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Hanio viu que se encontrava numa cave. Era muito fria, com o chão em cimento, e tinha várias cadeiras em redor de uma mesa banal. Obrigaram-no a sentar-se numa delas, com as mãos amarradas sobre os joelhos. Por fim, tiraram-lhe os óculos.

Estavam com ele seis homens, incluindo os dois que o tinham acompanhado no carro. Os outros quatro eram pessoas que ele reconheceu imediatamente. Três deles eram os estrangeiros que estavam presentes quando experimentou a poção do escaravelho Scarabaeidae. Henry, o mais velho dos três, não tinha agora o dachshund ao seu lado. O quarto era o asiático de meia-idade, de aspeto mais do que duvidoso e amante de Ruriko, que usava uma boina impossível de esquecer. Estava tal qual como no tempo em que o conhecera, ao ponto de fazer-se acompanhar de um grande caderno de esboços.

O homem da boina ridícula ofereceu um cigarro a Hanio, acendeu-lho e sentou-se na cadeira ao seu lado. Quanto aos outros cinco, uns estavam sentados, outros de pé, mas todos olhavam fixamente para Hanio. Os que tinham vindo com ele no carro ficaram de pistolas apontadas na sua direção, prontas a disparar a qualquer momento.

— Bem, vamos dar início ao interrogatório — disse o asiático, numa voz arrastada e melosa que ecoou por toda a sala. — Em primeiro lugar, gostava que confirmasse, aqui e agora, que pertence à polícia.

Hanio ficou estupefacto, era a última coisa que esperava ouvir.

— Da polícia, eu? Não posso confessar uma coisa que não sou.

— Olhe, pode usar os subterfúgios todos que quiser, mas, de uma maneira ou de outra, a verdade virá ao de cima. Faço-me entender? Bom, acho que tem o direito de saber por que motivo não nos livrámos de si até agora e o deixámos à sua sorte. Eu sou pela conversa e pela aplicação de métodos persuasivos e limpos. Deixo para os outros a tarefa de matar. Quando o seu anúncio saiu no jornal, achei-o um pouco suspeito e por isso pedi a um velho que trabalha para nós que fosse visitá-lo. Vou chamá-lo, porque também ele está desejoso de o reencontrar. Bateu as palmas com tanta força que quase parecia ter caído um trovão.

Um velho entrou na sala por uma porta lateral. Cumprimentou Hanio com um aceno de cabeça à distância, fazendo o seu típico som sibilante com a dentadura postiça.

— Desculpe-me — disse ele, dirigindo-se a Hanio.

— Basta! — disse o asiático, irritado com o educado tom de voz do velho. — Trouxe comigo o caderno de esboços, porque é minha intenção desenhá-lo, Sr. Hanio, antes de morrer. Quero desenhá-lo em várias posições e espero ser capaz de passar para o papel as suas posições mais interessantes quando estiver a contorcer-se com dores lancinantes antes de morrer. Tenho a certeza de que sabe o que eu pretendo captar. O anúncio que publicou chamou-nos a atenção, porque nos chegou ao conhecimento que a nossa organização estava a ser objeto de uma investigação policial confidencial. Como as informações não abundavam, achámos que podíamos utilizar alguém que, tendo posto um anúncio daqueles no jornal, estava disposto a abdicar da vida, o que seria perfeito para funcionar como agente infiltrado. Pensámos que a ideia resultaria em pleno e que conseguiríamos deslindar tudo o que se estava a passar.

«Em primeiro lugar, pusemo-lo em contacto com a Ruriko. Ela sabia demasiadas coisas sobre a nossa organização e chegáramos ao ponto em que não era possível ter a certeza de que não iria revelá-las a outras pessoas. Foi por essa razão que decidimos eliminá-la o mais rapidamente possível. Assim, depois de os dois se terem conhecido, livrámo-nos dela. Achámos que, perante isto, não teria outro remédio senão contactar os seus colegas da polícia. Mas, para grande surpresa nossa, isso não se verificou. Estávamos a lidar com alguém mais inteligente do que tínhamos suposto, sem dúvida! E que usava cautelas que não se coadunavam com a nossa impaciência. A nossa intenção, ao deixá-lo regressar a casa vivo, depois de ter estado com ela, era saber como conseguia as informações e as transmitia. Entretanto, já possuíamos uma fotografia da sua cara. Porque este caderno de esboços tem lá dentro uma máquina fotográfica. Ora veja.

O homem mostrou-lhe o caderno de esboços, que tinha na capa a palavra «SKETCHBOOK» escrita com uma caligrafia elegante. Vendo bem, notava-se que a capa era anormalmente grossa. Os «OO» pareciam dois olhos, um bem aberto e o outro fechado. A meio do olho aberto encontrava-se uma lente.

— Mas o senhor meteu-se em copas e não contactou a polícia. Quando estava a jantar com o rato de peluche, perguntámo-nos o que estaria a tramar, mas mais tarde, quando o inspecionámos, não encontrámos nenhum transmissor. Há que dizer que a maneira como evitou denunciar-se foi genial. Espantoso, mesmo. Então, decidimos usar uma outra mulher, que também trabalha para nós. Depositámos nela todas as nossas esperanças, convencidos de que iria usar todas as artimanhas para lhe sacar a verdade. Mas o raio da solteirona acabou por apaixonar-se loucamente por si e deixou-se morrer em seu lugar.

«É sempre complicado desfazermo-nos de um cadáver, mas quando se trata de um suicídio é bastante mais fácil. Por isso, depois de consultar Henry e os outros, decidimos deixá-lo ir de novo em liberdade e recuar um pouco para podermos observar os seus movimentos sem levantar suspeitas. Sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, o teríamos de matar, pelo que quisemos aproveitar a situação para o usarmos como isco e assim descobrirmos mais espiões da sua rede. No entanto, o Hanio esteve sempre um passo à nossa frente e nunca baixou a guarda. Depois, quando foi viver com a mulher vampira, chegámos a pensar que devia ter enlouquecido e que nos tínhamos enganado completamente. Tinha-se tornado tudo tão absurdo que já só queríamos que a vampira lhe sugasse o sangue todo e acabasse consigo de uma vez por todas. Seria ouro sobre azul. Mas isso também não veio a acontecer, pois não? O Hanio acabou mesmo por pôr a vida em risco quando fez aquele magnífico trabalho de espionagem. Excecional, de facto!

«Depois, sabemos muito bem o que decidiu fazer. Inventou uma anemia e fingiu desmaiar, de modo que o levassem para o hospital. E, enquanto lá esteve, nós afastámo-nos um pouco e abrandámos a vigilância, mas o seu trabalho prosseguiu como dantes.

— Não, isso não é… — atalhou Hanio, protestando, sem conseguir terminar a frase.

— É uma evidência que não é possível negar. Sabe, a SSA age em estreita colaboração com o País B, e desde o incidente que envolveu as cenouras e a descodificação dos telegramas, este país tem uma lista de espiões da polícia japonesa da qual consta o seu nome. O seu trabalho foi de primeira água, mas foi precisamente isso que levou à sua ruína e comprovou tudo acerca de si. Não passa, no fundo, de um idiota como outro qualquer!

E, sorrindo com aparente gentileza, encostou a ponta afiada do lápis à garganta de Hanio.

— Quando soubemos que o seu nome estava na lista, decidimos investigar o que os seus colegas andavam a fazer. A melhor solução seria raptá-lo, obter a sua confissão e, a seguir, liquidá-lo. Mas, nessa altura, descuidámo-nos mais do que devíamos e perdemos o seu rasto. A verdade é que estávamos metidos num sarilho dos grandes e não podíamos deixar que as coisas ficassem assim, pois o perigo era enorme e real. Pelo menos, assim o pensávamos então.

«A fotografia que lhe tirámos acabou por ser de grande utilidade e fizemos inúmeras fotocópias. Supusemos que era possível voltar aos seus sítios preferidos em Shinjuku e arranjámos um vendedor de LSD, desses que andam nas ruas e colaboram com a nossa organização, para distribuir a sua fotografia e indagar da sua presença ali, anteriormente. Perguntou a todas as prostitutas da zona se conheciam o homem da fotografia, que era o mesmo que tinha posto um anúncio no jornal para vender a sua vida, mas não descobriu nada. O Hanio dormiu com muitas mulheres, mas usou de todas as cautelas e nenhuma sabia do seu paradeiro. E teve até o cuidado de deixar o seu antigo apartamento!

«Procurar uma pessoa em Tóquio, uma cidade com dez milhões de habitantes, põe qualquer um desesperado. Ali andava você, que sabia tudo sobre a SSA, a pular pela cidade que nem uma pulga, e nós, sem fazermos ideia de como o apanhar.

«Mas, meu caro Hanio, acontece que os deuses existem mesmo. E nunca nos abandonam. Eles adoram que cá em baixo se criem sociedades secretas como a nossa e, na sua infinita misericórdia, envidam todos os esforços para nos ajudar.

«A SSA teve a sua origem em Hongbang, na China, e é a divindade adorada nessa região, Hongjun Laozu, que nos está a ajudar. Durante a rebelião Taiping, Lin, comandante do exército do General Zeng Guofan, foi enviado para Yangzhou para enfrentar os rebeldes. Mas acontece que Lin estava longe de ser um especialista na arte da guerra. Mesmo com um exército de mil homens à sua disposição, não conseguiu sair vitorioso. O General Zeng ficou tão furioso que condenou Lin à morte. Este, quando teve conhecimento disso, pôs-se em fuga, levando dezoito soldados sob o seu comando. Sem nunca pararem, chegaram finalmente a um mausoléu antigo, onde se refugiaram para passar a noite. Passado pouco tempo, ouviram sons no exterior e viram que se aproximava um grupo enorme de pessoas. Pensaram que a sua hora tinha chegado e empunharam as armas, prontos para combater, mas, afinal, eram habitantes das aldeias em redor que se dirigiam ao mausoléu por causa de um ruído enorme que por elas ecoara.

«Contaram então aos homens que ali estavam refugiados que, quando saíram das suas casas para ver o que se passava, se depararam com um enorme dragão a serpentear no céu e expelindo fogo pela boca, o que deixava a zona iluminada como se fosse dia, lançando-se depois sobre o mausoléu. Convencidos de que podia lá estar alguém importante, vieram acudir. Lin sentiu-se aliviado e perguntou o nome da aldeia. Quando lhe disseram, percebeu que tinham percorrido uns bons trezentos quilómetros desde o acampamento militar de que tinham fugido, e quase nem queria acreditar como tinha sido possível cobrir aquela distância em tão pouco tempo. Só a ajuda divina poderia estar por trás de um feito assim. No portão havia uma placa com a inscrição “Mausoléu de Hongjun Laozu”. Estava identificado o seu salvador. No dia seguinte, reuniu velas aromáticas, papel perfumado, água e vinho, e fez uma oferenda à divindade. A partir desse dia, todos aqueles homens se converteram em bandidos bons, roubando os ricos e distribuindo o dinheiro pelos pobres. Tudo começou, pois, em Hongbang. Desviei-me um pouco do assunto principal, mas quis mostrar-lhe o motivo pelo qual veneramos essa divindade.

«E depois aconteceu que o velho o encontrou, por mero acaso, quando andava a passear no parque. Foi a nossa salvação, porque conseguimos finalmente pôr-lhe um dispositivo de localização.

— Foi tal e qual assim que se passou — confirmou educadamente o velho, bem vestido como de costume, lançando um olhar de arrependimento a Hanio.

— Percebo que toda esta história possa fazer sentido para si, mas garanto-lhe que não tenho nada a ver com a polícia — protestou Hanio. — O senhor tem a paranoia de que toda a gente pertence a uma organização qualquer. E essa conversa toda sobre Hongbang é ridícula. Já não é tempo de acreditar em histórias da carochinha. No mundo também há pessoas que vivem e morrem em liberdade, sem dependerem de nenhuma organização, secreta ou não.

— Pois, diga o que achar que deve dizer enquanto pode, mas, sinceramente, são comentários que não me surpreendem, porque um espião da polícia japonesa está treinado para afirmar aquilo que é conveniente em qualquer circunstância. Devo até dizer que o nível cultural da polícia se situa atualmente num patamar bastante elevado. Bom, mas há ainda outras coisas de que lhe quero falar. Quando retirou o dispositivo que lhe introduzimos na coxa, conseguiu enganar-nos novamente e voltámos a ficar sem saber o que fazer. O Hanio tem dotes de ilusionista, sem dúvida. Para alguém que pôs a vida à venda, não deixa de ser curioso verificar que a defende com unhas e dentes. Pelo menos até ao dia de hoje.

«Sabe como descobrimos que vinha para Hannō? Temos agências de viagens que possuem dados oriundos de todas as hospedarias existentes do Japão. Nós arranjamos-lhes clientes e eles, por sua vez, dão-nos informações sobre eles. A agência de viagens que eu oriento, por exemplo, trata bem os seus clientes, tem boa reputação pelo excelente serviço que presta e as hospedarias estão muito satisfeitas com o modo como tudo se tem processado. Por isso, dado o clima de entendimento que existe, se um cliente permanece demasiado tempo numa delas, somos imediatamente informados.

«Passámos a pente fino as hospedarias de todas as províncias do Japão, tendo verificado as estadias em nome individual de homens aproximadamente com a sua idade que tivessem sido mais prolongadas. A pouco e pouco, fomos apertando o cerco até o identificarmos na hospedaria perto da estação de Hannō. Com alguma sorte, mas conseguimos o que queríamos! Ora, tendo sido capazes de capturar um espião da sua envergadura, resta-nos obrigá-lo a falar. Obtidas as informações que nos fornecerá, é fácil imaginar o dinheiro que podem render. Não é de admirar, por isso, que todos estejamos aqui tão excitados. Estes estrangeiros são loucos por dinheiro, sabe. Portanto, há várias coisas que vai ter de me dizer. A polícia tem mais espiões a investigar a SSA? Onde atuam? Quais as atividades a que se dedicam? E como entram em contacto uns com os outros?

Naquele momento, Hanio pensou na caixa preta que trazia no bolso e achou que a expressão de arrependimento que vira no rosto do velho era o sinal de que precisava.