OUTUBRO DE 1999
No dia 12 de outubro, às quatro da manhã, peguei um táxi para o City Hospital, onde meu sobrinho Tommy estava internado, em coma, por overdose de drogas. Ele tinha sido levado até lá por um amigo não identificado por volta da meia-noite. Andrea, a namorada grávida de Tommy, fora contatada pelo hospital uma hora depois da internação, através de um telefonema feito para o apartamento dele, cujo número estava na carteira de Tommy. Em seguida, ela ligou para mim, me acordou e tive uma sensação de déjà-vu, pois poucos meses antes uma ligação semelhante me alertara sobre a morte de James Hocknell.
Cansado e com os olhos turvos, cheguei à recepção do hospital e pedi informações sobre o quarto do meu sobrinho. Disseram-me para subir até a unidade de tratamento intensivo, onde o encontrei conectado a um monitor cardíaco, com um tubo intravenoso inserido em seu braço cheio de marcas de agulhas. Ele parecia na mais completa paz, inclusive com um leve sorriso pairando no rosto, mas, pelos movimentos incertos de seu peito, percebi uma respiração sofrida e um pouco fora de ritmo. A pulsação e a pressão sanguínea estavam sob monitoramento constante; vê-lo deitado em um leito de hospital, em uma cena típica de seriados médicos de TV, era deprimente — e também, de certa maneira, inevitável.
Ao me aproximar, vi um pequeno grupo de enfermeiras do lado de fora da janela do quarto, observando Tommy com entusiasmo, e cheguei a ouvir uma delas perguntar sobre como “Tina” lidaria com a notícia, se ele morresse. “Ela deve voltar direto para Carl”, respondeu outra. “Os dois foram feitos um para o outro.”
“Ele nunca a perdoaria. Depois do que ela fez com o irmão dele? Sem chance”, comentou uma terceira enfermeira, e todas se afastaram quando me viram chegar. Suspirei. Aquela era a vida que meu desafortunado sobrinho tinha construído para si, a vida que ele estava condenado a viver.
Uma breve história dos DuMarqué: eles têm sido uma linhagem infeliz. Todos tiveram a vida interrompida ou por causa de sua própria estupidez, ou por maquinações do destino. Meu irmão, Tomas, teve um filho, Tom, que morreu na Revolução Francesa; o filho dele, Tommy, foi baleado durante um jogo de cartas por estar trapaceando; seu filho, o azarado Thomas, morreu em Roma quando um marido ciumento, tentando cravar uma espada em mim, cravou-a nele; o filho dele, Tom, contraiu malária na Tailândia; seu filho, Thom, foi morto na Guerra dos Bôeres; o filho dele, Tom, foi esmagado por um veículo em alta velocidade em Hollywood Hills; seu filho, Thomas, morreu no final da Segunda Guerra Mundial; o filho dele, Tomas, foi morto em uma rixa no submundo do crime organizado; e seu filho, Tommy, é um ator de novelas em coma após uma overdose de drogas.
Fiquei algum tempo na janela, observando meu sobrinho. Apesar de eu ter avisado Tommy inúmeras vezes sobre a possibilidade de ele acabar naquela exata situação, chocou-me vê-lo chegar, enfim, a um nível tão baixo. Ali não estava o rapaz bonito, autoconfiante e inteligente que era reconhecido aonde quer que fosse, a celebridade, a estrela, o rosto da moda; ele fora substituído por um mero corpo em um leito que respirava com a ajuda de uma máquina, incapaz de se proteger de olhos invasivos. Eu devia ter feito mais, pensei. Dessa vez, eu devia ter feito mais.
Conheci Andrea na sala de espera, alguns minutos depois. Ela estava sentada sozinha, bebendo café do hospital em um copo plástico, envolta por aquele clima tipicamente estéril que não ajuda muito a manter a calma. O cheiro de desinfetante nos engolia e havia apenas uma janela, que não abria e precisava ser limpa. Embora eu não conhecesse a namorada de Tommy, supus que fosse ela, por causa da gravidez evidente e por ela estar tremendo e não tirar os olhos do chão.
“Andrea?”, perguntei, inclinando-me na direção dela e tocando seu ombro com delicadeza. “Você é a Andrea?”
“Sim…”, ela respondeu, me olhando como se eu fosse talvez um médico que tinha vindo dar a má notícia.
“Sou Matthieu Zéla”, expliquei sem demora. “Conversamos há pouco ao telefone.”
“Ah, sim”, ela disse, parecendo ao mesmo tempo aliviada e decepcionada. “Claro. Até que enfim nos conhecemos”, acrescentou, tentando sorrir. “E justamente aqui. Quer um café? Eu posso…”
Sua voz se perdeu quando neguei com a cabeça e me sentei à sua frente. Ela usava roupas que pareciam ter estado jogadas perto da cama quanto se levantou. Jeans sujo, camiseta, tênis esportivo sem meia. Seu cabelo loiro-escuro era encaracolado e precisava de uma lavagem. Não usava maquiagem; o rosto tinha uma beleza natural muito atraente. “Não sei o que aconteceu com ele”, disse Andrea, sacudindo a cabeça com pesar. “Eu não estava com ele. Algum amigo o trouxe para cá e depois sumiu. Um desses interesseiros que estão sempre à espreita, grudados na perna dele, entrando de graça nos clubes noturnos, tentando conseguir um papel ou mulheres.” Ela parou de falar e pareceu com raiva — e com razão. “Não acredito que ele teve uma overdose. Ele é sempre tão cuidadoso. É obrigação dele saber o que está fazendo.”
“É difícil ser cuidadoso quando se está chapado o tempo todo”, eu disse, irritado. Descubro-me cada vez mais impaciente com os jovens; quanto mais velho fico, quanto mais distância existe entre mim e a geração atual, mais enervante ela me parece. Eu pensava que a geração anterior — nascida em torno dos anos 1940 — tinha sido ruim, mas todas as pessoas que conheci ligadas ao meu sobrinho, as que nasceram nos anos 1970, pareciam ignorar os perigos que o mundo podia oferecer. Era como se todos acreditassem que viveriam até a minha idade.
“Nunca foi o tempo todo”, Andrea retrucou, e reparei que ela já estava adotando o passado para se referir a Tommy. “Ele gostava de usar um pouco em ocasiões sociais, mas só isso. Nada além do que todo mundo usa.”
“Eu não uso”, eu disse, sem saber por que me comportava de um jeito tão puritano; agora eu também estava irritado comigo.
“Ah, então você deve ser a porra de um santo, não é?”, ela disparou no mesmo instante. “Você não tem um trabalho inacreditavelmente estressante, com jornadas de dezoito horas, todo mundo olhando pra sua cara aonde quer que você vá, e você tendo sempre que fazer essa… essa pose para milhões de pessoas que nem te conhecem.”
“Eu sei disso. Des…”
“Você não sabe como…”
“Andrea, eu sei disso”, repeti com firmeza, silenciando-a com meu tom de voz. “Desculpe. Sei que meu sobrinho tem uma vida bizarra. Sei que não deve ser fácil para ele. Meu Deus, já o ouvi falar muitas vezes sobre isso. Mas, por enquanto, acho que devemos pensar na recuperação dele e em como evitar que isso aconteça de novo, se ele sobreviver. Algum médico veio falar com você?”
Ela concordou com a cabeça. “Um pouco antes de você chegar”, ela respondeu, agora mais calma. “Ele disse que as próximas vinte e quatro horas vão ser decisivas, mas acho que eles são treinados na faculdade para dizer isso em qualquer situação. As próximas vinte e quatro horas devem ser sempre decisivas, seja lá para o que for. Talvez ele acorde e, se for o caso, fique bem depois de alguns dias, ou talvez tenha danos cerebrais, ou então ficará do mesmo jeito que está. Deitado ali. Naquela cama. Sabe-se lá por quanto tempo.” Assenti com a cabeça. Em outras palavras, o médico não tinha dito nada que um imbecil já não pudesse ter concluído.
“Você está tremendo”, eu disse depois de certo tempo, inclinando-me para segurar suas mãos. “E gelada. Não é melhor pôr um casaco ou algo assim? O bebê…”, murmurei, sem saber direito o que estava tentando dizer, mas sentindo que muito provavelmente ela não devia ficar por aí, grávida de seis meses, para se expor a uma pneumonia.
“Estou bem”, ela disse, sacudindo a cabeça. “Só quero que ele acorde. Eu o amo, sr. Zéla”, ela confessou, quase se desculpando.
“Matthieu, por favor.”
“Eu o amo e preciso dele. Apenas isso.”
Olhei para ela e fiquei pensativo. Minha questão com Andrea era a seguinte: eu não conhecia a garota, portanto não conhecia suas qualidades, com o que ela trabalhava, quem era sua família, quanto ganhava, onde morava em Londres e com quantas pessoas. Eu não sabia nada sobre ela, então era normal que estivesse desconfiado.
No entanto, podia tê-la julgado mal. Talvez ela amasse Tommy. Simples assim. Talvez conhecesse o tormento doentio, dilacerante que vem junto com o amor. Talvez soubesse o que é sentir a presença de alguém em um lugar, mesmo que os dois não estejam juntos. Talvez entendesse como é ser magoado, prejudicado e crucificado por alguém e, ainda assim, não conseguir tirar a pessoa da cabeça, não importa o quanto você tente nem quantos anos passem longe um do outro. Talvez tivesse consciência de que, mesmo uma infinidade de tempo depois, bastaria um único telefonema para você se entregar outra vez, largar tudo, abandonar todos, deixar o mundo inteiro em suspenso. Ela talvez sentisse todas essas coisas por Tommy, e eu lhe negando esse direito.
“O bebê”, ela disse depois de um tempo. “Tommy precisa viver, pelo bem desta criança. É isso que o fará lutar para viver, não é? Hein? Não é?”
Dei de ombros. Eu duvidava. Conheço os Thomas e sua falta de resiliência.
A porta do elevador se abriu no térreo do hospital e eu saí, surpreso com a quantidade de pessoas que aguardavam, próximas ao balcão da recepção. Passei os olhos rápido por elas — velhotes catatônicos sentados, balançando para a frente e para trás em algum ritmo interno misterioso; jovens com roupas baratas, cabelo ensebado e rosto cansado, bocejando e bebendo um chá turvo em copinhos de plástico; crianças barulhentas correndo por ali, ora chorando, ora gritando — e segui para a saída. As portas se abriram automaticamente quando me aproximei delas e, assim que pisei na rua, respirei fundo bem devagar, sentindo o ar fresco renovando meu corpo de dentro para fora. O dia nascia; já estava claro, mas ainda faltava uma hora para a cidade estar em pleno funcionamento, e o vento cortante me atingiu enquanto tentava me proteger melhor com o casaco.
Eu estava prestes a chamar um táxi, quando, como em um momento de revelação, me virei e olhei para o hospital. Pensei por um instante e sacudi a cabeça — impossível. Em seguida, voltei apressado, cruzei a porta e mais uma vez observei a multidão de pessoas sentadas, dessa vez analisando os rostos com mais cuidado, focando bem onde eu o tinha visto; mas agora seu lugar fora ocupado por uma senhora com um inalador. Olhei em volta, minha boca aberta, e tive a súbita sensação de estar em um filme. A cena à minha frente se abria como uma tomada panorâmica e eu caminhava atento pela recepção, até que meus olhos focaram a máquina de bebidas, e ali estava ele, seu dedo flutuando entre os botões enquanto se decidia. Fui até ele, agarrei-o pelo colarinho e o virei para que me encarasse. Uma moeda caiu no chão e ele quase tropeçou nos próprios pés por causa da surpresa. Eu estava certo; olhei em seus olhos e sacudi a cabeça.
“O que diabos está fazendo aqui?”, perguntei. “Como você descobriu?”
Achei irônico assistir a uma notícia sobre a overdose e o coma do meu sobrinho no noticiário da manhã da minha própria emissora. Não consegui dormir quando cheguei em casa; desmoronei em uma poltrona confortável, que poderia abrigar com folga duas pessoas de tamanho médio, e fechei os olhos por algum tempo, envolto numa sonolência espasmódica, até perceber que não conseguiria recuperar aquela noite de sono. Tomei um banho demorado e quente com sabonetes líquidos exóticos de fragrâncias intrigantes e xampus com aromas fortes de coco e depois de meia hora fui para a cozinha com um roupão felpudo. O banho revigorante me forneceu energia para aquele dia, o que sem ele eu jamais teria conseguido. Preparei um café da manhã leve — um copo generoso de suco de laranja fresco, uma torrada e fatias de kiwi — e o tomei diante da televisão enquanto o café descia pelo coador.
Um repórter chamado Roach Henderson estava do lado de fora do hospital com a expressão de quem preferia estar em qualquer outro lugar do mundo minimamente mais agradável do que ali naquele frio cortante, preocupado se o vento iria arrancar sua peruca em plena transmissão. Eu não conhecia Roach muito bem; seu nome verdadeiro era Ernest, mas por algum motivo, quando tinha seus vinte e poucos anos, decidiu se apresentar como “Roach”, “barata” em inglês. Creio que tenha sido influenciado pelos âncoras dos noticiários americanos, e achou que um nome inusitado lhe garantiria credibilidade e um cargo de redator em um estúdio com aquecedor. Vinte anos se passaram desde então, e ele não tinha conseguido nem uma coisa nem outra. Curioso ele ter escolhido para si mesmo o nome de um inseto.
“Roach”, disse o âncora de verdade, Colin Molton, o cenho franzido em uma expressão preocupada que tinha se tornado sua marca registrada, batendo uma esferográfica na boca enquanto olhava para uma tela com a imagem do rosto do repórter. “O que pode nos dizer sobre o estado de saúde de Tommy DuMarqué? Roach”, ele acrescentou, passando a palavra ao outro.
“Bom, como a maioria das pessoas sabe”, começou Roach, ignorando a pergunta e seguindo o discurso que havia preparado, “Tommy DuMarqué é um dos atores mais conhecidos da nação.” Ênfase no “conhecidos”. “Sua carreira começou há oito anos em uma novela líder de audiência, onde fazia o papel de Sam Cutler.” Foram exibidas fotografias em cortes rápidos e uma cena breve de algum tempo atrás. “Tendo se lançado também no mundo da música pop e como modelo, podemos afirmar que o estado de saúde de Tommy será acompanhado não só pelo público em geral como também pelos especialistas em entretenimento. Colin.” Era como dizer “câmbio” em um walkie-talkie no fim de cada frase.
“E qual é o estado de saúde dele? Roach”, repetiu Colin.
“Os médicos dizem que seu estado é grave porém estável. Ainda não temos informações exatas sobre o que aconteceu com Tommy DuMarqué, mas recebemos informações de que ele desmaiou em um famoso clube noturno logo depois da uma hora da manhã de hoje” — errado, pensei — “tendo sido trazido às pressas para cá em seguida. Parece que ele estava consciente quando chegou, mas que entrou em coma logo após ser internado, mantendo-se nesse estado desde então. Colin.”
Colin agora parecia bastante aflito, como se fosse seu próprio filho no hospital. “Ele ainda é muito jovem, não é, Roach?”
“Ele tem vinte e dois anos, Colin.”
“E você diria que algum uso de drogas pode estar relacionado com o ocorrido? Roach.”
“No momento é difícil determinar a causa, Colin, mas sabe-se que Tommy DuMarqué tem um estilo de vida extravagante. Ele é fotografado em clubes noturnos sete dias por semana, e já ouvi boatos de que alguns produtores da BBC queriam mandá-lo para um programa de reabilitação porque sua vida estava saindo do controle. Ele vinha tendo problemas constantes com atrasos e também por causa de um artigo escrito por uma colunista de um conhecido jornal; ele teria sido o tema de uma coluna de opinião que detalhou seu estilo de vida desenfreado e seus hábitos sexuais. Colin.” Reparei que a cabeça dele fazia um movimento característico em cada palavra enfatizada.
“E suponho que a família dele esteja reunida em torno do seu leito nesta manhã. É isso mesmo, Roach?”
“Infelizmente, os pais de Tommy DuMarqué já morreram, mas a namorada dele está aqui no momento, e acredito que seu tio tenha passado várias horas com o sobrinho durante a madrugada. Ainda não sabemos se Sara Jensen, que interpreta Tina Cutler, a cunhada apaixonada por ele no programa, cuja parceria com DuMarqué na televisão vem cativando milhões de telespectadores ao longo dos últimos meses, veio visitá-lo. Mas, se ela chegar, daremos a notícia. Colin.”
Sem nenhum tipo de cumprimento ou despedida, a cadeira de Colin girou para a frente das câmeras e a imagem de Roach desapareceu. Colin prometeu manter todos informados sobre o assunto ao longo do dia, assim que surgissem novidades. Em seguida, seu rosto mudou de expressão, para que ele contasse sobre um panda chamado Muffy, recém-nascido no zoológico de Londres. Pensei em me vestir e sair para comprar jornais, mas como eu sabia que o estado de saúde de Tommy seria matéria de primeira página, desisti da ideia. Em vez disso, pus uma música para tocar e fechei os olhos, permitindo que minha mente flutuasse para longe de todos aqueles problemas, mesmo que por pouco tempo.
À minha frente, Lee Hocknell abriu e fechou a boca como um peixe, sem saber o que dizer. Sua surpresa ao me ver era típica de sua estupidez; ele deveria ter imaginado que eu iria ao hospital assim que soubesse da notícia. Quer dizer, posso ter tido muitos sobrinhos na vida, mas Tommy era o único que ainda estava vivo. Lee vestia-se com roupas modernas e notei que havia adotado um corte de cabelo muito diferente do que eu tinha visto no enterro de seu pai: bem curto e espetado em tufos, sem dúvida bem melhor do que o estilo hippie que ele ostentara no funeral.
“Sr. Zéla”, ele disse quando o larguei e o encarei furioso. “Não vi você…”
“O que diabos está fazendo aqui?”, repeti, me aproximando dele. “Há quanto tempo está aqui? Como soube?”
Ele deu um passo para trás, surpreso, como se fosse óbvio o modo como ele soubera da overdose de Tommy — e, de repente, ficou mesmo óbvio. “Fui eu que o trouxe para cá”, explicou. “Estávamos num clube noturno, sabe, e ele começou a agir de um jeito estranho, do nada. Caiu no chão, desmaiado. Achei que tivesse morrido. Chamei uma ambulância e o trouxe para cá. Ele acordou no caminho, então achei que estivesse tudo bem, mas agora estão dizendo que ele entrou em coma. É isso mesmo?”
“Bom, sim”, respondi baixinho, tentando entender, antes de qualquer coisa, por que Lee Hocknell estivera em um clube noturno com meu sobrinho. Olhei em volta, achei um canto mais afastado da área de recepção e o levei até lá, com pulso firme, sentando-o ao meu lado com a expressão mais ameaçadora que consegui produzir. “Escute bem, para começar quero saber o que você estava fazendo na companhia dele. Vocês não se conhecem, conhecem?”
Ele baixou os olhos e suspirou. Por um instante, pareceu um menininho flagrado em algo errado e tentando inventar uma mentira para escapar do castigo. Quando levantou o rosto para mim outra vez, mordia o lábio, e percebi que estava nervoso. Obviamente, o que eles tinham feito, independente do que fosse, saíra do controle.
“Eu liguei para ele”, Lee explicou, “para conversarmos sobre o roteiro. Por algum motivo, achei que teria mais chances com ele do que com você. Dei meu nome às pessoas no estúdio e disse que ele me atenderia. E ele atendeu.”
“É claro que atendeu”, respondi com rispidez. “Nós recebemos a sua carta e o seu roteiro.”
“Sim…”, ele murmurou em resposta, incapaz de me olhar nos olhos. “Conversei com Tommy pelo telefone e disse que queria vê-lo. Ele ficou na dúvida, sugeriu que você fosse junto, mas eu expliquei que não estava tentando convencer ninguém a fazer o que não quisesse, nem obrigar. Queria apenas discutir o roteiro com ele. Ouvir alguns conselhos. Você mesmo me falou que ele entendia muito dessa indústria. Achei que ele poderia me ajudar.” Hocknell suspirou e fez uma pausa antes de continuar, como se quisesse de verdade que nada daquilo tivesse acontecido. “Então ele disse o.k., concordou em me ver e saímos para tomar uns drinques ontem à noite. Foi assim que a coisa começou. Na verdade, nos demos muito bem”, acrescentou, o rosto se iluminando, e percebi que sua persona tinha mudado por completo da noite para o dia — de chantagista a tiete. “Nos divertimos muito. Temos bastante coisa em comum.”
“É mesmo?”, perguntei, surpreso, sem conseguir imaginar.
“Ah, sim. Tipo, temos a mesma idade e tudo o mais. Nós dois somos, hum, artistas.” Ergui uma sobrancelha, mas fiquei quieto. “E conversamos sobre meu roteiro, é claro.”
“E o que ele disse?”
“Tommy disse que não é fácil conseguir financiamento. Mas que podia me colocar em contato com algumas pessoas. Disse que o roteiro precisa de ajustes. Que, do jeito que está, seria muito difícil vender.”
“Ele está certo”, respondi.
“E prometeu me ajudar”, ele disse baixinho, e por um instante achei que fosse chorar. Olhou para mim como se tentando me convencer de que meu sobrinho, a celebridade, era seu novo melhor amigo. Para pessoas com aquele tipo de glamour, eu sabia que não existia amizade verdadeira. Passar o tempo com uma pessoa famosa na maioria das vezes tem um único propósito: conseguir mulheres de um jeito mais fácil.
“Escute, Lee”, eu disse devagar, a cabeça girando com as variações que sua personalidade poderia assumir dali para a frente. Afinal, que tipo de pessoa ele era? “Você estava lá naquela noite, não estava?”
“Onde?”
“Na casa. Na casa do seu pai. Na noite em que ele morreu. Você estava lá. Por isso toda essa história do roteiro, não é?”
Ele concordou com a cabeça e seu rosto ficou vermelho, o que foi muito estranho. “Eu estava no andar de cima”, disse. “Ouvi o que aconteceu. Sei que você não fez aquilo. Mas devia ter chamado a polícia, só isso. Devia ter sido honesto. Aquela história dele estar no escritório, poxa, aquilo não era verdade.”
“Me explique uma coisa”, eu disse, sem a menor vontade de ouvir um sermão daquele moleque, ainda mais porque eu sabia que ele provavelmente estava certo. “Você espera mesmo chantagear a mim e a Tommy com essa informação?” Ele não me olhou nos olhos — como se ficar frente a frente comigo, fazer aquilo em pessoa, e não por carta, tornasse a coisa mais difícil. Achei que era um bom momento para termos aquela conversa, pois nenhum de nós sabia o que iria acontecer com Tommy, e havia uma chance de que o próprio Lee acabasse tragado pelo problema.
“Eu só preciso de um ponto de partida”, ele disse, não querendo se comprometer com um “sim” ou “não” sobre a pergunta da chantagem. “É tudo o que preciso. Um primeiro passo na carreira. Pensei que um de vocês poderia me ajudar, só isso. E, sabe, eu talvez tenha salvado a vida do seu sobrinho.”
“Ou talvez o tenha matado. Diga: o que aconteceu exatamente? Como ele teve a overdose?”
Lee passou a língua pela boca e pensou no assunto. “Tínhamos bebido”, ele respondeu. “E foi estranho, todo mundo no bar ficava olhando para a gente o tempo todo, porque reconheceram Tommy, é claro, e, mesmo que fosse muito estranho sentir isso, comecei a imaginar que estavam olhando para mim também.”
“É bem provável que estivessem. As pessoas sempre olham para quem está com as celebridades. Querem saber quem é a outra pessoa. Imaginam que seja Alguém, com ‘a’ maiúsculo, senão não estariam juntas. E, na maioria das vezes, elas estão certas.”
“De qualquer forma, algumas pessoas vieram até nós e pediram autógrafos. Olharam para mim e não sabiam se deviam pedir para mim também. Algumas pediram, e dei autógrafos também. Fingimos que eu tinha acabado de estrear na novela. Tommy disse a eles que, em um mês, todo mundo saberia quem eu era.”
“Ah, pelo amor de Deus.”
“Foi só para nos divertir, só isso. Não queríamos arranjar problemas. Depois de um tempo, decidimos ir a um clube noturno e ele me perguntou aonde eu queria ir. Falei de um lugar qualquer onde eu tinha tentado entrar várias vezes e que tinha me barrado, então ele riu e me levou direto para lá de táxi. Devia ter umas cem pessoas na fila do lado de fora, implorando para entrar, mas fomos direto para a porta e os seguranças bajularam Tommy de todas as maneiras possíveis e nos deixaram entrar direto, sem nem precisar pagar. Foi incrível! Ninguém tirava os olhos da gente. Ganhamos bebidas, conseguimos um camarote. Quando fomos para a pista de dança, todas as mulheres começaram a dar em cima da gente. Foi maravilhoso. A melhor noite da minha vida.” Ele olhava para o chão enquanto falava, agora com a expressão de uma criança em uma loja de brinquedos. Tommy lhe oferecera um vislumbre do que era ser famoso e ele tinha se apaixonado por aquilo. Já estava viciado. Nunca mais nos livraríamos dele.
“E o que aconteceu depois?”, perguntei. “Quando apareceram as drogas?”
“Tommy encontrou um cara que ele conhecia e os dois sumiram, foram para o banheiro injetar. Depois ele voltou e estava bem. Pegamos umas garotas, bebemos mais e decidimos ir para a minha casa, todo mundo, para continuar.”
“Pelo amor de Deus. É uma reprise de como seu pai morreu. Vocês, moleques, não aprendem nada?”
“Eu não estava pensando nisso”, ele disse, olhando para mim com raiva. “Eu estava… Tudo o que eu queria era…”
“Você queria era transar. Isso eu entendi, obrigado. Com as garotas, com Tommy, com quem fosse. Você só…”
“Ei, espere um pouco…”
“Não, espere um pouco você”, eu disse, agarrando Lee pelo colarinho. “Você é um idiota, sabia? Que drogas usou?”
“Não usei nenhuma! Juro! Foi só Tommy e um outro cara. Tínhamos acabado de sair da balada, sentimos frio e, antes de eu me dar conta, ele estava no chão se debatendo. Não parecia estar tão mal, mas aí arregalou os olhos, parou de se mexer e chamamos a ambulância. Foi isso, essa é a história toda. Foi tudo o que aconteceu.”
“Certo, certo”, eu disse. “Está bem.” Por algum motivo, senti pena dele. Tudo o que ele queria era ser alguém; tinha visto uma chance de conseguir isso e foi atrás. Havia usado algumas estratégias infelizes, é fato, mas, em vez de um chantagista perigoso com a intenção de nos arrancar tudo que pudesse, ele parecia uma criança ansiosa por aprovação, em busca de amigos. Reclinei-me na cadeira e suspirei. “Vou para casa”, eu disse depois de algum tempo, tirando um pequeno bloco e uma caneta do bolso interno do casaco e entregando a ele. “Anote seu telefone aqui. Entrarei em contato. Mas não estou prometendo nada, ouviu? Tommy não exagerou. Seu roteiro precisa de muitos ajustes.”
Ele anotou o telefone, ansioso, e fiquei com vontade de rir do absurdo daquela situação. Esse moleque, pensei, só vai me trazer problemas. Ele não parecia ter se importado com a morte do pai, escondeu a verdade da polícia, tentou me chantagear e — o pior crime de todos — era um péssimo escritor. Então por que eu estava tão disposto a ajudá-lo?