil acreditam que Sua vinda a nós, como homem, é o acontecimento central de tudo o que acontece. Se você tirar isso de mim, Pai, aonde há de me conduzir? Certamente não à conversa do inimigo que empurra meu mundo e minha espécie para um canto remoto e me oferece um universo, absolutamente sem centro, mas com milhões de mundos que não levam a parte alguma ou (o que é pior) a uma quantidade de mundos eternamente crescente; e me abala com números, espaços vazios e repetições e me pede para me curvar diante dessa grandeza. Ou você torna seu próprio mundo o centro? Mas fico perturbado. E o povo de Malacandra? Eles também pensariam que o mundo deles era o centro? Nem mesmo creio que seja acertado dizer que seu mundo lhes pertence. Vocês foram feitos ontem, e o mundo é antigo. A maior parte dele é de água, onde vocês não podem viver. E o que dizer das coisas por baixo da crosta? E dos enormes espaços sem absolutamente nenhum mundo? Existe uma resposta fácil a dar ao Inimigo quando Ele diz que tudo isso é desprovido de plano ou de significado? Assim que achamos que vemos um, ele se dissolve em nada, ou se transforma em algum outro plano com o qual nunca sonhamos. E o que era o centro passa a ser a borda, até duvidarmos se qualquer forma, plano ou modelo algum dia foi mais do que uma ilusão de nossos próprios olhos, enganados pela esperança ou exaustos por olhar demais. A que tudo isso leva? De que manhã vocês falam? Ela será o início do quê?
– O início do Grande Jogo, da Grande Dança – disse Tor. – Por enquanto, sei pouco sobre isso. Que falem os eldila.
A voz que falou em seguida pareceu ser a de Marte, mas Ransom não tinha certeza. E quem falou depois disso, ele não sabe de modo algum. Pois na conversa que se seguiu, se é que pode ser chamada de conversa, embora acredite que ele próprio às vezes era quem falava, nunca soube quais palavras eram dele ou de outro, ou mesmo se um homem ou um eldil estava falando. As falas seguiam-se umas às outras – se na realidade elas todas não ocorriam ao mesmo tempo – como as partes de uma música da qual todos os cinco participavam como instrumentos ou como um vento soprando através de cinco árvores isoladas juntas no alto de um morro.
– Não nos referiríamos a ela desse jeito – disse a primeira voz. – A Grande Dança não espera que as pessoas dos Mundos Inferiores participem dela para ser perfeita. Não falamos de quando ela vai começar. Ela já começou desde antes de sempre. Não houve tempo em que não nos regozijássemos diante de Seu rosto como agora. A dança que dançamos está no centro, e para a dança todas as coisas foram criadas. Louvado seja Ele!
– Ele jamais fez duas coisas iguais – disse outra voz. – Jamais pronunciou uma palavra duas vezes. Depois de terras, não terras melhores, mas animais. Depois de animais, não animais melhores, mas espíritos. Depois de uma queda, não uma recuperação, mas uma nova criação. Depois da nova criação, não uma terceira, mas a modalidade da própria mudança é alterada para sempre. Louvado seja Ele!
– Tudo está carregado de Justiça como uma árvore que se enverga com o peso dos frutos – disse ainda outra. – Tudo é correção, e não há igualdade. Não como quando as pedras são postas uma ao lado da outra, mas como quando as pedras sustentam e dão sustentação em um arco, assim é Sua ordem, domínio e obediência, fecundar e gestar, o calor batendo de relance, a vida crescendo. Louvado seja Ele!
– Os que somam anos aos anos em uma agregação irregular, ou quilômetros a quilômetros e galáxias a galáxias – disse um deles –, não conseguem alcançar Sua grandeza. O tempo dos campos de Arbol fenecerá, e os dias da própria Imensidão dos Céus estão contados. Não é assim que Ele é grande. Ele reside (todo Ele reside) no interior da semente da menor flor e não lhe falta espaço. A Imensidão dos Céus está dentro d’Ele, que está dentro da semente, e ela não O distende. Louvado seja Ele!
– A borda de cada natureza faz limite com o que não contém nem sombra nem semelhança com ela. De muitos pontos, uma linha; de muitas linhas, uma forma; de muitas formas, um corpo sólido; de muitos sentidos e pensamentos, uma pessoa; de três pessoas, Ele Em Si. Assim como o círculo está para a esfera, também os mundos antigos que não precisaram de redenção estão para o mundo no qual Ele nasceu e morreu. Assim como um ponto está para uma linha, aquele mundo está para os remotos frutos de sua redenção. Louvado seja Ele!
– Entretanto, o círculo não é menos redondo que a esfera; e a esfera é o lar e a pátria dos círculos. Infinitas multidões de círculos estão presas em cada esfera. E, se eles falassem, diriam “Para nós as esferas foram criadas”. Que nenhuma boca se abra para contradizê-los. Louvado seja Ele!
– Os povos dos mundos antigos, que nunca pecaram, pelos quais Ele jamais desceu, são os povos para quem foram criados os Mundos Inferiores. Pois se curar o que foi ferido e endireitar o que se entortou é uma nova dimensão da glória, ainda assim o direito não foi feito para poder ser entortado, nem o são para ser ferido. Os povos antigos estão no centro. Louvado seja Ele!
– Tudo o que não é em si a Grande Dança foi feito para Ele poder descer e entrar. No Mundo Caído, Ele preparou para Si Mesmo um corpo e se uniu ao Pó, conferindo-lhe glória para sempre. Esse é o objetivo e causa final de tudo ser criado, e o pecado pelo qual ele ocorreu é chamado de Afortunado, e o mundo onde isso se deu é o centro dos mundos. Louvado seja Ele!
– A Árvore foi plantada naquele mundo, mas o fruto amadureceu neste. A fonte que brotou com mistura de sangue e vida no Mundo das Trevas flui aqui com vida apenas. Já passamos as primeiras cataratas, e daqui em diante o curso d’água se aprofunda e vira na direção do mar. Esta é a Estrela da Manhã que Ele prometeu a quem conquistar. Este é o centro dos mundos. Até agora, tudo aguardou. Mas agora a trombeta soou, e o exército avança. Louvado seja Ele!
– Embora homens ou anjos os governem, os mundos existem para si mesmos. As águas nas quais vocês não flutuaram, os frutos que vocês não colheram, as cavernas às quais vocês não desceram e o fogo através do qual seus corpos não podem passar, não aguardam sua chegada para assumir a perfeição, mesmo que lhe obedeçam quando você surgir. Eras sem conta girei em torno de Arbol antes que vocês vivessem, e aquelas eras não eram desertas. Sua própria voz estava nelas, não um mero sonho com o dia em que vocês despertariam. Também elas estavam no centro. Reconfortem-se, pequenos imortais. Vocês não são a voz que todas as coisas emitem, nem existe eterno silêncio nos lugares aonde vocês não podem ir. Nenhum pé chegou a pisar, nem há de pisar, no gelo de Glund; nenhum olho espiou de lá de baixo no Anel de Lurga, e a Planície de Ferro em Neruval é casta e vazia. Entretanto, não é por nada que os deuses caminharam incessantemente pelos campos de Arbol. Louvado seja Ele!
– Aquele próprio Pó tão raro que é espalhado nos Céus, a partir do qual são feitos todos os mundos, assim como os corpos que não são mundos, está no centro. Ele não espera que olhos criados o vejam nem que mãos o toquem para ser em si mesmo uma força e esplendor de Maleldil. Somente a menor parte serviu, ou há de um dia servir, a um animal, um homem ou um deus. Mas sempre, e além de todas as distâncias, antes que eles chegassem e depois que partissem e aonde nunca iriam, ele é o que é e pronuncia com sua própria voz o coração do Sagrado. De todas as coisas, ele está mais distante d’Ele, pois não tem vida, nem juízo, nem razão; e de todas as coisas está mais próximo d’Ele, pois sem a alma intermediária, como centelhas lançadas do fogo, Ele expressa em cada grão a pura imagem de Sua energia. Cada grão, se falasse, diria “eu sou o centro; para mim todas as coisas foram feitas”. Que nenhuma boca se abra para contradizê-lo. Louvado seja Ele!
– Cada grão está no centro. O Pó está no centro. Os Mundos estão no centro. Os animais estão no centro. Os povos antigos estão lá. A espécie que pecou está lá. Tor e Tinidril estão lá. Os deuses estão lá também. Louvado seja Ele!
– Onde Maleldil está, lá é o centro. Ele está em todos os lugares. Não parte d’Ele em um lugar e parte em outro, mas em cada lugar Maleldil inteiro, até mesmo na menor pequenez fora do alcance do pensamento. Não há como sair do centro, a não ser entrando na Vontade Torta que se lança para o Lugar Nenhum. Louvado seja Ele!
– Cada coisa foi feita para Ele. Ele é o centro. Como estamos com Ele, cada um de nós está no centro. Não é como em uma cidade do Mundo Em Trevas, onde se diz que cada um deve viver por todos. Na cidade d’Ele, todas as coisas são feitas para cada um. Quando Ele morreu no Mundo Ferido, Ele morreu não por mim, mas por cada homem. Se cada homem tivesse sido o único homem criado, ele não teria feito menos. Cada coisa, desde uma única partícula de Pó até o mais forte eldil, é o objetivo e causa final de toda a criação, e o espelho em que o raio de Seu brilho vem pousar e assim retorna a Ele. Louvado seja Ele!
– No plano da Grande Dança, entrelaçam-se planos sem conta, e cada movimento se torna a seu tempo o desabrochar de toda a concepção para a qual tudo o mais vinha sendo direcionado. Assim, cada um está igualmente no centro, e ninguém está lá por ser igual, mas alguns por cederem lugar e alguns por receberem, as coisas pequenas por sua pequenez e as grandes por sua grandeza, e todos os desenhos interligados e enlaçados pelas uniões de um amor que se ajoelha com um amor provido de cetro. Louvado seja Ele!
– Ele tem uso incomensurável para cada coisa que é feita, para que Seu amor e esplendor jorrem como um rio caudaloso que tem necessidade de um grande leito e preenche do mesmo modo os poços profundos e os pequenos cantos, que ficam igualmente cheios mas que se mantêm desiguais. E, quando os encheu até a borda, ele transborda e abre novos canais. Nós também temos necessidade incomensurável de tudo o que Ele criou. Amem-me, meus irmãos, pois sou infinitamente necessário para vocês e para seu deleite fui criado. Louvado seja Ele!
– Ele não tem absolutamente nenhuma necessidade de nada que foi criado. Um eldil não é mais necessário para Ele que um grão do Pó: um mundo habitado não é mais necessário que um mundo vazio. Mas todos são igualmente desnecessários. E o que todos Lhe acrescentam não é nada. Nós também não temos necessidade de nada que foi criado. Amem-me, meus irmãos, pois sou infinitamente supérfluo, e seu amor será como o d’Ele, nascido nem de sua necessidade nem de meu mérito, mas pura liberalidade. Louvado seja Ele!
– Todas as coisas são por Ele e para Ele. Ele Se expressa também para Seu próprio deleite e vê que é bom. Ele gerou a Si próprio, e o que provém d’Ele é Ele mesmo. Louvado seja Ele!
– Tudo o que está feito parece carecer de plano à mente entrevada, porque existem mais planos do que ela procurava ver. Nestes mares existem ilhas em que os pelos da relva são tão finos e entretecidos tão próximos que, a menos que um homem os contemplasse por muito tempo, ele não veria nem pelos nem absolutamente entretecimento, mas somente algo plano e homogêneo. O mesmo ocorre com a Grande Dança. Fixe o olhar em um movimento, e ele o conduzirá por todos os passos, e isso lhe parecerá a coreografia principal. Mas a aparência será verdadeira. Que nenhuma boca se abra para negar isso. Parece não haver nenhum plano, porque tudo é plano. Parece não haver centro, porque tudo é centro. Louvado seja Ele!
– Contudo, essa aparência também é o objetivo e causa final pelos quais Ele estende tanto o Tempo e aprofunda tanto os Céus, para não ocorrer que, se nunca depararmos com as trevas, com a estrada que não leva a parte alguma, nem com a pergunta para a qual nenhuma resposta é imaginável, não tenhamos em nossa mente nenhuma imagem do Abismo do Pai, no qual, se alguém deixar cair seus pensamentos, jamais ouvirá eco algum voltar para si mesmo. Louvado, louvado, louvado seja Ele!
E agora, por uma transição que Ransom não percebeu, pareceu-lhe que o que tinha começado como fala foi transformado em imagem, ou em alguma coisa que pode ser lembrada somente como se fosse uma visão. Ele acreditou ver a Grande Dança. Ela parecia ter sido tecida com o entrelaçamento da ondulação de muitos cordões ou faixas de luz, que saltavam por cima e por baixo umas das outras, abraçando-se mutuamente em arabescos e sutilezas florais. Cada figura, quando ele a contemplava, tornava-se a figura ou foco principal de todo o espetáculo, por meio da qual seu olhar destrinchava tudo o mais, conferindo unidade ao conjunto – só para em seguida tudo se emaranhar, quando ele olhava para o que lhe tinham parecido ser meras decorações periféricas, e descobria que ali também a mesma hegemonia era reivindicada, e a reivindicação era aceita, sem que o modelo anterior fosse com isso prejudicado, mas que encontrasse em sua nova subordinação uma importância maior do que a da condição à qual tinha abdicado. E, sempre onde as fitas ou serpentes de luz se cruzavam, ele também podia ver (mas a palavra “ver” é agora obviamente inadequada) corpúsculos diminutos de brilho momentâneo. E de algum modo soube que essas partículas eram as generalidades temporais de que fala a história: povos, instituições, climas de opiniões, civilizações, artes, ciências e assemelhados – cintilações efêmeras que alardeavam sua breve canção e desapareciam. As fitas ou cordões em si, nos quais viviam e morriam milhões de corpúsculos, eram objetos de alguma natureza diferente. De início ele não saberia dizer qual. Mas acabou sabendo que em sua maioria eram entidades individuais. Se for assim, o tempo no qual a Grande Dança ocorre é muito diferente do tempo que conhecemos. Alguns dos cordões mais finos e delicados eram seres que consideramos de vida curta: flores, insetos, uma fruta, uma tempestade e uma vez (achou ele) uma onda no mar. Outros eram coisas que também consideramos duradouras: cristais, rios, montanhas ou mesmo estrelas. Muito acima dessas em amplitude e luminosidade, e faiscando em cores fora do alcance de nosso espectro, estavam as linhas dos seres personalizados, diferentes porém uns dos outros em esplendor, como todos eles eram diferentes de todas as classes anteriores. Mas nem todos os cordões eram indivíduos: alguns eram verdades universais ou qualidades universais. Não foi portanto surpresa para ele descobrir que tanto essas como as pessoas eram cordões; e que tanto umas como outras se posicionavam juntas em contraste com os meros átomos de generalidade que viviam e morriam nos confrontos de suas correntezas. Mas depois, quando voltou para a Terra, ele se maravilhava. E àquela altura a coisa devia ter passado totalmente da região da visão, como nós a entendemos. Pois ele diz que toda a figura sólida dessas voltas apaixonadas e interinanimadas de repente se revelou como a mera superfície de um desenho muito mais vasto, em quatro dimensões; e essa figura, como o limiar de outras em outros mundos. Até que subitamente, com a aceleração ainda maior do movimento, com o entrelaçamento tornando-se ainda mais extasiante, a pertinência de tudo para com tudo, ainda mais intensa, à medida que dimensões se somavam a dimensões e aquela parte dele que conseguia raciocinar e lembrar era deixada cada vez mais para trás daquela parte dele que via, naquele exato instante, no próprio zênite da complexidade, a complexidade foi devorada e se apagou, como uma fina nuvem branca desaparece no azul duro e causticante do céu, e uma simplicidade para além de toda compreensão, antiga e jovem como a primavera, ilimitável, cristalina, puxou-o com cordões de desejo infinito para sua própria imobilidade. Ele se alçou para uma quietude, uma privacidade e um frescor tais que, no mesmo instante em que estava mais distante de nosso modo normal de ser, ele teve a sensação de ser aliviado de sobrecargas, de acordar de um transe e voltar a si. Com um gesto de descontração, olhou ao redor.
Os animais tinham sumido. Os dois vultos brancos tinham desaparecido. Tor, Tinidril e ele estavam sós, à luz normal do dia perelandriano, no início da manhã.
– Onde estão os animais? – perguntou Ransom.
– Foram tratar de suas pequenas atividades – disse Tinidril. – Foram criar filhotes e pôr ovos, construir ninhos, tecer teias e cavar tocas, foram cantar, brincar, comer e beber.
– Não esperaram muito – disse Ransom –, pois sinto que ainda é de manhã cedo.
– Mas não a mesma manhã – disse Tor.
– Então estamos aqui há muito tempo? – perguntou Ransom.
– Estamos – disse Tor. – Eu não sabia até agora. Mas cumprimos uma volta inteira em torno de Arbol desde que nos encontramos no alto desta montanha.
– Um ano? – disse Ransom. – Um ano inteiro? Céus, o que pode a esta altura ter acontecido em meu próprio mundo das trevas! Você sabia, Pai, que tanto tempo estava se passando?
– Não senti o tempo passar – disse Tor. – Acredito que as ondas do tempo vão mudar com frequência para nós de agora em diante. Estamos nos aproximando de ter nossa própria escolha, se vamos estar acima delas e poder ver muitas ondas juntas ou se as alcançaremos uma a uma como costumávamos.
– Veio à minha mente – disse Tinidril – que hoje, agora que o ano nos trouxe de volta ao mesmo lugar nos Céus, os eldila virão buscar Malhado para levá-lo de volta a seu próprio mundo.
– Você tem razão, Tinidril – disse Tor e então olhou para o pé de Ransom. – Um orvalho vermelho está saindo de seu pé, como uma pequena fonte.
Ransom olhou e viu que seu calcanhar ainda estava sangrando.
– É – disse ele. – É onde o Ser do Mal me mordeu. O vermelho é hrū (sangue).
– Sente-se, amigo – disse Tor –, e deixe-me lavar seu pé neste lago. – Ransom hesitou, mas o Rei o forçou. E, assim, logo se sentou na pequena margem, e o Rei se ajoelhou diante dele na água rasa, pegando o pé ferido na mão. Ele se calou enquanto olhava para o ferimento. – Então isso é hrū – disse ele, por fim. – Nunca vi um fluido desses antes. E essa é a substância com a qual Maleldil refez os mundos antes que qualquer mundo fosse feito. – Ele lavou o pé por muito tempo, mas o sangramento não estancou.
– Quer dizer que Malhado vai morrer? – disse Tinidril, por fim.
– Acho que não – disse Tor. – Creio que qualquer um de sua espécie que tenha respirado o ar que ele respirou e bebido as águas que ele bebeu, desde que chegou à Montanha Sagrada, não morrerá com facilidade. Diga-me, Amigo, não foi assim no seu mundo que, depois que perderam o Paraíso, os homens da sua espécie não aprenderam a morrer depressa?
– Ouvi dizer – disse Ransom – que aqueles das primeiras gerações viviam muito, mas a maioria considera isso apenas uma História ou uma Poesia, e eu não tinha pensado na causa.
– Ah! – disse Tinidril, de repente. – Os eldila chegaram para levá-lo.
Ransom olhou ao redor e viu não as formas brancas semelhantes a seres humanos, na qual tinha visto Marte e Vênus pela última vez, mas apenas as luzes quase invisíveis. O Rei e a Rainha pareceram reconhecer os espíritos também com essa apresentação. Com a mesma facilidade, pensou, com que um Rei terreno reconheceria um conhecido, mesmo que não estivesse usando os trajes da corte.
O Rei soltou o pé de Ransom, e todos os três foram na direção da urna branca. Sua tampa estava no chão, ao lado. Todos sentiram vontade de se demorar.
– Que é isso que estamos sentindo, Tor? – disse Tinidril.
– Não sei – disse o Rei. – Um dia vou dar-lhe um nome. Hoje não é um dia para criar nomes.
– É como um fruto com uma casca muito grossa – disse Tinidril. – A alegria de nosso encontro, quando nos reunirmos de novo na Grande Dança, é a parte doce. Mas a casca é grossa. Grossa em mais anos do que eu consigo contar.
– Agora você vê – disse Tor – o que o Ser do Mal queria ter feito conosco. Se lhe déssemos ouvidos, agora estaríamos tentando chegar ao doce sem morder a casca.
– E assim ele não seria de modo algum tão doce – disse Tinidril.
– Chegou a hora de ele partir – disse a voz tilintante de um eldil. Ransom não encontrou o que dizer quando se deitou na urna. Os lados erguiam-se altos como paredes. Para além deles, como que emoldurados em uma janela com o formato de um caixão, ele via o céu dourado e os rostos de Tor e Tinidril.
– Vocês precisam cobrir meus olhos – disse ele, afinal. E as duas formas humanas saíram do campo visual por um instante e voltaram. Seus braços estavam cheios dos lírios vermelhos. Os dois curvaram-se e o beijaram. Ele viu a mão do Rei erguida em uma bênção e depois nunca mais viu nada naquele mundo. Eles cobriram seu rosto com as pétalas frescas até ele não conseguir enxergar no meio de uma nuvem vermelha e perfumada.
– Tudo pronto? – disse a voz do Rei.
– Adeus, Amigo e Salvador, adeus – disseram as duas vozes. – Adeus até que nós três passemos das dimensões do tempo. Fale sempre de nós com Maleldil, como nós sempre falamos de você. Que o esplendor, o amor e a força o acompanhem.
Veio então o forte barulho desagradável da tampa sendo bem fechada acima dele. Depois, por alguns segundos, ruídos lá fora, no mundo do qual ele estaria eternamente separado. E então sua consciência foi engolida.