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COM OS TUBARÕES DA

“GRANDE SOCIEDADE”

 

 

Depois da morte da minha oitava esposa, Constance, em Hollywood, em 1921, decidi me mudar para o mais longe possível da Califórnia, mas ainda permanecer nos Estados Unidos. Sua morte me deprimiu — ela morrera em um acidente de carro sem sentido logo depois do nosso casamento, e o acidente pôs fim também à vida do meu sobrinho Tom, de uma celebridade adolescente e da irmã de Constance, Amelia — e, com cento e setenta e oito anos de idade, me vi perdido, sem saber se ainda existiam possibilidades para a minha vida. Pela primeira e talvez única vez em duzentos e cinquenta e seis anos, questionei a rigorosa insistência do meu corpo em continuar com a aparência e o vigor da meia-idade. Tive vontade de desistir, de me livrar da existência cansativa à qual eu parecia destinado a ficar acorrentado para sempre, e precisei de muita força de vontade para não ir ao consultório médico mais próximo, explicar minha situação e ver se alguém poderia me ajudar a envelhecer — ou terminar tudo ali, na mesma hora.

Mas a depressão, se é que foi isso mesmo, acabou passando. Como já disse, não considero minha situação negativa; sem ela, eu muito provavelmente teria morrido no início dos anos 1880 e jamais teria vivido tantas experiências quanto as que tive o privilégio de viver. Envelhecer pode ser cruel, mas, se você ainda tiver uma boa aparência e certa segurança financeira, há sempre muito para fazer.

Permaneci na Califórnia até o final do ano, pois não parecia muito inteligente começar uma vida nova tão perto do recesso de dezembro, então me mudei para Washington em 1922, onde comprei uma pequena casa em Georgetown e investi em uma rede de restaurantes. O dono, Mitch Lendl, era um imigrante tcheco que se mudara para os Estados Unidos na década de 1870 e, como era tradição, fez fortuna e mudou seu primeiro nome, Miklôs, para uma versão mais americana. Ele queria expandir a rede pela capital, porém não tinha dinheiro suficiente. Seu crédito com os bancos era bom, mas ele desconfiava que as instituições poderiam revogar possíveis empréstimos para se apossar de seu império, portanto decidiu procurar um investidor. Nos tornamos bons amigos graças ao simples fato de eu gostar de jantar em seus estabelecimentos e termos descoberto afinidades em comum; por fim, concordei em me juntar ao empreendimento, que se tornou muito rentável. Os restaurantes Lendl’s começaram a surgir em todo o estado e, graças ao conhecimento de Miklôs sobre bons chefs — eu sempre o chamava de Miklôs, nunca de Mitch —, conseguimos estabelecer uma boa reputação e um negócio de sucesso.

Gastronomia nunca me interessou muito; eu apreciava bons jantares, mas isso não é uma característica que me diferencie de outras pessoas. Mesmo assim, durante aquela época, em minha única incursão no universo dos restaurantes, aprendi um pouco sobre comida, principalmente sobre a importação de iguarias sofisticadas e pratos típicos de outros países, uma especialidade da nossa rede. Passei a me preocupar com o que oferecíamos em nossos restaurantes, e não servir nada insalubre logo se transformou em nossa política, a ponto de ter se tornado uma espécie de lema para nós. Seguindo os talentos e as habilidades de Miklôs, servíamos os vegetais mais macios, a carne mais selecionada e os bolos mais deliciosos da história. Nossas mesas lotavam todas as noites.

Em 1926, fui convidado para participar de um comitê executivo da Food Administration, e foi durante minha participação como membro, analisando os hábitos alimentares dos habitantes de Washington e preparando uma política comum que ajudasse a melhorá-los, que conheci Herb Hoover, que fizera parte desse mesmo comitê anos antes, sob o mandato do presidente Wilson. Apesar de ser o secretário de Comércio àquela altura, Herb continuou interessado em nosso trabalho, que fora uma de suas maiores paixões na carreira. Nos tornamos amigos e jantávamos juntos com frequência, o que costumava ser difícil, pois todas as pessoas no restaurante queriam falar com ele sobre algum problema pessoal ao passarem pela mesa.

“Todos eles acham que posso ajudá-los de alguma maneira”, ele me disse certa tarde, quando estávamos em uma mesa isolada no Lendl’s, bebericando conhaque depois de uma refeição generosa, preparada segundo os mais altos padrões de qualidade pelo próprio Miklôs. “Eles acham que, se ficarem meus amigos, posso lhes dar algum abatimento de imposto, ou algo do tipo, só porque sou o secretário de Comércio.”

Improvável. Herb era conhecido como um dos mais corretos e incorruptíveis homens do governo. Considerando sua história com causas humanitárias e, alguns diriam, até com a beneficência, como ele tinha ido parar em um cargo financeiro tão importante era algo além da minha capacidade de compreensão. Quando os alemães dominaram os Países Baixos depois do início da Primeira Guerra Mundial, Herb estava em Londres, incumbido pelos Aliados de garantir o abastecimento de comida para os belgas, o que fez com muito sucesso; o país poderia ter passado fome sem ele. Depois, assumiu um grande risco pessoal quando, em 1921, fez com que tal auxílio fosse estendido para a Rússia soviética no auge da fome. Ao ser criticado por ter, dessa forma, ajudado o bolchevismo, ele rugiu dentro da Câmara dos Representantes: “Vinte milhões de pessoas estão passando fome. Não importa que crença política elas tenham, elas serão alimentadas!”.

“Nem eu sei como consegui”, ele admitiu, referindo-se a seu cargo atual. “Mas parece que estou me saindo bem!”, acrescentou com um sorriso, seus traços alegres e marcantes subindo pelo rosto até sulcar os cantos dos olhos. E ele estava certo; o país prosperava e seu mandato parecia garantido.

Confesso que gostava muito de sua companhia e fiquei entusiasmado quando ele foi eleito presidente no final de 1928, pois fazia tempo que eu não tinha uma relação próxima com alguém em uma posição de poder — e nunca houve ninguém como Herbert Hoover na Casa Branca. Fui à sua posse em março de 1929, um dia antes de ir embora para Nova York, e o ouvi elogiar o país por ter se reconstruído depois da Grande Guerra e revelar seu orgulho por seus compatriotas diante dos anos de paz que havia pela frente. Seu discurso, apesar de um pouco longo e repleto de detalhes que o povo norte-americano talvez não precisasse saber, foi otimista e alegre, um bom presságio para seus quatro anos de mandato. Depois disso, tive pouco tempo para conversar com ele, claro, mas desejei-lhe o melhor, acreditando que o respeito que o povo americano nutria por ele, sua natureza humanitária e o país pacífico e economicamente próspero que ele herdava pareciam tão promissores para Hoover quanto tinham sido para qualquer um de seus predecessores. Eu jamais poderia esperar que no fim daquele mesmo ano o país enfrentaria uma grande depressão e que sua presidência seria destruída antes mesmo de decolar.

E esperava ainda menos o preço que pessoas próximas a mim iriam pagar por causa dela.

Denton Irving adorava assumir riscos. Seu pai, Magnus Irving, tinha sido o presidente da CartellCo., uma grande empresa de investimentos de Nova York que herdara de seu falecido sogro, Joseph Cartell. Com sessenta e um anos, Magnus sofreu um derrame que o incapacitou e Denton, que havia trabalhado a maior parte dos seus trinta e seis anos no planeta como especialista em investimentos e vice-presidente da empresa, assumiu. Herb, depois presidente Hoover, tinha nos apresentado dois anos antes em Washington, e ficamos amigos. Eu o procurei imediatamente ao aterrissar em Nova York, contei sobre meus planos para o futuro e pedi conselhos.

Eu e Miklôs tínhamos recebido de uma associação de investidores uma oferta generosa por nossa rede de restaurantes e decidimos aceitá-la, o que precipitou minha partida da capital. O valor era muito acima do que poderíamos esperar receber de um único comprador e superava com folga qualquer dinheiro que pudéssemos fazer em vida (com uma duração normal). Além disso, Miklôs não era mais tão jovem e não tinha filhos com a mesma vocação para a indústria gastronômica quanto ele, portanto parecia o momento certo para vender. Porém, isso significava que, além das minhas ações e contas de sempre, eu agora tinha montes de dinheiro que precisava ser investido. Quando chegou o momento de fazê-lo, Denton parecia o homem certo para eu consultar.

Isso foi em março de 1929 e, depois de uma semana, tínhamos montado uma carteira bastante sólida de investimentos para mim, dividindo meu dinheiro entre gigantes perenes como a U.S. Steel e a General Motors, novatas em crescimento como a Eastman Kodak e companhias recém-nascidas e inovadoras que acreditávamos ter futuro e que poderiam ser lucrativas para alguém disposto a arriscar. Denton era um homem esperto, mas eu o considerava impaciente e, nesse aspecto, não éramos nada parecidos. Assim que soube que eu queria investir uma quantia substancial, ligou para todos os seus contatos, tentando encontrar as melhores opções e os empreendimentos mais inteligentes para mim, como se ele mesmo fosse se favorecer dos lucros que eu poderia vir a obter. Seu entusiasmo me divertia e me deixava muito confiante sobre sua capacidade, e também descobri que gostava bastante de sua companhia.

Ao mesmo tempo, uma jovem que eu nunca tinha visto entrou na minha vida. Seu nome era Annette Weathers, uma funcionária dos Correios de trinta e três anos que morava em Milwaukee. Ela apareceu no meu apartamento próximo ao Central Park numa tarde chuvosa de abril, com duas malas e um menino de oito anos ao lado. Abri a porta e a encontrei ali, um trapo encharcado que se esforçava ao máximo para não chorar enquanto segurava com firmeza a mão de seu filho pequeno. Olhei para ela, surpreso, imaginando quem diabos seria e o que queria de mim, mas bastou um vislumbre do menino para eu descobrir.

“Sr. Zéla”, ela disse, colocando uma das malas no chão e estendendo-me a mão. “Lamento incomodá-lo, mas escrevi para o senhor na Califórnia e nunca recebi resposta.”

“Não moro lá há alguns anos”, expliquei, ainda na porta. “Me mudei para…”

“Washington, eu sei”, ela respondeu com firmeza. “Me desculpe por eu ter vindo, mas eu não sabia mais o que fazer. Acontece que… que…” Ela não chegou a terminar a frase, pois a batalha para controlar as lágrimas foi perdida e ela desabou no chão a meus pés. O menino me encarou, desconfiado, como se eu tivesse feito sua mãe chorar, e eu não sabia o que fazer. Minha última experiência com uma criança daquela idade tinha sido um século e meio antes, quando meu próprio irmão, Tomas, era pequeno; desde então, procurara evitar crianças. Abri a porta e os conduzi para dentro, levando-a até um banheiro, onde ela poderia se refazer e recuperar um pouco da dignidade, e deixei o menino em uma poltrona larga; ele continuou a me encarar com um misto de admiração e repugnância.

Cerca de uma hora depois, descansando em frente à lareira, de banho tomado e vestindo um roupão espesso de lã, Annette explicou sua vinda e a própria existência em termos que beiravam um pedido de desculpas, mesmo que eu já soubesse exatamente quem ela era.

“Você me procurou depois do seu casamento, lembra?”, ela começou. “Quando sua pobre esposa faleceu.”

“Eu me lembro”, respondi, a imagem de Constance surgindo na minha cabeça; me ocorreu de repente que fazia muito tempo desde a última vez que eu pensara nela e me odiei por isso.

“O meu pobre Tom morreu naquele dia também. Não tem sido fácil sem ele, sabe?”

“Posso imaginar que não. Lamento não tê-la ajudado mais.” Annette era a viúva de Tom. Eu mal conheci o rapaz, mas ele tinha ido ao meu casamento e perdera a vida por causa disso. Lembro-me muito bem dele naquele dia; até hoje consigo vê-lo socializando pelo salão, apresentando-se a Charlie, Doug e Mary, pessoas que ele tinha visto na telona, nos jornais e nas revistas de cinema. Ele tentou se engraçar com uma adolescente qualquer que tinha aparecido em alguns curtas-metragens de Sennett e teve a má sorte de estar no local em que o carro de Constance e Amelia aterrissou depois do acidente. No dia seguinte, era o nome dele que estava impresso no jornal. Annette não tinha comparecido; estava grávida na época e não quis viajar de Milwaukee até a Califórnia para o casamento — apesar de eu ter suspeitado, pelo que Tom me disse, que ele não havia permitido que ela o acompanhasse. Considerando o comportamento dele naquele dia, imagino que o casamento dos dois não estivesse muito sólido.

Ela era uma garota com um ar de frescor, cabelo loiro, curto e encaracolado, bochechas descoradas; o tipo de mulher que no cinema acabava amarrada nos trilhos de trem por homens malvados. Seus olhos eram grandes com pupilas pequenas, seus traços leves e delicados; a pele, a mais imaculada que eu tinha visto em um século. Senti de imediato necessidade de protegê-la não apenas por seu filho ou por seu marido, mas também por ela. Ela havia sofrido por oito anos sem me procurar, mesmo sabendo que eu tinha dinheiro, e supus que sua chegada naquele momento não era um gesto de ganância, e sim de necessidade e desespero.

“Me sinto péssimo”, admiti, erguendo as palmas das mãos, desolado. “Eu é quem deveria ter entrado em contato com você, no mínimo porque esse menino é meu sobrinho. Como você está, Thomas?”

“Nós o chamamos de Tommy. Mas como você sabia o nome dele?”, ela perguntou, sem dúvida repassando nossa conversa na cabeça para lembrar se o tinha mencionado. Dei de ombros e sorri.

“Um palpite”, eu disse. O menino ficou em silêncio. “Ele não é muito de falar, não é?”

“Ele só está cansado”, ela explicou. “Talvez seja melhor dormir um pouco. Se houver uma cama extra…”

Eu me levantei de imediato. “É claro que ele pode descansar, e, sim, tenho uma cama extra. Venha comigo.” Ele se inclinou na direção da mãe, assustado, e olhei para ela, sem saber que atitude tomar.

“Eu o levo, se não houver problema”, ela disse, se levantando e erguendo a criança do chão com um movimento fácil, apesar de ele ser um menino de oito anos de estatura média, que não precisava ser levado pela mão nem ficar no colo de ninguém. “Ele fica nervoso com estranhos.” Por mim, não havia problema algum, e a levei para o quarto, onde ela ficou com ele por cerca de quinze minutos, até o menino cair no sono. Quando voltou, dei-lhe um copo de conhaque e falei que os dois deveriam passar a noite em casa.

“Não quero incomodá-lo”, ela disse, e vi seus olhos se encherem de lágrimas mais uma vez. “Mas ficaria agradecida. Preciso ser sincera com você, sr. Zéla…”

“Matthieu, por favor.”

Ela sorriu. “Preciso ser sincera com você, Matthieu. Vim para cá porque você é minha última esperança. Perdi o emprego; não trabalho já faz algum tempo. Alguns balconistas foram demitidos há mais ou menos um ano, e desde que saí tenho sobrevivido com minhas economias. Depois não consegui pagar o aluguel da nossa pequena casa e ficamos sem ter para onde ir. Minha mãe morreu no ano passado e eu esperava herdar alguma coisa, mas a casa dela foi confiscada pelo banco por causa da hipoteca e não sobrou nada depois que a dívida foi quitada. E eu não tenho mais nenhum parente. Eu não teria vindo, mas Tommy…” Ela perdeu as forças e cobriu a boca com as mãos enquanto fungava de leve.

“O menino precisa de uma casa, é claro”, eu disse. “Escute, Annette. Não se preocupe. Você deveria ter vindo antes. Ou eu deveria ter ido até você. Um dos dois. De qualquer modo, ele é meu sobrinho e você é quase minha sobrinha. Não é nenhum incômodo ajudar vocês. Aliás, fico feliz em ajudar vocês dois.” Fiz uma pausa. “O que eu quero dizer”, acrescentei, para ficar mais claro, “é que eu vou ajudar vocês.”

Ela me encarou como se eu fosse mais do que ela poderia esperar, deixou o copo de lado e veio me dar um abraço. “Obrigada”, disse, antes de desistir completamente da luta e deixar as lágrimas surgirem. E, quando elas vieram, foi um dilúvio.

Às vezes, o destino parece ter maneiras de unir as pessoas mais improváveis. Marquei uma reunião com Denton para conversar sobre dúvidas que eu tinha em relação a certos investimentos, mas ele precisou cancelar o compromisso para ir a um enterro.

“É minha secretária”, ele explicou ao telefone. “Ela conseguiu ser assassinada, acredita?”

“Assassinada?”, exclamei, surpreso. “Meu Deus! Como foi isso?” Eu me lembrava dela de reuniões anteriores com Denton; uma jovem simples, com um aroma constante de creme hidratante em torno dela.

“Ainda não sabemos. Parece que se envolveu com um sujeito que foi morar com ela, um atorzinho, pelo que ouvi dizer, e os dois planejavam se casar. Numa noite, ele chegou em casa depois de ter perdido um teste para um papel qualquer na Broadway e a espancou sem dó. A pobrezinha não teve a menor chance.”

Senti um arrepio. “Que coisa horrível”, comentei baixinho.

“Sem dúvida.”

“Ele foi pego?”

“Sim, está preso em uma delegacia por enquanto. Preciso ir, está bem? O funeral começa daqui a uma hora e já estou bem atrasado.”

Não sou desses que gostam de se beneficiar com a tragédia alheia, mas em seguida me ocorreu como Annette seria adequada para o cargo agora disponível. Ela tinha muitos anos de experiência como balconista dos Correios, o que supus tê-la posto em contato com inúmeros aspectos administrativos. Acima de tudo, era uma jovem inteligente, amigável e prestativa; eu acreditava que ela poderia ser de grande utilidade para a empresa de Denton. Àquela altura, ela estava hospedada em minha casa havia algumas semanas e tinha conseguido um emprego de garçonete enquanto Tommy ia para a escola. Ela não ganhava muito, mesmo assim insistia em me dar parte de seu salário como retribuição por minha hospitalidade, apesar de eu ter tentado recusar, pois a esmola que ela recebia ficava ainda menor quando dividida.

“Eu não preciso desse dinheiro, Annette. Eu é que deveria sustentar vocês.”

“E você já está, ao permitir que moremos aqui sem pagar aluguel. Por favor, aceite. Eu vou me sentir melhor.”

Apesar de isso me aborrecer, vi como era importante para ela contribuir com a casa de alguma maneira. Ela passara a vida inteira do filho sendo autossuficiente, a única responsável pela criação dele, o que tinha feito de maneira excepcional. Embora fosse uma criança muito quieta, Tommy era inteligente e amável; depois de nos conhecermos um pouco melhor, ele se tranquilizou com a minha presença e eu com a dele, e descobri que era um prazer voltar ao apartamento à noite, depois de alguma surpresa que meu dia tivesse me preparado, e encontrar os dois ali: Annette fazendo um jantar simples para nós, Tommy sentado em silêncio com um livro. Nossa vida doméstica logo se estabilizou em uma rotina fácil e despreocupada; parecia que eles sempre tinham estado ali. Quanto a mim e Annette, apesar de ela ser uma jovem muito atraente, logo passei a vê-la como a descrevi no primeiro dia — uma sobrinha —, e nosso relacionamento era transparente e sem tensões.

Denton aceitou conversar com Annette sobre o cargo e ela ficou entusiasmada para conhecê-lo, pois já tinha descoberto que as alegrias de ser garçonete não eram muitas, e a entrevista deve ter corrido bem, pois em seguida ele lhe ofereceu o cargo, o que a deixou em êxtase. Ela agradeceu profusamente minha ajuda e me comprou um cachimbo novo com o salário da primeira semana.

“Quis comprar alguma coisa que você gostasse”, disse. “E vi a sua coleção de cachimbos ali. Acho que você devia largar por causa da saúde, mas comprei um mesmo assim. Se me permite a pergunta, há quanto tempo você fuma?”

“Há tempo demais”, respondi, me lembrando de quando Jack Holby me apresentou aos prazeres do cachimbo. “Faz muitos, muitos anos. Mas veja por si mesma: ainda estou vivo.”

Fiquei atento à economia. Os investimentos consumiam a maior parte da minha vida profissional e eu lia os jornais e escutava os analistas com cuidado. Eu tinha muito dinheiro investido em diversos empreendimentos e, mesmo que Denton fosse um ótimo conselheiro, eu fazia questão de acompanhar tudo o que acontecia. Participei de uma reunião pública da National Association of Credit Men, num auditório em Tribeca, na qual eles alertaram sobre a situação das finanças públicas, afirmando que o nível de crédito de investimento no país era o mais alto de toda a história. O conselho que ofereceram, tanto para homens de negócios como eu quanto para as instituições bancárias que faziam empréstimos, era agir com cautela, pois, disseram, qualquer gargalo no crédito poderia ter consequências devastadoras.

“Não se preocupe com isso”, Denton me disse. “Eles estão certos — o nível de crédito está mesmo alto demais —, porém isso não levará o país à falência. Dê uma olhada na situação de Herb, pelo amor de Deus. Ele está com a mão enfiada tão fundo no traseiro da Reserva Federal que seria preciso dez toneladas de dinamite para mudar alguma coisa.”

“Acho que quero um pouco mais de liquidez”, afirmei, encantado como sempre com seu jeito de falar. “Apenas algumas coisas aqui e ali. Nada muito substancial. Tenho ouvido algumas histórias e não gosto nada delas. Essa situação na Flórida…”

Denton riu e bateu a mão na escrivaninha com tanta força que dei um pulo na cadeira e Annette deixou sua antessala correndo para ver o que tinha acontecido. “Está tudo bem, querida”, disse Denton na mesma hora, sorrindo para ela de modo caloroso. “Estou apenas defendendo meu ponto de vista com meu jeito grosseiro de sempre.”

Ela riu e apontou o lápis para ele antes de sair da sala. “Você ainda vai ter um ataque do coração, se não tomar cuidado”, ela disse em tom de flerte, girando nos calcanhares e fechando a porta atrás de si. Virei-me para ela — apesar de ser óbvio que ela não estava mais lá —, surpreso com a intimidade daquela breve troca de palavras e, quando me voltei outra vez para Denton, ele olhava para a porta com ar inebriado.

“Denton”, eu disse com cautela, tentando recuperar sua atenção. “Denton, estávamos falando sobre a Flórida.”

Ele me olhou como se não tivesse certeza de quem eu era ou o que fazia ali, até que sacudiu a cabeça como um cachorro molhado faria para se livrar da chuva e voltou à nossa conversa. “Flórida, Flórida, Flórida”, repetiu, perdido em um devaneio enquanto tentava se lembrar do que significava a palavra, até que urrou “Flórida!”, sem um motivo aparente. “Eu já disse, não se preocupe com a Flórida. O que aconteceu lá embaixo é provavelmente o maior fracasso financeiro da história do sunshine state, e aqui na cidade de Nova York, aqui onde está o dinheiro de verdade, sabe quem se importa com isso?”

“Quem?”, perguntei, apesar de já saber a resposta.

“Ninguém! Ninguém se importa. Nenhuma pessoa. Nem uma única alma.”

Franzi as sobrancelhas. “Não sei. Tenho ouvido falar sobre a possibilidade da mesma coisa acontecer aqui.” Eu não estava nem um pouco disposto a deixar o assunto de lado quando minha futura estabilidade financeira podia estar em jogo.

“Escute, Matthieu”, ele disse devagar, esfregando os olhos como se estivesse falando com uma criança. Uma das coisas que eu gostava em Denton era a fé absoluta que ele tinha em si mesmo e a maneira descaradamente arrogante com que repudiava quem o questionasse. “Quer mesmo saber o que aconteceu lá na Flórida? Vou explicar, porque não sei quais são as suas fontes ou de onde você está tirando suas informações, mas devem ser todas umas porcarias. Lá embaixo, na Flórida, os últimos anos foram uma repetição da corrida por terras em Oklahoma. Qualquer pessoa com dez centavos comprava um pedaço de terra, como numa queima de estoque. Quer saber de uma coisa? E isto é segredo de Estado, porque ouvi de um sujeito que conheço em Washington, e acho que você sabe de quem estou falando, então não pode sair desta sala, mas o fato é que nos últimos anos os investidores demarcaram mais lotes de terra na Flórida do que o número de famílias existente nos Estados Unidos da América — no país inteiro. O que acha disso?”

Eu ri. “Você só pode estar brincando”, eu disse, pois não tinha ouvido nada daquilo e não estava convencido de sua veracidade.

“É a mais pura verdade, meu amigo. A Flórida é um dos estados mais subdesenvolvidos da União, e as pessoas só começaram a enxergar isso há coisa de dez anos. Mas venderam, e venderam, e venderam até não haver mais nada para vender. Então, sabe o que fizeram? Venderam tudo de novo. Milhões e milhões de terrenos vendidos, sendo que o espaço não existe e, pior, não há gente suficiente em todo este maldito país para preenchê-lo, mesmo que todo mundo se mudasse para a Flórida, o que” — nesse momento ele bufou e se ajeitou de maneira teatral na cadeira — “é ainda mais improvável. Sabia que, se todos os homens, mulheres e crianças dos Estados Unidos descessem de repente para a Flórida, a Terra sairia do seu eixo e todos nós seríamos lançados para o espaço sideral?”

Hesitei e meus olhos correram nervosamente pela sala. “Não, Denton, eu não sabia.”

“E não é só isso! Não é só isso!”, ele gritou, batendo na escrivaninha outra vez, entusiasmado. “Eu digo mais. Se todas as pessoas na China pulassem ao mesmo tempo, aconteceria a mesma coisa. O eixo, ou seja lá o que for, simplesmente arrebentaria, a força da gravidade acabaria e todos sairíamos voando até Marte. Então, se quer mesmo saber minha opinião, a China poderia ser o país mais poderoso do mundo, se lá eles parassem para pensar nisso. Eles poderiam fazer o planeta todo de refém só ameaçando dar alguns pulinhos! Pense nisso!”

Pensei naquilo e torci para que ele tivesse terminado. “Isso tudo é muito interessante, Denton”, eu disse, pronunciando seu nome com firmeza, para deixar claro que a discussão sobre as estratégias de domínio global da China estavam encerradas. “Mas creio que nos desviamos um pouco do assunto. Eu só acho importante ter um pouco mais de liquidez, e, sinto muito, mas é isso que quero fazer.”

“Ei, o dinheiro é seu”, ele disse, reclinando-se na cadeira com um sorriso. “Estou aqui para servi-lo”, acrescentou, bem-humorado.

“Então, mãos à obra”, eu disse, incapaz de conter uma risada. “Um pouco aqui e ali, só isso. Não vamos exagerar. Pense em algumas possibilidades e depois me diga.”

“Pode deixar”, ele disse. Levantei para ir embora, estendi a mão para cumprimentá-lo e fui até a porta. “Uma última coisa, Matthieu”, ele acrescentou de repente, antes que eu a abrisse, “depois deixo você ir.” Sorri e levantei uma sobrancelha, como quem diz “O que é?”. “Essa história da Flórida. Você sabe que não foi a especulação imobiliária que acabou com eles, não sabe?”

“Não foi?”, perguntei, pois era o que eu supunha ter causado todos os problemas. “O que foi, então?”

“O furacão. Simples assim. Um furacão filho da puta varreu a Flórida no final do ano passado e causou estragos calculados em milhões de dólares. Quando fizeram as contas do prejuízo, a verdade sobre a especulação veio à tona. Se não fosse por isso, estariam fazendo a mesma coisa até hoje. Foi tudo culpa do furacão. E não vejo nenhum furacão se aproximando da Quinta Avenida, você vê?” Dei de ombros, indeciso. “E você sabe qual é a moral dessa história, não sabe?”, ele perguntou enquanto eu abria a porta e me preparava para sair.

“Diga”, respondi, contente por ter pagado por no mínimo uma hora de entretenimento, se as coisas que ele dizia não fossem verdade. “Explique qual é a moral da história.”

“A moral da história”, ele repetiu, inclinando-se para a frente e colocando as palmas das mãos na escrivaninha, “é que, de vez em quando, surge um desastre natural, uma força maior, que leva toda a poeira embora e, assim, as pessoas conseguem ver o que sobrou embaixo, e veem que a coisa não é tão bonita. Entendeu?”

Denton Irving tinha nascido em berço de ouro. Apesar de seu pai ter herdado a empresa do sogro, o dinheiro daquela parte da família era secular, vinha de gerações que datavam quase da época dos peregrinos. E, mesmo que o derrame de seu pai significasse que ele não poderia mais participar do dia a dia da empresa, ele mexia inúmeros pauzinhos nos bastidores, observando com cuidado a maioria dos movimentos do filho e comentando sobre tudo da maneira mais indelicada possível.

Eu sabia que Denton sentia ao mesmo tempo reverência e horror pelo pai, um homem colossal que se exercitava todos os dias em sua academia particular — muito antes de esse tipo de coisa virar moda. Era evidente que ele tinha sido um pai rígido, pela maneira como Denton endireitava a postura na cadeira ou assumia uma expressão tensa no rosto sempre que ele telefonava.

O ano de 1929 foi passando e continuei a transformar grande parte da minha carteira de ações em capital líquido, enquanto Denton enterrou cada vez mais sua empresa em opções que ele afirmava infalíveis — companhias sólidas, como a Union Pacific e a Goodrich. O verão se aproximava e a economia derrapou, quando a produção industrial e os preços começaram a despencar. O presidente Hoover forçou o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, a aumentar os descontos que oferecia, a fim de desencorajar a especulação no mercado de ações, mas nada parecia funcionar. A quantidade de dinheiro derramada na Bolsa de Valores continuou crescendo até se aproximar do ponto de saturação. Para acalmar os nervos, tanto Hoover quanto o governador de Nova York, Franklin Delano Roosevelt, declararam-se otimistas com a Bolsa de Valores; Hoover mencionou a “Grande Sociedade” que jamais seria vencida. Eu nunca soube bem se ele se referia ao país ou a Wall Street.

Paralelamente a isso, eu soube do romance que havia surgido entre Denton e Annette. Muitas vezes, ela chegava tarde do trabalho, agitada e contente depois de ter ido jantar ou dançar com ele. Ela parecia feliz e entusiasmada com o novo relacionamento e eu a encorajava, pois gostava de Denton, que sem dúvida tinha condições de oferecer a ela e ao filho um bom nível de vida, se o relacionamento atingisse esse ponto.

“Eu não imaginei que faria o papel de cupido”, eu disse a ela certa tarde, em casa, num raro momento em que Denton não estava conosco. Eu estava lendo o novo romance de Hemingway, Adeus às armas, que acabara de ser publicado, enquanto ela reforçava os botões de algumas camisas de Tommy. “Achei que estivesse apenas arrumando um emprego para você, não um marido.”

Ela riu. “Não sei quanto tempo vai durar”, admitiu, “mas gosto muito dele. Sei que ele adora um alarde, fazer todo mundo pensar que ele é quem está no controle, mas por dentro ele é muito tranquilo.”

“É mesmo?”, perguntei, achando difícil imaginar.

“É verdade. Aquele pai dele…” Ela sacudiu a cabeça e baixou os olhos para a costura. “Eu não devia falar sobre isso”, acrescentou baixinho.

“Você é quem sabe”, eu disse, “mas lembre-se de que você não está envolvida com o pai dele, apenas com ele.”

“Ele interfere muito, sabe”, ela continuou, claramente precisando falar sobre o assunto. “Fica o tempo todo em cima de Denton, cada minuto do dia. Parece até que ainda manda na empresa.”

“Ele tem muito dinheiro investido ali”, eu disse, o próprio advogado do diabo. “E uma vida inteira de trabalho. É natural que…”

“Sim, mas foi ele que pediu que Denton assumisse a empresa depois do derrame. E Denton não está fazendo nada de errado… Ele sabe o que faz. Trabalha lá desde os dezessete anos, pelo amor de Deus.”

Concordei com a cabeça. Era provável que ela estivesse certa. Eu mal conhecia Magnus Irving; só o tinha visto uma ou duas vezes, ocasiões em que ele já era a sombra do homem que devia ter sido no passado. Mas logo depois, no dia 5 de outubro, um sábado, uma grande festa foi oferecida na mansão Irving e, quando todos os convidados estavam reunidos — todas as pessoas que eram alguém no mundo financeiro de Nova York, assim como muitos amigos e parentes —, o noivado entre meu amigo e minha sobrinha foi anunciado. Fiquei contentíssimo pelos dois, que pareciam em êxtase, e os parabenizei carinhosamente.

“Ainda bem que a minha outra secretária foi assassinada, hein?”, ele me disse, a expressão de seu rosto desabando no momento em que pronunciou as palavras. “Meu Deus”, comentou, sacudindo a cabeça. “Isso soou errado. Eu quis dizer que se não fosse por…”

“Não se preocupe, Denton”, eu disse, um pouco inquieto. “Entendi o que você quis dizer. Destino. Acaso. Todas essas coisas, imagino.”

“Exato.” Ele olhou na direção de Annette, que era o centro das atenções na pista e dançava com uma sucessão de banqueiros. “Olhe só para ela”, disse, balançando a cabeça, surpreso com sua boa sorte. “Não consigo acreditar que ela disse ‘sim’. Não consigo acreditar na sorte que tive.”

Notei Magnus Irving vestido com um terno sem muita pompa, sentado em sua cadeira de rodas a uma das mesas, e o indiquei com a cabeça. “E o seu pai, o que está achando do casamento? Ele aprova?”

Denton mordeu o lábio e pareceu furioso, mas se recompôs em seguida, pois não queria que nada estragasse sua noite. “Ele está um pouco preocupado por causa do menino”, respondeu enfim.

“Tommy?”, exclamei, surpreso. “Por quê? O que há de errado com ele?”

“Não há nada de errado com ele”, Denton respondeu rápido. “Não há nenhum problema de convívio entre nós. Aliás, tenho me aproximado bastante dele ultimamente. Mas imagino que meu pai ache que, como Annette já foi casada e tem um filho — quero dizer, espero que você não se importe que eu diga isto, pois você é parente dela e tudo o mais, só que…”

“Ele acha que ela é uma caça-dotes”, eu simplifiquei.

“Pois é, em resumo é isso. Ele está apenas preocupado que…”

“Ora, não é isso, de jeito nenhum”, retruquei, interrompendo-o, determinado a defender a honra de minha sobrinha. “Pelo amor de Deus, quando ela chegou aqui não me deixava nem…”

“Matthieu, Matthieu, fique calmo”, disse Denton, pondo a mão em meu ombro. “Eu não acho que seja esse o caso. Nunca pensei que fosse. Eu a amo, percebe? E ela também me ama. Sei que me ama. Está tudo perfeito.”

Assenti e de fato relaxei, pois vi, pelo sorriso em seu rosto, que ele dizia a verdade. E, graças a minhas conversas com Annette, eu sabia também do sentimento forte que ela tinha por ele. “Ótimo”, eu disse depois de algum tempo. “Então está tudo bem.”

“E você? Quando vamos arranjar uma garota charmosa para você, hein? Você nunca se casou de novo, casou?”, ele perguntou, acreditando que Constance tinha sido minha primeira esposa.

“Várias vezes”, eu disse. “Parece que eu e o casamento não conseguimos entrar em um acordo.”

“Bom, ainda há bastante tempo”, ele disse, rindo com a arrogância autocongratulatória de alguém que encontrou o amor de sua vida. “Você ainda é um homem jovem.”

Foi minha vez de rir.

Em meados de outubro, restavam-me pouquíssimas opções na carteira de ações da CartellCo., e meu relacionamento com Denton deixou de ser profissional; nos tornamos bons amigos. Eu ainda o convidava para almoçar e gostava de nossos debates sobre economia, Bolsa de Valores, política; passamos a criticar Herb por nunca mais ter entrado em contato conosco, mas imagino que ele tinha coisas muito mais importantes na cabeça do que as mágoas de dois velhos amigos. Eu gostava da minha relação com aquele casal feliz e com Tommy, e me satisfazia a ideia de fazer o papel do tio benevolente na vida deles. Porém, em 23 de outubro, as coisas começaram a dar errado.

Apesar de o mercado ter fechado em alta nos dias anteriores, houve uma súbita enxurrada de vendas no dia 23 que pareceu ter surgido do nada. No dia seguinte, a Quinta-Feira Negra, todos os preços caíram aos níveis mais baixos possíveis, sem nenhum sinal aparente de melhora. Eu estava em Wall Street com Denton nessa tarde, na própria Bolsa de Valores, e vi os corretores gritarem uns com os outros tentando realizar vendas, a histeria deles colaborando para que o mercado caísse mais e mais. Denton estava quase fora de si de tanta angústia, sem saber o que fazer para melhorar a situação, quando um incidente extraordinário aconteceu.

Abaixo de nós havia um mar de jaquetas vermelhas e homens jovens e velhos segurando suas carteiras de ações no ar para se livrarem do máximo que pudessem, mas nenhuma estava sendo negociada. Então, vindo do lado esquerdo do pregão, um jovem, que não devia ter mais do que vinte e cinco anos, foi até o centro do salão e ergueu a mão. Mais alto do que todo o alvoroço, que pareceu diminuir conforme sua autoconfiança chamou a atenção das pessoas, ele gritou que desejava comprar vinte e cinco mil ações da U.S. Steel por duzentos e cinco dólares cada uma. Olhei rapidamente para o painel.

“O que ele está fazendo?”, perguntou Denton, as mãos agarradas ao balaústre à sua frente com tanta ansiedade e força que os nós de seus dedos estavam brancos. “A U.S. Steel caiu para cento e noventa e três dólares.”

Sacudi a cabeça, pois também não conseguia entender. “Não tenho certeza…”, comecei, enquanto o rapaz repetia a ordem para um dos corretores, que se apressou em vender as ações com ganância e a expressão de um homem que não consegue acreditar na própria sorte.

“Ele está estabilizando o mercado”, eu disse, meneando a cabeça, sem acreditar. “É uma ousadia…” Eu estava tão impressionado que me vi incapaz de terminar a frase, e, dali a alguns minutos, outras tentativas de venda começaram a ocorrer, e os preços tiveram um pequeno aumento. Em meia hora, a estabilidade era total e o pânico parecia ter desaparecido.

“Foi incrível”, comentou Denton mais tarde. “Por um momento, achei que tudo estava perdido.”

Eu não me sentia tão aliviado. Não conseguia prever o que ainda poderia acontecer, mas me parecia óbvio que o pior ainda não havia passado. Nos dias que se seguiram, a situação da Bolsa de Valores era o tema de todas as conversas, e Denton ficou sob vigilância intensa do pai, que tinha perguntas infinitas sobre o que ele estava fazendo para salvar a fortuna da empresa. Porém, à medida que as consequências da Quinta-Feira Negra foram ficando mais claras na mente dos investidores, a maioria deles tentou recuperar suas perdas, e a enxurrada de vendas recomeçou. No dia 29 de outubro, uma terça-feira, dia da quebra de Wall Street, mais de dezesseis milhões de ações foram descartadas em uma tarde de negociações. Nesse único dia, a quantidade de dinheiro perdida na Bolsa de Valores de Nova York foi a mesma que o total gasto pelo governo americano para combater na Primeira Guerra Mundial. Foi um desastre.

Annette me telefonou da CartellCo. para dizer que Denton estava agindo como um louco. Seu pai tinha telefonado o dia inteiro, mas ele se recusara a atender todas as chamadas, até por fim se trancar no escritório. A empresa estava falida — disso eu já sabia. Tudo o que ele possuía estava perdido, assim como o dinheiro de seus investidores. Naquele dia, fui o homem de sorte em uma cidade de terríveis tragédias. Quando cheguei à empresa de Denton e subi até o último andar, onde ficava seu escritório, encontrei Annette com os nervos em frangalhos. Denton não abria a porta, mas podíamos ouvi-lo lá dentro, quebrando coisas. Ouvi o som de luminárias caindo no chão enquanto ele caminhava de um lado para o outro, o incessante soar dos telefones o acompanhando em seus movimentos.

“Deve ser mais uma ligação de Magnus”, disse Annette, arrancando a linha da parede, enfim silenciando o aparelho. “Ele acha que essa merda toda é culpa de Denton.” Olhei para ela, surpreso, pois nunca a tinha ouvido blasfemar antes, porém tive a certeza de que, àquela altura, era mais do que justificado. “Você precisa arrombar a porta, Matthieu”, ela disse, e eu concordei.

Dei um passo para trás e me atirei contra a porta, mas ela era de carvalho sólido e, quando parecia que eu estava finalmente fazendo algum progresso, senti meu ombro machucado. Depois de algum tempo, com um último golpe e um chute na fechadura, ela cedeu, Annette e eu corremos para dentro e vimos Denton de pé diante da janela aberta, seu rosto contorcido em confusão e loucura, suas roupas rasgadas, seus olhos flamejantes.

“Denton!”, gritou Annette, com lágrimas descendo pelo rosto enquanto começava a correr para ele, mas eu a impedi segurando-a pelo braço, pois percebi que ele se aproximava cada vez mais da janela à medida que ela se aproximava dele. “Podemos resolver isso”, ela disse. “Você não precisa…”

“Fiquem longe!”, ele rugiu, subindo no parapeito, e meu coração saltou porque, pela expressão em seu rosto, eu sabia que estava tudo acabado. Ele olhou para fora, passou a língua nos lábios e, num instante, não estava mais lá. Annette gritou e disparou em direção à janela, debruçando-se tanto que tive medo que ela caísse também. Mal conseguimos distinguir seu corpo destroçado lá embaixo.

Com o tempo, a desafortunada Annette se recuperou dessa tragédia, embora Magnus Irving tenha sofrido outro derrame quando soube o que tinha acontecido ao filho, e morreu logo depois. Eu tive a sorte de ter minha fortuna praticamente intacta, e naquele Natal, quando parti para o Havaí a fim de viver lá algumas décadas, deixei uma boa quantia de dinheiro para Annette e Tommy, que se recusaram a ir comigo e voltaram para Milwaukee, onde viveram o resto de seus dias.

Eu e Annette mantivemos contato, mas ela nunca mais se casou e, depois que seu filho morreu em Pearl Harbor, foi morar com a nora e o neto, até que eles, por sua vez, voltaram para a Inglaterra, onde a criança cresceu e teve um filho que se tornaria um conhecido ator de novelas e cantor. Acabamos perdendo o contato, mas depois que ela morreu recebi uma carta de sua vizinha, me contando que ela morrera em paz depois de uma longa doença. Encaminhou-me uma carta de gratidão que Annette deixara com ela, na qual me agradecia por tudo o que eu tinha feito por ela em Nova York nos anos 1920, e me enviou também uma fotografia de nós três, Denton, Annette e eu, na festa em que o noivado deles foi anunciado, alguns meses antes da quebra da Bolsa. Na imagem, parecíamos muito felizes e muito otimistas com nosso futuro.