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Na manhã do dia seguinte, o tempo estava agradavelmente primaveril, não se vendo uma única nuvem no céu. Hanio conseguira que o médico lhe desse alta temporária e arranjava-se, fazendo a barba tranquilamente em frente ao espelho. O primeiro homem, entretanto, deslocara-se à embaixada. Com o companheiro ausente, o segundo homem tornou-se subitamente conversador. Mostrava evidente admiração por Hanio, mas não dizia senão banalidades e frases feitas.

— Ah, a sua atitude perante a morte é de louvar. Em si juntam-se corpo e alma, como num samurai.

Ao pequeno-almoço, o homem comeu um bolo com creme que pedira à enfermeira para lhe trazer. Hanio ficou fascinado ao ver o homem comê-lo. Parecia uma criança quando lhe deu uma dentada. O creme amarelo, saindo em forma de quarto crescente dos lados da boca, parecia o sol a brilhar dos dois lados da boca.

Pela primeira vez em muito tempo, Hanio reparara em algo relacionado com os seres humanos que o interessava e divertia. Pelo que podia deduzir, os espiões do País A, um dos mais avançados do mundo, não levaram em linha de conta um pormenor essencial e isso revelou-se catastrófico, conduzindo-os inexoravelmente à morte. Faltava saber, claro está, se a sua dedução estava correta. Ao ver-se ao espelho, depois de aplicar a loção de barbear, a sua imagem refletida parecia tão jovem e radiosa que até ele próprio a achou cativante. Tinha o rosto de um jovem hedonista, oriundo de uma família endinheirada e sem qualquer preocupação ou responsabilidade no mundo. Do lado de fora da janela, flores de cerejeira, ainda só meio abertas, balançavam ao sabor da brisa.

O primeiro homem regressou, ofegante.

— Trago grandes notícias. Eles sempre têm o formulário usado nos telegramas. Os espiões do País A, quando querem, conseguem tudo. Ah, já me esquecia. Antes de dar início à sua missão de vida ou de morte e de se infiltrar clandestinamente na embaixada do País B, tem de comparecer a uma reunião com o embaixador do País A.

— A que horas?

— Entre as dez e as onze, quando lhe der jeito.

— Está bem — respondeu Hanio, olhando para o relógio. — Tenho de ir a um sítio primeiro, por isso devo lá chegar por volta das dez e meia.

— O que quer dizer com isso? Onde tem de ir? A propósito, ainda tem espuma atrás das orelhas.

— Obrigado.

A ingerência dos dois homens no seu quotidiano matinal importunou Hanio sobremaneira. Limpou a zona por trás das orelhas com uma toalha e passou-a também pelo queixo. Apareceram na toalha alguns pontos vermelhos. Tinha-se cortado com a lâmina.

A visão do sangue trouxe-lhe recordações da mulher vampira e emocionou-se ao pensar que nunca mais voltaria a sentir o envolvimento profundo de estar imerso num doce e lânguido banho letal. É possível que ela tenha comprado a sua vida com o intuito de lhe proporcionar uma experiência com aquele grau de intensidade.

— Mas diga lá então onde tem de ir — insistiu o primeiro homem.

— Não vale a pena perguntar. Venha apenas comigo. Tenho de fazer compras, só isso. Preciso de estar preparado antes de ir desta para melhor.

O homem ficou de cara séria, sem saber o que responder. E Hanio divertiu-se com isso.

Quando saiu do hospital, a enfermeira avisou-o:

— Agora não se meta em confusões só porque o deixaram sair. Ainda não está totalmente restabelecido.

— Acho que ontem lhe provei que não posso estar melhor de saúde… — brincou Hanio.

Ao ouvir isto, a enfermeira deu-lhe um beliscão no braço.

Lá fora, sob a luz primaveril, a lembrança da breve dor desse beliscão deu-lhe mais ânimo. Ao descerem a larga rampa que levava ao centro da cidade, os três, exprimindo nos rostos um misto de divertimento e tensão, mais pareciam um grupo de amigos a caminho de uma corrida de cavalos.

— Precisamos de ir a uma frutaria de boa qualidade que só venda legumes frescos — fez Hanio notar aos seus acompanhantes. — Talvez na zona de Aoyama.

Chamaram um táxi para os levar até lá.

Há já muito tempo que Hanio não ia à cidade. Não se via qualquer indício de morte. As pessoas estavam metidas até ao pescoço na sua vida quotidiana. Pareciam caminhar como se fossem picles humanos.

«Neste caso, sou um picle dos mais avinagrados», pensou Hanio.

Mas, mesmo como picle nunca conseguira ser mais do que a azeitona que vem com a taça. A rotina monótona de três refeições ao dia não fazia o seu estilo.

«É o meu destino, não está ao meu alcance mudá-lo», pensou Hanio.

Na frutaria K., Hanio comprou cenouras já descascadas, cortadas em talos e embaladas num saco de plástico transparente, embaciado pelo frio do frigorífico. Os dois homens assistiam a tudo com um ar compenetrado.

— Só vai comprar isto? — perguntou o primeiro homem.

— Só — respondeu Hanio. — Bom, vamos lá então até à embaixada do País A.

Hanio sentiu-se um pouco ferido no orgulho por ter de entrar pela porta de serviço, nas traseiras da magnífica embaixada construída em pedra calcária. Depois atravessaram a cozinha, subiram umas escadas imundas e abriram a porta de um magnífico escritório de estilo eduardiano. Os dois homens que o tinham levado ficaram à entrada, vigilantes. Um cavalheiro de cabelo grisalho e ar distinto estava sentado muito direito a uma secretária imponente.

— Aqui está a pessoa de que lhe falámos.

— Ah, muito bem. Sou o embaixador do País A.

O cavalheiro estendeu educadamente a mão. Hanio, ao apertá-la, sentiu que estava a pegar numa flor seca. Parecia tão suave que ao mínimo toque podia desfazer-se. Apesar disso, ao retirar a mão imaginou que podiam lá ter ficado vários espinhos espetados.

— Aqui está o seu adiantamento — disse então o embaixador.

Em cima da mesa via-se um cheque. O embaixador pegou nele, preencheu rapidamente a quantia, duzentos mil ienes, assinou-o e entregou-o a Hanio antes ainda de a tinta ter secado.

— Bem, Sr. Embaixador, vamos ao que interessa. O formulário em branco que o senhor tem consigo pertence ao País B? — perguntou Hanio.

— Sim, e temos mais alguns exemplares à sua disposição.

— Agradecia-lhe que pedisse a alguém que datilografasse um dos telegramas intercetados do País B, de forma a que o texto fique dentro das margens da página em branco.

— Com certeza.

O embaixador tocou a campainha para chamar uma datilógrafa e entregou-lhe a fotocópia de um dos telegramas intercetados e o impresso do formulário.

— Está aqui uma fotocópia do telegrama. Veja — pediu ele a Hanio.

Mal passou os olhos pelo papel, Hanio pôde ver que continha um conjunto de palavras incompreensíveis. Mesmo com tradução para japonês, continuaria a não fazer sentido.

Enquanto esperavam que a datilógrafa fizesse o seu trabalho, Hanio, o embaixador e os homens que o tinham acompanhado permaneceram sentados em frente uns dos outros em total silêncio. A parede estava decorada com retratos dos grandes políticos do País A e a secretária tinha à volta estantes com edições luxuosas em capa de couro, entre as quais As Obras Completas de Benjamin Disraeli. Pairava no ar um odor enjoativamente doce que devia corresponder ao perfume usado por quem ali permanecia muito tempo.

A datilógrafa, de meia idade e ar bastante formal, entregou de forma inexpressiva a folha datilografada e deixou a sala.

— Ora bem… — disse o embaixador.

— Então vejamos.

Hanio tirou um dos talos de cenoura do saco de plástico ainda frio e meteu-o na boca.