Prefácio

Nos tempos atuais de crescente visibilidade pública dos candomblés, dos seus registros nos livros de tombo e da retórica de preservação dos patrimônios culturais afro-brasileiros, não resulta supérfluo lançar um olhar atento para um passado não tão remoto em que tais práticas de matriz africana eram ora silenciadas, ora perseguidas e depreciadas porquanto identificadas com atraso e desvio dos modelos civilizatórios europeus. Se esse olhar retrospectivo resulta salutar ao constatar o quanto se avançou, ele também nos alerta para o quanto ainda se precisa avançar, pois os discursos da intolerância religiosa de ontem se alastram até hoje, embora em novos púlpitos, com os mesmos efeitos perniciosos. Nesse sentido, o livro de Edmar Ferreira Santos atinge uma meta que qualquer pesquisa em história social pode almejar: a de nos permitir compreender em detalhe a complexidade do passado para, através dele, iluminar os paradoxos do presente.

Filho da cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, poeta, professor, militante antirracista, formado em história, mas com interesse interdisciplinar na antropologia, Edmar Ferreira é conhecedor atento da vida cultural e religiosa da heroica cidade e sabedor de alguns dos seus segredos. Talvez por isso ele tenha decidido debruçar-se no universo da história local e, com palavras medidas, nos evocar, nos ajudar a imaginar as luzes e as sombras de figuras, enredos e memórias que, empoeirados, há muito esperavam ser descortinados, nas entrelinhas dos documentos. De fato, a história política e cultural de Cachoeira na República Velha, mais precisamente nas três primeiras décadas do século XX, constituía um universo e período que ainda ninguém abordara de forma criteriosa e sistemática. Apenas por esse aspecto, a obra que se segue seria digna de destaque e interesse, mas não só.

O texto inicia com uma análise do discurso sobre as práticas lúdicas e religiosas afro-baianas, veiculado nas notícias do conservador jornal A Ordem, uma das mais influentes publicações da cidade. Além de constatar a continuidade com a ideologia e as práticas disciplinares dos períodos do Império e Colônia, o autor identifica uma mudança significativa, como seja a progressiva aparição, junto ao velho "discurso da feitiçaria" tradicionalmente instigado pela igreja católica, de um novo "discurso do fetiche", introduzido através da Europa pela ciência médico-higienista. Enquanto o primeiro condenava as práticas afro-baianas como formas de superstição marcadas pela presença do diabo, o segundo as condenava pela suposta irracionalidade dos praticantes e pela exploração que os charlatães faziam da sua ignorância. Numa leitura crítica e metodologicamente cuidadosa, que examina e contextualiza o uso e os sentidos de palavras significativas que aparecem de forma recorrente nas notícias do jornal, o historiador nos mostra como os dois discursos se superpunham e reforçavam mutuamente.

Segue logo uma das partes mais originais do livro, relativa à história política do período em apreço que em Cachoeira como na Bahia de modo geral, esteve fortemente marcada pelo personalismo dos líderes locais. Um pedaço da história cachoeirana que estava ainda por ser escrita. Todavia, Edmar Ferreira desvenda a complexidade dos interesses e das disputas no seio do conservador Partido Republicano, dominante na época, e como as diversas facções se utilizavam dos candomblés, ora condenando-os e lançando contra eles campanhas repressivas, ora dando-lhes apoio, geralmente com fins eleitorais. Essa análise da interdependência entre política e religião e das nuances da sua variabilidade constitui uma singular contribuição para a história da religiosidade afro-baiana. Ao tempo em que o autor desfaz o mito de uma repressão sistemática dos candomblés e de uma posição unânime das autoridades, identificando pontuais alianças estratégicas com os grupos religiosos, ele mostra também como os subalternos podiam sabiamente se aproveitar das brechas criadas pelas disputas entre facções políticas rivais.

Fruto de uma pesquisa que combina e cruza a tradição oral com os registros escritos, a parte final do texto dá destaque especial ao singular caso de Mãe Judith, ialorixá do terreiro Aganju Didè, fundado em 1916, na região da Terra Vermelha. Através dessa figura lendária, além de refletir criticamente sobre importantes questões de gênero que aparecem no discurso civilizatório veiculado pela imprensa, o historiador aponta para uma geografia da resistência cultural dos candomblés cachoeiranos, tecida a partir da experiência, vivida e sofrida, de inúmeros sujeitos forjadores da sua própria história. Ilustrando de forma concreta e personalizada as discussões de capítulos precedentes, o autor revela, por exemplo, como Mãe Judith conseguiu difundir, mesmo que através da denúncia publicada pelo jornal A Ordem, o convite anunciando as festas da sua casa em 1917. Preciosa jóia documental que mostra, além do pioneirismo da ialorixá nessa prática de distribuição de convites para amigos e clientes, a audácia dessa mulher que não temia enfrentar o clima de perseguição reinante.

Em definitivo, o texto conduz - sempre ancorado na evidência documental - da discussão mais genérica, sobre uma história cultural das idéias, ao mundo mais palpável e biográfico da experiência concreta, onde se manifestam e expressam essas idéias e cultura. No seu conjunto, a reconstituição histórica - fruto de rica pesquisa de arquivo e de um conhecimento pormenorizado do campo - nos permite melhor entender a construção de Cachoeira no imaginário baiano e nacional, como a "terra da macumba" ou a "cidade do feitiço", processo que se deu, precisamente, no momento em que estavam sendo definidos os traços marcantes da identidade brasileira.

Para além do seu inegável mérito intelectual, é importante salientar que o livro é também o resultado de alguém que soube enfrentar e vencer dificuldades, alguém que com persistência e inteligência soube contornar os obstáculos até atingir a meta imaginada. Em 2005, Edmar Ferreira foi merecedor de uma bolsa de estudos do International Fellowship Program Ford Foundation e sua pesquisa se converteu na primeira dissertação de mestrado apresentada e defendida no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia. Todos esses esforços se vêm hoje recompensados com a publicação de O poder dos candomblés: perseguição e resistência no Recôncavo da Bahia.

Deixando de lado o seu contexto de produção e o seu pioneirismo acadêmico, gostaria de destacar, para concluir estas breves palavras de abertura, a curiosidade e o rigor intelectual do autor que, aliados a sua generosidade humana, o levaram a desenvolver uma pesquisa empiricamente sólida, que não se deixou levar de forma leviana por pressupostos ideológicos tomados a priori. Edmar nos oferece uma história, até agora invisível daqueles a quem foi negada a voz - paradoxalmente revelada nas entrelinhas dos textos produzidos pelos próprios silenciadores - num livro que podemos saudar como uma genuína contribuição para a história de Cachoeira, da religião afro-baiana e da cultura afro-brasileira em geral.