EM ALGUM MOMENTO NO FINAL DOS ANOS 1870, um obstetra parisiense chamado Stéphane Tarnier tirou um dia de folga de seu trabalho na Maternité de Paris, a maternidade destinada às mulheres pobres da cidade, e fez uma visita ao Paris Zoo, situado nas proximidades. Vagando entre os elefantes, os répteis e os jardins clássicos do zoológico, dentro do Jardin des Plantes, Tarnier deparou com chocadeiras de frangos. A visão dos pintos recém-saídos da casca do ovo, cambaleando de um lado para outro no recinto cálido da chocadeira, fez surgir uma associação em sua mente, e ele não demorou a contratar Odile Martin, a responsável pela criação das aves domésticas no zoológico, para construir um dispositivo que desempenharia uma função semelhante para recém-nascidos humanos. Pelos padrões modernos, a mortalidade infantil era assombrosamente elevada no final do século XIX, mesmo numa cidade sofisticada como Paris. Um a cada cinco bebês morria antes de aprender a engatinhar, e entre bebês prematuros, com baixo peso ao nascer, o número dos que morriam era muito maior. Tarnier sabia que a regulagem da temperatura era decisiva para manter essas crianças vivas, e sabia que o establishment médico francês tinha uma arraigada obsessão por estatísticas. Por isso, assim que sua nova incubadora para recém-nascidos foi instalada na Maternité, aquecendo as frágeis crianças com garrafas de água quente sob caixas de madeira, ele iniciou um rápido estudo de quinhentos bebês. Os resultados chocaram os médicos parisienses: enquanto 66% dos bebês de baixo peso costumavam morrer dentro de semanas após o nascimento, apenas 38% daqueles mantidos na caixa incubadora de Tarnier tiveram o mesmo destino. Era possível reduzir a taxa de mortalidade de prematuros quase à metade simplesmente tratando-os como pintos recém-saídos da casca num zoológico.
A incubadora de Tarnier não foi o primeiro dispositivo empregado para aquecer recém-nascidos, e a engenhoca que ele construiu com Martin seria significativamente aperfeiçoada nas décadas subsequentes. No entanto, a análise estatística do obstetra deu à incubação de recém-nascidos o impulso de que precisava: dentro de poucos anos, o conselho municipal de Paris determinou que se instalassem incubadoras em todas as maternidades da cidade. Em 1896, um médico empreendedor chamado Alexandre Lion montou uma mostra de incubadoras – com recém-nascidos vivos – na Exposição de Berlim. Apelidado de Kinderbrutenstalt, ou “chocadeira de crianças”, a mostra de Lion veio a ser o sucesso inesperado da exposição, dando início a uma estranha tradição de mostras paralelas de incubadoras que persistiu boa parte do século XX. (Coney Island teve uma exposição permanente de incubadoras para bebês até o início dos anos 1940.) As incubadoras modernas, suplementadas com oxigenoterapia e outros avanços, tornaram-se equipamento obrigatório em todos os hospitais americanos após o fim da Segunda Guerra Mundial, dando início a um espetacular declínio de 75% nas taxas de mortalidade infantil entre 1950 e 1998. Como as incubadoras atuam exclusivamente no início da vida, seu benefício para a saúde pública – medido pelo número de anos extras que proporciona – rivaliza com qualquer avanço médico do século XX. A radioterapia ou um duplo bypass podem nos dar mais uma ou duas décadas, mas uma incubadora nos dá uma vida inteira.
No mundo em desenvolvimento, porém, a história da mortalidade infantil continua deplorável. Enquanto em toda a Europa e nos Estados Unidos as mortes de crianças estão abaixo de dez por mil nascimentos, em países como a Libéria e a Etiópia morrem mais de cem crianças a cada mil, muitas das quais bebês prematuros que teriam sobrevivido se tivessem acesso a incubadoras. Mas os equipamentos modernos são complexos e caros. Uma incubadora comum de um hospital americano pode custar mais de 40 mil dólares. Talvez o preço, no entanto, seja o menor obstáculo a transpor. Equipamentos complexos quebram, e quando isso acontece precisa-se de técnicos especializados para consertá-los e de peças de reposição. No ano seguinte ao tsunami de 2004 no oceano Índico, o hospital da cidade indonésia de Meulaboh recebeu oito incubadoras de uma série de organizações de assistência internacional. No final de 2008, quando um professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) chamado Timothy Prestero visitou o hospital, todas as oito estavam quebradas, vitimadas por picos de energia e pela umidade tropical. A isso se somava a incapacidade da equipe de ler o manual de reparo escrito em inglês. As incubadoras de Meulaboh eram um exemplo representativo: alguns estudos sugerem que nada menos que 95% da tecnologia médica doada a países em desenvolvimento quebra nos primeiros cinco anos de uso.
Prestero tinha especial interesse por essas incubadoras quebradas, porque a organização que fundara, Design that Matters, vinha trabalhando havia anos num novo projeto para uma incubadora mais confiável e menos dispendiosa, um projeto que reconhecia que tecnologias médicas complexas tendiam a ter, no contexto de um mundo em desenvolvimento, uma duração muito diferente da que tinham num hospital americano ou europeu. Projetar uma incubadora para um país em desenvolvimento não era apenas uma questão de criar algo que funcionasse; era também projetar algo que quebrasse de uma maneira não catastrófica. Como não era possível assegurar um suprimento de peças sobressalentes ou técnicos de manutenção habilitados, Prestero e sua equipe decidiram, em vez disso, construir uma incubadora feita de peças já abundantes no mundo em desenvolvimento. A ideia surgiu com Jonathan Rosen, um médico de Boston, que observou que até os menores vilarejos do mundo em desenvolvimento pareciam ser capazes de manter automóveis em condições de funcionamento. Eles podiam não ter aparelhos de ar-condicionado, laptops ou TV a cabo, mas conseguiam manter seus Toyota 4Runners na estrada. Assim, Rosen procurou Prestero com uma ideia: que tal fazer uma incubadora a partir de peças de automóvel?
Três anos depois que Rosen deu a ideia, a equipe da Design that Matters introduziu um protótipo chamado NeoNurture. Por fora, parecia uma aerodinâmica incubadora moderna, mas suas tripas eram automotivas. Faróis dianteiros do tipo sealed-beam forneciam o calor decisivo; ventiladores de painel asseguravam a circulação de ar filtrado; campainhas de porta faziam soar alarmes. Era possível prover o aparelho de energia por meio de um isqueiro adaptado ou de uma bateria de motocicleta comum. Construir o NeoNurture com peças de automóvel foi duplamente eficiente, porque aproveitava tanto a oferta das próprias peças quanto o conhecimento local de conserto de automóveis. Ambos eram recursos abundantes no contexto do mundo em desenvolvimento, como Rosen gostava de dizer. Não era preciso ser um técnico médico habilitado para consertar o NeoNurture; não era preciso nem mesmo ler o manual. Bastava saber substituir um farol dianteiro.
Boas ideias são como o aparelho NeoNurture. São, inevitavelmente, limitadas pelas peças e habilidades que as cercam. Temos uma tendência natural a romantizar inovações revolucionárias, imaginando ideias de grande importância que transcendem seus ambientes, uma mente talentosa que de algum modo enxerga além dos detritos das velhas ideias e da tradição engessada. Mas as ideias são trabalho de bricolagem; são fabricadas a partir desses detritos. Tomamos as ideias que herdamos ou com que deparamos e as ajeitamos numa nova forma. Gostamos de pensar em nossas ideias como uma incubadora de 40 mil dólares, saída diretamente da fábrica, mas na realidade elas foram construídas com as peças sobressalentes que por acaso se encontravam na garagem.
ANTES DE SUA MORTE PREMATURA EM 2002, o biólogo evolucionário Stephen Jay Gould mantinha uma singular coleção de calçados que havia comprado durante suas viagens pelo mundo em desenvolvimento, em feiras livres de Quito, Nairóbi e Délhi. Eram sandálias feitas com pneus reciclados. Talvez não fossem grande coisa como manifestação de moda, mas Gould lhes atribuía grande valor enquanto prova da “engenhosidade humana”. Ele as considerava também uma metáfora dos padrões de inovação no mundo biológico. As inovações da natureza também se baseiam em peças sobressalentes. A evolução avança tomando recursos disponíveis e mesclando-os para criar novos usos. O teórico evolucionário François Jacob captou isso em seu conceito da evolução como trabalho de um “remendão”, não de um engenheiro; nossos corpos são também obras de bricolagem, peças velhas concatenadas para formar algo radicalmente novo. “O princípio da transformação de pneus em sandálias”, escreveu Gould, “opera em todas as escalas e tempos, permitindo iniciativas peculiares e imprevisíveis a qualquer momento – para tornar a natureza tão inventiva quanto a pessoa mais engenhosa que algum dia avaliou o potencial de um ferro-velho em Nairóbi.”
Podemos ver esse processo em curso na inovação primordial da própria vida. Ainda não temos um consenso científico com relação aos detalhes das origens da vida. Alguns creem que ela se originou nas bocas ferventes, metálicas, de vulcões submarinos; outros suspeitam dos oceanos abertos; outros apontam para as lagoas de maré e brejos em que Darwin acreditava que a vida primeiro se arraigou. Muitos cientistas respeitados acreditam que a vida pode ter chegado do espaço cósmico, engastada num meteoro. Mas temos um quadro muito mais claro da composição da atmosfera da Terra antes que a vida emergisse, graças a um campo chamado química pré-biótica. A Terra sem vida era dominada por algumas moléculas básicas: amoníaco, metano, água, dióxido de carbono, um pequeno número de aminoácidos e outros compostos orgânicos simples. Cada uma dessas moléculas era capaz de uma série finita de transformações e trocas com outras moléculas na sopa primordial: ocorria recombinação entre metano e oxigênio para formar formaldeído e água, por exemplo.
Pense em todas essas moléculas iniciais, depois imagine todo o potencial de novas combinações que elas poderiam formar de maneira espontânea, simplesmente colidindo umas com as outras (ou talvez atingidas pela energia extra da queda de um raio). Se você pudesse brincar de Deus e desencadear todas essas combinações, acabaria de posse da maior parte dos elementos básicos da vida: as proteínas que formam as fronteiras das células; as moléculas de açúcar decisivas para os ácidos nucleicos de nosso DNA. Mas não seria capaz de dar início às reações químicas que iriam formar um mosquito, um girassol ou um cérebro humano. O formaldeído é uma combinação de primeira ordem: é possível criá-lo diretamente a partir das moléculas presentes na sopa primordial. Os elementos atômicos que constituem um girassol são exatamente os mesmos disponíveis na Terra antes do surgimento da vida, mas não se poderia criar espontaneamente um girassol naquele ambiente, porque ele se baseia em toda uma série de inovações subsequentes, que demoraria bilhões de anos para se desenvolver na Terra: cloroplastos para capturar a energia do sol, tecidos vasculares para permitir a circulação de seiva através da planta, moléculas de DNA para transmitir à geração seguinte as instruções para a construção do girassol.
O cientista Stuart Kauffman tem um nome sugestivo para o conjunto de todas essas combinações de primeira ordem: “o possível adjacente”. A expressão capta tanto os limites quanto o potencial criativo de mudança e inovação. No caso da química pré-biótica, o possível adjacente define todas aquelas reações moleculares que eram diretamente alcançáveis na sopa primordial. Girassóis, mosquitos e cérebros existem fora desse círculo de possibilidade. O possível adjacente é uma espécie de futuro espectral, pairando nas bordas do atual estado de coisas, um mapa de todas as maneiras segundo as quais o presente pode se reinventar. Ele não é, contudo, um espaço infinito, ou um campo de jogo totalmente aberto. O número de reações de primeira ordem potenciais é vasto, mas é finito, excluindo a maioria das formas que hoje povoam a biosfera. O possível adjacente revela que a qualquer momento o mundo é capaz de mudanças extraordinárias, mas apenas certas mudanças podem acontecer.
A estranha e bela verdade com relação ao possível adjacente é que seus limites se alargam à medida que os exploramos. Cada combinação introduz novas combinações no possível adjacente. Pense nele como uma casa que se expande num passe de mágica ao se abrir cada nova porta. Você começa numa sala com quatro portas, cada uma levando a uma nova sala que ainda não visitou. Essas quatro salas são o possível adjacente. Mas depois que você abre uma dessas portas e entra na próxima sala, três novas portas aparecem, cada uma levando a outra sala nova em folha a que você não poderia ter chegado a partir de seu ponto de partida original. Continue abrindo portas, e por fim terá construído um palácio.
Os ácidos graxos básicos se organizarão naturalmente em esferas forradas com uma dupla camada de moléculas, muito semelhante às membranas que definem as fronteiras das células modernas. Uma vez que os ácidos graxos se combinam para formar essas esferas delimitadas, uma nova ala do possível adjacente se abre, porque essas moléculas criam implicitamente uma divisão fundamental entre o interior e o exterior da esfera. Essa divisão é a própria essência de uma célula. Depois que temos um “interior”, podemos pôr coisas ali: alimento, organelas, código genético. Pequenas moléculas podem atravessar a membrana e então se combinar com outras moléculas para formar entidades maiores, grandes demais para escapar de volta através das fronteiras da protocélula. Ao formarem espontaneamente essas membranas de duas camadas, os primeiros ácidos graxos abriram uma porta para o possível adjacente, que levaria finalmente ao código genético com base em nucleotídios e às usinas de energia dos cloroplastos e mitocôndrias – os principais “habitantes” de todas as células modernas.
O mesmo padrão reaparece ao longo de toda a evolução da vida. Na verdade, uma maneira de pensar sobre a trajetória da evolução é como uma exploração contínua do possível adjacente. Quando dinossauros como o Velociraptor desenvolveram um novo osso chamado carpo semilunar (o nome vem de sua forma de meia-lua), passaram a poder girar o punho com muito mais flexibilidade. A curto prazo, isso lhes deu mais destreza como predadores, mas também abriu uma porta para o possível adjacente que levaria por fim, muitos milhões de anos depois, à evolução de asas e ao voo. Quando desenvolveram polegares opositores, nossos ancestrais abriram todo um novo campo cultural do possível adjacente: a criação e o uso de ferramentas e armas finamente manufaturadas.
Uma das coisas que me parecem muito inspiradoras na ideia do possível adjacente de Kauffman é o continuum que ela sugere entre sistemas naturais e feitos pelo homem. Ele introduziu o conceito em parte para ilustrar uma fascinante e antiquíssima tendência compartilhada pela história tanto natural quanto humana: esse incessante empurrar das barricadas do possível adjacente. “Obviamente algo aconteceu nos últimos 4,8 bilhões de anos”, escreve ele. “A biosfera expandiu-se, realmente explodiu de maneira mais ou menos persistente, em direção ao possível adjacente em constante expansão. … É bastante curioso que esse fato claramente verdadeiro raras vezes seja comentado, e que não tenhamos nenhuma teoria particular para essa expansão.” Se você fosse um átomo de carbono 4 bilhões de anos atrás, havia poucas centenas de configurações moleculares em que poderia tropeçar. Hoje, esse mesmo átomo de carbono, cujas propriedades atômicas não mudaram um único nanograma, pode ajudar a construir esperma de baleia, ou uma sequoia-gigante, ou um vírus H1N1, além de uma lista quase infinita de formas de vida baseadas no carbono que não faziam parte do possível adjacente da Terra pré-biótica. Acrescente a isso uma lista igualmente espantosa de invenções humanas que se baseiam no carbono – cada um dos objetos de plástico do planeta, por exemplo –, e verá quanto o reino do possível adjacente se expandiu desde que aqueles ácidos graxos se organizaram por si mesmos na primeira membrana.
A HISTÓRIA DA VIDA E DA CULTURA HUMANA pode ser contada, portanto, como a história da sondagem gradual, mas incessante, do possível adjacente, cada inovação abrindo novos caminhos a explorar. Mas alguns sistemas são mais competentes que outros na exploração desses espaços de possibilidade. Em última análise, o mistério do paradoxo de Darwin que nos serviu de ponto de partida gira em torno da seguinte questão: por que o ecossistema de um recife de coral deveria ser tão audacioso em sua exploração do possível adjacente – tantas formas de vida diferentes compartilhando um espaço tão pequeno –, enquanto as águas circundantes do oceano carecem dessa maravilhosa diversidade? De maneira semelhante, os ambientes das grandes cidades possibilitam muito mais exploração comercial do possível adjacente que cidades pequenas ou aldeias, permitindo que negociantes e empresários se especializem em campos que seriam insustentáveis em centros populacionais menores. A web explorou o possível adjacente de seu meio de maneira muito mais rápida que qualquer outra tecnologia de comunicação na história. No início de 1994, era um meio apenas de texto, páginas de palavras conectadas por hyperlinks. Dentro de poucos anos, porém, o espaço de possibilidades começou a se expandir. A web se tornou um meio que nos permite fazer transações financeiras, o que a transformou num shopping center, numa casa de leilões e num cassino. Pouco depois, tornou-se um verdadeiro meio de mão dupla, no qual era tão fácil publicar o próprio texto quanto ler os dos outros, engendrando formas que o mundo nunca vira: enciclopédias escritas pelos usuários, a blogosfera, os sites de redes sociais. O YouTube fez da web um dos mais influentes mecanismos de distribuição de vídeos no planeta. E agora mapas digitais estão desencadeando suas próprias revoluções cartográficas.
Podemos ver as impressões digitais do possível adjacente em um dos mais notáveis padrões de toda a história intelectual, o que os especialistas chamam de “múltiplo”: um cientista ou inventor em algum lugar do mundo tem uma ideia brilhante, mas, quando vai a público e revela seu achado extraordinário, descobre que três outras mentes haviam chegado, de maneira independente, à mesma ideia no ano anterior. As manchas solares foram descobertas simultaneamente em 1611 por quatro cientistas que viviam em quatro diferentes países. A primeira bateria elétrica foi inventada tanto por Dean von Kleist quanto por Cuneus de Leyden em 1745 e 1746. Joseph Priestley e Carl Wilhelm Scheele isolaram o oxigênio entre 1772 e 1774. A lei da conservação de energia foi formulada separadamente quatro vezes no final da década de 1840. A importância evolucionária da mutação genética foi proposta por S. Korschinsky em 1899 e depois por Hugo de Vries em 1901, enquanto o impacto dos raios X sobre as taxas de mutação foi descoberto de maneira independente por dois estudiosos em 1927. O telefone, o telégrafo, a máquina a vapor, a fotografia, o tubo de vácuo, o rádio – quase todos os avanços tecnológicos essenciais da vida moderna têm um múltiplo escondido em algum lugar na história de sua origem.
No início dos anos 1920, dois pesquisadores da Universidade Columbia, William Ogburn e Dorothy Thomas, decidiram investigar quantos múltiplos poderiam encontrar, e acabaram publicando seu levantamento num influente ensaio com o delicioso título “Are Inventions Inevitable?” (As invenções são inevitáveis?). Ogburn e Thomas encontraram 148 casos de inovação independente, a maioria das quais ocorreu na mesma década. Ao ler a lista agora, ficamos impressionados não só com o número de casos, mas com o grau em que a lista é indistinguível de uma história não filtrada das grandes ideias. Os múltiplos foram evocados para sustentar teorias nebulosas sobre o zeitgeist, mas eles têm uma explicação muito mais bem-fundamentada. Boas ideias não surgem do nada; são construídas a partir de um grupo de partes existentes, cuja combinação se expande (e, às vezes, se contrai) ao longo do tempo. Algumas dessas partes são conceituais: maneiras de resolver problemas ou novas definições do que constitui um problema, para começar. Algumas delas são, literalmente, partes mecânicas. Para sair em busca do oxigênio, Priestley e Scheele precisaram do arcabouço teórico de que o ar era em si algo digno de estudo e de que era constituído por diferentes gases, duas ideias que só começaram a ser aceitas na segunda metade do século XVIII. Mas precisaram também das balanças avançadas que lhes permitiam medir as minúsculas mudanças no peso provocadas pela oxidação, tecnologia que só tinha algumas décadas de idade em 1774. Quando essas partes se tornaram disponíveis, a descoberta do oxigênio entrou na esfera do possível adjacente. O isolamento do oxigênio, como se diz, estava “no ar”, mas apenas porque um conjunto específico de descobertas anteriores havia tornado esse experimento imaginável.
O POSSÍVEL ADJACENTE tem a ver tanto com limites quanto com aberturas. Na linha do tempo de uma biosfera em expansão, a todo momento há portas que ainda não podem ser abertas. Na cultura humana, gostamos de pensar nas ideias revolucionárias como acelerações súbitas na linha do tempo, quando um gênio salta cinquenta anos adiante e inventa algo que as mentes normais, aprisionadas no momento presente, não poderiam descobrir. Mas a verdade é que os avanços tecnológicos (e científicos) raramente escapam do possível adjacente; a história do progresso cultural é, quase sem exceção, a história de uma porta que leva a outra, permitindo a exploração de uma sala do palácio de cada vez. Mas, como evidentemente a mente humana não é limitada pelas leis finitas da atração molecular, de vez em quando alguém tem uma ideia que nos teletransporta para certas salas adiante, saltando alguns passos exploratórios no possível adjacente. Mas essas ideias quase sempre resultam em fracassos de curto prazo, exatamente por terem dado um salto à frente. Temos uma expressão para qualificá-las: dizemos que estão “à frente de seu tempo”.
Tomemos a lendária “máquina analítica” projetada no século XIX pelo inventor britânico Charles Babbage, considerado pela maioria dos historiadores da tecnologia o pai da computação moderna, embora talvez devesse ser chamado de bisavô da computação moderna, pois o mundo levou várias gerações para alcançar sua ideia. Na verdade, Babbage está no panteão por duas invenções, nenhuma das quais conseguiu construir em vida. A primeira foi a “máquina de diferenças”, uma engenhoca de extrema complexidade, que pesava quinze toneladas e tinha mais de 25 mil peças mecânicas, projetada para calcular funções polinomiais, essenciais para a elaboração das tabelas trigonométricas para a navegação. Se Babbage tivesse de fato concluído seu projeto, a máquina de diferenças teria sido a calculadora mecânica mais avançada do mundo. Quando o Museu de Ciências de Londres construiu um dos projetos de Babbage para comemorar o centenário de sua morte, a máquina produziu resultados exatos até a 31ª casa decimal numa questão de segundos. Tanto a velocidade quanto a precisão do aparelho teriam excedido qualquer outra coisa possível na época de Babbage por várias ordens de magnitude.
A despeito de toda a sua complexidade, contudo, a máquina de diferenças estava inteiramente dentro do possível adjacente da tecnologia vitoriana. A segunda metade do século XIX assistiu a um fluxo constante de aperfeiçoamentos do cálculo mecânico, muitos deles baseados na arquitetura de Babbage. O inventor suíço Per Georg Scheutz construiu uma máquina de diferenças que funcionava, lançada na Exposition Universelle de 1855; duas décadas depois o projeto de Scheutz, do tamanho de um piano, havia sido reduzido ao tamanho de uma máquina de costura. Em 1884, um inventor americano chamado William S. Burroughs fundou a American Arithmometer Company para vender calculadoras produzidas em massa para empresas de todo o país. (Quase um século mais tarde, a fortuna gerada por essas máquinas ajudaria a financiar a carreira literária, para não falar do consumo de drogas, de seu neto e xará.) O projeto da máquina de diferenças de Babbage foi, sem dúvida, uma obra de gênio, mas não transcendeu o possível adjacente de seu tempo.
Não se pode dizer o mesmo da outra ideia brilhante de Babbage: a máquina analítica, o grande projeto não concluído de sua carreira, no qual labutou durante os últimos trinta anos de sua vida. A máquina era tão complicada que nunca saiu da planta, com exceção de uma pequena parte que Babbage construiu pouco antes de morrer em 1871. Ela foi – pelo menos no papel – o primeiro computador programável do mundo. O fato de ser programável significava que a máquina era essencialmente adaptável; não tinha sido projetada para um conjunto específico de tarefas, como a máquina de diferenças, que fora otimizada para equações polinomiais. Como todos os computadores modernos, a máquina analítica era capaz de se metamorfosear, reinventando-se com base nas instruções evocadas por sua programação. (A brilhante matemática Ada Lovelace, filha única do Lord Byron, escreveu vários conjuntos de instruções para a máquina analítica de Babbage, ainda movida a vapor, o que lhe valeu o título de primeiro programador do mundo.) O projeto de Babbage para a máquina antecipou a estrutura básica dos computadores contemporâneos: “programas” deveriam ser introduzidos por meio de cartões perfurados, inventados décadas antes para controlar teares têxteis; instruções e dados eram mantidos num “depósito”, o equivalente ao que chamamos hoje de memória de acesso aleatório ou RAM; e cálculos eram executados por meio de um sistema que Babbage chamou de “mill” (moinho), usando uma linguagem da era industrial para descrever o que atualmente conhecemos como unidade central de processamento ou CPU.
Em 1837 Babbage já havia esboçado a maior parte desse sistema, mas o primeiro verdadeiro computador a usar essa arquitetura programável só apareceu mais de cem anos depois. Enquanto a máquina de diferenças engendrou uma série imediata de refinamentos e aplicações práticas, a máquina analítica desapareceu do mapa para todos os efeitos. Muitos dos insights pioneiros que Babbage tivera nos anos 1830 teriam de ser redescobertos de forma independente pelos visionários da ciência da computação na época da Segunda Guerra Mundial.
Por que a máquina analítica revelou-se tamanho beco sem saída no curto prazo, se as ideias de Babbage eram tão brilhantes? A maneira elegante de responder a essa pergunta é dizer que tais ideias escapavam dos limites do possível adjacente. Mas talvez seja melhor exprimir isso em termos mais prosaicos: Babbage simplesmente não dispunha das peças sobressalentes certas. Mesmo que ele tivesse construído uma máquina segundo suas especificações, não é certo que ela teria funcionado, porque ele estava na verdade esboçando um equipamento para a era eletrônica quando a revolução mecânica movida a vapor ainda estava em curso. Diferentemente de todos os computadores modernos, a máquina de Babbage deveria ser inteiramente composta de engrenagens e interruptores mecânicos, assombrosos em número e na complexidade de seu projeto. A informação fluiria através do sistema como um constante balé de objetos de metal a mudar de posição em movimentos cuidadosamente coreografados. Além de ter manutenção dificílima, a máquina estava fadada a ser irremediavelmente lenta. Babbage gabou-se para Ada Lovelace que acreditava que sua invenção seria capaz de multiplicar dois números de vinte dígitos em três minutos. Mesmo que estivesse certo – Babbage não seria o primeiro empreendedor tecnológico a exagerar o desempenho de seu produto –, o tempo de processamento teria tornado a execução de programas mais complicados torturantemente lenta. Os primeiros computadores da era digital podiam realizar o mesmo cálculo em questão de segundos. Um iPhone completa milhões de cálculos como esse no mesmo tempo. Computadores programáveis precisavam de tubos de vácuo, ou, melhor ainda, de circuitos integrados, nos quais a informação flui como pequeninos pulsos de atividade elétrica, e não como engrenagens metálicas movidas a vapor, enferrujadas e estrepitosas.
Podemos ver um padrão comparável – num ritmo vastamente acelerado – na história do YouTube. Se Hurley, Chen e Karim tivessem tentado pôr a ideia do YouTube em prática dez anos antes, em 1995, ela teria sido um fiasco espetacular, porque nos primórdios da web um site para compartilhamento de vídeos não estava no seu possível adjacente. Em primeiro lugar, a grande maioria dos usuários possuía conexões discadas penosamente lentas, que podiam por vezes levar minutos para fazer o download de uma imagem pequena. (O download de um clipe médio do YouTube, com dois minutos de duração, teria demandado nada menos que uma hora com os modems de 14,4bps comuns na época). Outra explicação para o sucesso imediato do YouTube é que seus criadores puderam basear o serviço de vídeos na plataforma Flash da Adobe, o que significava que podiam se concentrar na facilitação do compartilhamento e discussão dos clipes, não precisando gastar milhões de dólares para desenvolver todo um novo padrão de vídeo a partir do zero. Mas o próprio Flash só foi lançado no final de 1996, e nem sequer suportava vídeos até 2002.
Para usar nossa analogia da microbiologia, inventar uma máquina de diferenças na década de 1830 foi como a tentativa de um conjunto de ácidos graxos de formar a membrana de uma célula. A máquina de diferenças foi, sem dúvida, um salto adiante, mas, por mais avançada que fosse, ainda estava nos limites do possível adjacente, e foi por isso que tantas iterações práticas baseadas no projeto de Babbage emergiram nas décadas subsequentes. Mas tentar criar a máquina analítica em 1850 – como teria sido tentar criar o YouTube em 1995 – foi o equivalente a uma tentativa daqueles ácidos graxos de se auto-organizarem na forma de um ouriço-do-mar. A ideia estava certa, mas o ambiente ainda não estava pronto para ela.
TODOS NÓS VIVEMOS dentro de nossas próprias versões do possível adjacente. Em nossa vida profissional, em nossas atividades criativas, nas organizações que nos empregam, nas comunidades que habitamos – em todos esses diferentes ambientes, estamos cercados por novas configurações potenciais, novos meios de escapar da rotina. Estamos, cada um de nós, cercados pelos equivalentes conceituais daquelas peças sobressalentes de Toyota, todas à espera de serem recombinadas em algo mágico, algo novo. Não precisam ser os avanços épicos da biodiversidade nem a invenção de um computador programável. A abertura de uma nova porta pode levar a uma descoberta científica capaz de transformar o mundo, mas pode levar também a uma estratégia mais eficaz para ensinar alunos do segundo ano fundamental, ou a uma ideia original para o marketing do aspirador de pó que sua empresa está prestes a lançar. O truque é descobrir maneiras de explorar os limites de possibilidade ao nosso redor. Isso pode ser tão simples quanto alterar o ambiente físico em que trabalhamos, ou cultivar um tipo específico de rede social, ou manter certos hábitos na maneira como procuramos e armazenamos informação.
Lembre-se da pergunta com que iniciamos: que tipo de ambiente gera boas ideias? A resposta mais simples que podemos lhe dar é esta: ambientes inovadores são melhores para ajudar seus habitantes a explorar o possível adjacente, porque apresentam uma amostra ampla e diversa de peças sobressalentes – mecânicas ou conceituais – e estimulam novos modos de recombiná-las. Ambientes que bloqueiam ou limitam essas novas combinações – punindo a experimentação, obscurecendo certas áreas de possibilidade, tornando o estado atual tão satisfatório que ninguém se dá o trabalho de explorar suas bordas – irão, em geral, originar e difundir menos inovações que aqueles que estimulam a exploração. A infinita variedade da vida que tanto impressionou Darwin, postado diante das águas calmas das ilhas Cocos, existe porque o recife de coral tem uma competência extraordinária para reciclar e reinventar as peças sobressalentes de seu ecossistema.
Há um momento famoso na história da quase catastrófica missão Apollo 13 – maravilhosamente captado no filme de Ron Howard – em que os engenheiros que controlam a missão se dão conta de que precisam improvisar um filtro de dióxido de carbono, ou os astronautas vão envenenar a atmosfera do módulo lunar com suas próprias exalações antes de retornarem à Terra. Eles têm purificadores de carbono em abundância a bordo, mas esses filtros se destinavam à espaçonave original, agora danificada, e não se ajustam ao sistema de ventilação do módulo lunar que estão usando como salva-vidas para voltar para casa. O controle da missão reúne rapidamente o que é chamado de um “tiger team” de engenheiros para enfrentar agressivamente o problema e criar um inventário imediato de todos os equipamentos disponíveis no módulo lunar naquele momento. No filme, Deke Slayton, chefe da Flight Crews Operations, joga uma pilha de equipamentos bagunçados numa mesa de conferência: mangueiras, tubos, sacolas, fitas de vedação e outras peças variadas. Ele levanta o filtro de carbono. “Temos de encontrar uma maneira de fazer esse filtro se encaixar num buraco feito para isto”, diz e aponta para as peças sobressalentes na mesa, “sem usar nada além daquilo.”
A parafernália espacial sobre a mesa define o possível adjacente para o problema da construção de um purificador de carbono num módulo lunar. (O dispositivo que acabaram inventando, apelidado de “caixa de correio”, funcionou perfeitamente.) Os tubos e os esguichos das mangueiras são como as moléculas de amoníaco e metano dos primórdios da Terra, ou as engrenagens mecânicas de Babbage, ou aquelas peças de Toyota que aquecem uma incubadora: são os componentes estruturais que criam – e limitam – o espaço de possibilidades para a solução de um problema específico. De certa maneira, para os engenheiros do Controle da Missão isso foi mais fácil do que costuma ser. Em geral problemas desafiadores não definem seu possível adjacente de uma maneira tão clara, tão tangível. Parte da origem de uma boa ideia consiste em descobrir que peças sobressalentes são essas e em assegurar que não estamos apenas reciclando os mesmos velhos ingredientes. É para isso, portanto, que os seis padrões que se seguem vão nos conduzir, porque todos eles envolvem, de uma maneira ou de outra, táticas para a reunião de um grupo mais eclético de ideias de componentes estruturais, peças sobressalentes que podem ser reagrupadas em configurações novas e úteis. O segredo para ter boas ideias não é ficar sentado em glorioso isolamento, tentando ter grandes pensamentos. O truque é juntar mais peças sobre a mesa.