Capítulo 9

Nós.

A maneira que ele disse a palavra soou estranha aos ouvidos de Lianae.

Enquanto o pai e a mãe dela ainda viviam, tinha havido um sentido de nós, mas este nós era de alguma forma diferente. O pai dela tinha sido líder de homens, um lesser Ri, um rei menor, e sua mãe, uma mulher que cuidava de sua ninhada. O nós nunca foi uma soma somente dos dois.

Ela pensou neste fato enquanto estava no cavalo com Keane. Ela andava atrás dele, seu corpo protegendo-a da tempestade. Em se mantendo nas florestas, eles evitavam o vento, mas também não conseguiam pegar nem um raio de sol, porque eles estavam blindados pela floresta. Fria e molhada e tremendo, Lianae se inclinou nas costas dele para sentir seu calor.

Mas ela não enganaria a si mesma.

Onde quer que eles estejam indo, ela estava a um passo de ser devolvida para o Conde — como se ela pertencesse a ele, como um bem móvel. Ainda havia alguns de seu povo restantes e muito poucos estariam dispostos a se arriscar a ira do rei escocês. E ainda assim ficar em Lilidbrugh era do seu interesse também, Keane mantendo sua promessa ou não de recuperar suas pedras.

Após um início suave, o inverno agora parecia um javali enfurecido. A cada minuto o frio crescia cada vez mais. A agitação rápida que tinha enfeitado o céu ontem à noite tinha se tornado um vento cortante de gelo, bombardeando o céu azul de preto. Eles conseguiram levantar o acampamento rapidamente e em um curto espaço de tempo eles montaram e estavam a caminho.

Apesar de tudo que estava acontecendo, Lianae podia ser um espectro, pois era como se ela fosse invisível para todos, menos para Keane. Nenhum dos outros homens ousava olhá-la, muito menos falar com ela ou tratá-la duramente, e ela tinha um pressentimento que sabia o por que.

Keane.

Eles tinham medo dele.

Era impossível ver qualquer coisa além do comprimento da sua mão, mas ela sabia que tinham catorze homens. Ela espiou só seis — o que se chamava Cameron, que frequentemente Lianae via seus olhares duvidosos e outros cinco. Esse punhado de homens permanecia mais próximo de Keane, andando como em matilha. Os outros ficaram para trás, formando outra turma. E, mesmo cercados pelas árvores, o vento soprava tão furiosamente que Lianae tinha pouca escolha, a não ser colocar seus braços sobre o peito de Keane, dobrando seu manto sob os braços para mantê-lo de se ondular ao vento.

O abraço desta manhã tinha sido bem diferente, e a memória dele continuava a aquecer suas bochechas. Felizmente, se ele pensasse menos dela pelas liberdades que ela tinha tomado, ele não disse, nem ele se comportou como se Lianae o tivesse ofendido. Ele parecia ainda mais solícito, alcançando-a para que ela ficasse firme na sela. Lianae não se incomodava em tentar falar com ele, nem mesmo para agradecer-lhe. Apesar de sua proximidade, ele não a teria ouvido de qualquer maneira. Como uma banshee (41) raivosa, ela ouvia apenas o vento gritando enquanto eles passavam pelas árvores.


O vento frio passava pelas saias dela, e ela tentava ajustá-las de vez em quando para que elas ficassem embrulhadas mais firmes sobre suas pernas — para esconder as contusões dos olhares indiscretos e também para aquecer suas pernas. Mas não importava quantas vezes ela tentasse ajustar, a saia voava junto com o vento, chicoteando furiosamente. E a cada passo que eles davam, ela sentia cada vez mais a perda de suas pedras. Várias vezes ela tentou verificar as pedras restantes que ainda estavam seguras em sua bolsa. Felizmente, Keane tinha permitido ela ficar com seu manto de lã grossa e o consolo maior foi que ela tinha sua lã grossa ainda embrulhada sobre seus pés. Selvagem ou não, o homem era uma dádiva de Deus, afinal de contas.

Foi no início da tarde, que os ventos começaram a aliviar e o céu ficou da cor cinza rude. Finalmente, uma pitada de sol espiou para fora das nuvens sombrias e apareceu através dos pinheiros. Depois de algum tempo, uma pequena lebre cinza correu diante deles, e o estômago do Lianae se queixou em voz alta. "Nós vamos pararem breve," ele disse, batendo-lhe na perna.

Percebendo que ele muito provavelmente tinha ouvido sua barriga resmungar, as bochechas de Lianae começaram a queimar. "Obrigada," ela disse e estava grata por seus cuidados. Ele já tinha feito mais por ela do que a maioria dos homens teria feito sob as mesmas circunstâncias. Ainda assim, ele nem sequer perguntou para ela o que ela estava fazendo tão longe de casa. E sinceramente, neste momento, ela lamentava ter devolvido sua bondade com nada além de grosseria, quando ele havia perguntado sobre o vestido. "Se você quer saber, eu estava para me casar," ela confessou tardiamente.

Ele ficou quieto um longo momento e Lianae esperou ele falar, preparada para dizer-lhe qualquer coisa que ele desejasse saber — além de revelar quem ela era. Era como se ela devesse agir para fazer as pazes por sua grosseria e recompensá-lo por sua bondade.

"De alguma forma, eu não posso imaginar você uma esposa obediente."

Lianae sorriu, pois ela sentiu que ele não tinha falado isso como um insulto. Na verdade, parecia ter uma nota de admiração na voz dele. "Você me lisonjeia."

Na verdade, ela nunca tinha imaginado se casar com um homem gordo, um laird escorregadio e obsceno. Era Elspeth que tinha direito a ter um dote. Lianae ficaria mais do que contente em herdar a fazenda do pai dela, e Óengus também parecia perfeitamente satisfeito em lhe dar essa herança. A mãe dela era quem tinha tido outras idéias, porque ela queria ter um bando de netos. Porque seus filhos não pareciam excessivamente inclinados a dar-lhes, ela esperava que ou Elspeth ou Lianae se casassem em breve.

"Foi por isso que você fugiu? Porque você não queria se casar?"

"Não." Lianae teria feito isso para simplesmente agradar sua mãe. Mas até alguns dias atrás, ela não podia imaginar como os homens podiam ser cruéis. Felizmente, a mãe dela não estava viva para ver os olhos sem vida de Elspeth, seu pescoço machucado e seus lábios azuis.

Keane não fez mais perguntas. Muitas palavras tinham sido faladas e a aliviou saber que ele não iria mais se meter. Ela apoiou o rosto nas costas dele, roubando seu calor e permitindo que a batida do seu coração a embalasse de volta a dormir.

Quando ela acordou depois de um tempo, ela não tinha certeza de quanto tempo ela tinha dormido ou quanto tempo eles estavam cavalgando, só que sua barriga estava roncando mais alto e seus cílios estavam quase congelados. Mas agora o vento tinha parado, e ela podia ouvir os cascos dos cavalos marchando inesgotável pela neve. Isso era algo que a divertia: nas histórias que sua avó muitas vezes tinha lhe contado — de muito tempo atrás — ela falava dos Vikings (42) roubando tranquilamente na neve. Na experiência de Lianae, não via nada tranquilo sobre a neve. O som era alto e com 14 cavalos e cinqüenta e seis patas, o ruído era implacável. Mas, infelizmente, não mais alto que o ronco do seu estômago.

Ele a acariciou novamente. "Você está acordada?"

Lianae assentiu com a cabeça sonolenta. "Mas eu gostaria de não estar."

"Por que moça?"


Engolindo com alguma dificuldade, Lianae agarrou sua capa para que ela não caísse do cavalo, porque ela estava cansada, com fome e com sono. Seu estômago doía, e todos pareciam estar igualmente desconfortáveis como ela, todos, exceto Keane. "É a minha barriga," ela disse apesar dela suspeitar que alguma outra coisa afligisse os homens e não era fome.

"Desculpe-me moça," ele disse. "'Suspeito que tenha sido a perdiz. Nós encontraremos alguma coisa para resolver a dor na sua barriga, eu prometo."

Lianae sorriu, pois ele parecia com a mãe dela, apesar dele parecer um assassino selvagem. Nem mesmo seus irmãos a tinham mimado assim, e ela encontrou-se desejando que seus homens não lhes tivessem interrompido esta manhã. O sabor dos seus lábios ainda estava na sua boca e ela não tinha que tentar se lembrar daquele cheiro tentador. Ela precisava apenas inalar uma respiração...

O que seria passar o resto de seus dias com um homem como Keane?

Muito melhor do que com o Conde, disso ela tinha certeza. Lianae pressentia que Keane era um homem rápido para proteger as pessoas e as coisas que ele valorizava, sem medo de enfrentar homens como William fitz Duncan. Ao contrário de seu irmão Lulach. Ele era bonito, mesmo estando vestido sem qualquer elegância e usando roupas rudimentares — como um guerreiro dos velhos tempos.

Na verdade, ele a fazia se lembrar um pouco dos guerreiros Vikings que sua avó falava tanto, exceto que ele tinha o rosto mais escuro, não tinha cabelos loiros — mais parecia como aqueles pintados que antes tinham habitado as Highlands. Agora eles tinham sumido, embora Lianae pressentisse que eles ainda estavam pelos arredores, simplesmente escondidos, como os homens e mulheres de Moray.

Claro, que era melhor para o povo de Moray se esconder. Não havia suficiente deles agora para ir contra os usurpadores. Mas a próxima coisa que se sabia, era que os homens de Moray desapareceriam e se algum deles permanecesse vivo — como Lulach — eles manteriam suas roupas elegantes, e frequentariam suas capelas chiques e criariam seus filhos e filhas para serem bons Sassenachs. Este era o destino que ela imaginava... a menos que ela pudesse encontrar Ewen e Graeme e eles pudessem restaurar o Mormaerdom. Ela gostava de imaginá-los agora como homens fortes... esperando a chance de se levantarem e retomarem o que pertencia a seu povo.

Assim que Lianae tivesse chance, ela iria recuperar aquelas pedras e encontrar uma maneira de alcançar seus irmãos. Ela podia conseguir suficientes moedas que ela poderia doar para sua causa.

"Quantas pedras você recuperou?" Keane perguntou, como se ele estivesse lendo a mente dela.

"Cinco," Lianae respondeu.

"Quantas pedras você tinha antes?"

"Doze."

Ela sentiu mais do que o viu acenar... e mais uma vez ela apoiou o queixo sobre as costas dele. "Você sabe o que elas são?"

"Eu sei," ele confessou.

"Você já as tinha visto antes?"

"Sim."

"Ah, você fala mais do que duas palavras de cada vez?"

”Eu falo," Keane disse, e mais uma vez, ela não viu, mas sentiu que ele estava sorrindo. O riso estava no tom da sua voz. Os músculos do peito dele pareciam relaxar sob as mãos dela.

Lianae riu suavemente, se perguntando por que ele tinha ficado tão relutante em pegar o que ela lhe tinha oferecido esta manhã. Ele já tinha uma esposa? Essa possibilidade lhe dava prazer e ao mesmo tempo a frustrava, porque ela nunca tinha conhecido um homem tão fiel a sua mulher — e isto era uma coisa boa, mas agora que ela tinha se colocado na proteção de Keane, ela precisava que seu coração estivesse livre. "Então,... se você gosta tanto de mulheres, você deve ser casado?"


Os lábios de Keane se curvavam arrogantemente por causa da curiosidade na voz dela. Ela disse quase como uma declaração, como se não pudesse haver nenhuma outra causa para ele ter enxotando ela da cama. E sim, ele sabia intuitivamente porque ela tinha feito a pergunta: aquele beijo. "Não sou casado," ele respondeu.

Ele a sentiu suspirar — uma respiração longa e quente contra o fundo das suas costas. Ele sentiu penetrar nas camadas da sua vestimenta. "Bem, aqui temos três palavras," ela disse, e Keane quase não pode suprimir sua alegria.

Seus ombros tremeram com o riso. "Não, jovem," ele disse, para ser mais claro. "Eu não sou casado."

Talvez fosse imaginação dele, mas ela pareceu ficar mais perto dele depois de sua admissão e esse fato agradou-lhe mais do que ele poderia dizer.

"E você tem certeza de que você não gosta de homem?"

Mais uma vez, Keane sufocou uma risada e disse. "Total certeza."

"Vejo que voltamos para duas palavras. Você ficou irritado por eu te perguntar isso?"

"Por que deveria me irritar? Se você estava curiosa, você só poderia saber se você perguntasse?"

Ela suspirou novamente, a bochecha contra suas costas, inclinando-se e Keane deu uma respiração profunda, inebriante, apreciando a sensação dela. "Isso é o que eu costumava dizer para meu pai," ela disse. "Quando ele se queixava que eu fazia muitas perguntas."

"Costumava?” Keane olhou por cima do ombro, vislumbrando o topo dos cabelos vermelhos dela.

"Sim."

"Ele não está mais vivo?"

"Não."

"E sua mãe?"

"Morta."

"Ah, agora é você Lianae. Você fala mais do que uma palavra de cada vez?"

Ela riu rapidamente, e o som foi como uma música para os ouvidos de Keane.

"Você tem algum parente vivo?"

Seus braços magros cercaram o peito dele — um gesto que pareceu um abraço e a sensação deu a Keane um caroço estranho na garganta. Mas ele sentiu que a resposta dela antes que ela falasse novamente, e isso o encheu de tristeza.

Como deveria ser realmente sozinho?

Ele muitas vezes tinha se considerado sozinho, mas a verdade era que Keane tinha pessoas que o amavam e parentes que iriam recebê-lo em casa, não importava as circunstâncias.

"Não," ela disse depois de um longo momento.

"Nem irmãos, nem irmãs?"

"Eu tinha três irmãos, e uma irmã."

Ela não deu mais informações e Keane levou um longo momento para vencer seu instinto e não se intrometer.

"Me disseram que meus irmãos e meu senhor, que todos morreram na batalha de Stracathro em Forfarshire e minha mãe — bem, ela morreu há três anos."

"E sua irmã?"

"Assassinada."

Keane não antecipou essa resposta e sentindo que eles estavam se aventurando em um território doloroso, ele absteve-se de fazer piadas sobre o seu retorno a respostas monossilábicas. E ainda assim ela parecia com vontade de falar, e então ele lhe perguntou algo que ele realmente queria saber. "Diga-me, moça... de quem você estava fugindo?"

Todo o seu corpo estremeceu, e seus dedos largaram o peito dele, as mãos dela caíram, embora ela não tenha respondido e Keane franziu a testa.

"Se você não me disser, você não vai me dar outra escolha a não ser entregá-la ao rei."

Agora, o tom dela se tornou de novo irreverente. "E é isso que você faz com todas as mulheres estranhas que você encontra?"

"Claro que não."

"Então por que você me entregaria para o seu rei."

Não havia nada simples sobre a garota, Keane decidiu. E, na verdade, ela podia ser a mulher mais complicada que ele já tinha conhecido — suas irmãs incluídas. Quanto à “farpa” — embora ela não tivesse falado com esta intenção, ele se ofendeu, quando ele fez a referência ao seu rei. David mac Maíl Choluim não era seu rei.

E depois havia isto: algumas pessoas ainda não tinham aceitado as regras de David — particularmente em Moray — mas a cada dia que passava a escolha não pertencia mais ao povo. David mac Maíl Choluim tinha ganhado ele próprio Northhampton e Huntingdon, assim como a maioria das terras. Agora, após a vitória na batalha de Stracathro, em Forfarshire, ele governava Moray bem como grande parte das Highlands. Após todos estes anos, ele podia, com razão, se chamar o Grande Rei dos Escoceses e Chefe dos Chefes. Se Lianae tinha a intenção ou não, ela tinha revelado para ele seus sentimentos com a simples pergunta, e agora mais do que antes ele estava feliz por ter escolhido Dunloppe como seu destino imediato. E mesmo assim ele a pressionou. "Meu rei"?

Ela ouviu o ressentimento em seu Tom. "Bem, ele é, não é?"

"David mac Maíl Choluim é o legítimo Rei da Escócia," ele disse. Era verdade, eles gostando ou não. "Ele também é o seu rei." Ele esperou para ver se ela ficaria ofendida com esta afirmação.

Mas ela não disse nada, nem voltou a sua posição de repouso e Keane sentiu uma separação aguda. Era um sentimento estranho, considerando que ele tinha conhecido a jovem a menos de um dia. Mas agora sua curiosidade tinha sido provocada: quem era ela que não aceitava David mac Maíl Choluim como seu legítimo Rei?

Ela estava vestida como uma dama inglesa — ou pelo menos uma escocesa sob o estandarte do rei escocês. Mas ela se auto-intitulava uma empregada que trabalhava em Moray... não de Moray, à moda normanda como era essencial nos dias de hoje. A primeira vista esta pequena distinção podia não significar nada, porque apenas uma mulher nobre falaria que era de Moray. Como uma plebéia, ela podia facilmente dizer que ela era uma empregada de Moray e ainda assim... como uma nobre, usar a distinção normanda — ou não — isso explicaria muito. Com a morte de Óengus de Moray, William fitz Duncan tinha tentado adotar o título de Mormaer, mas o povo revoltou-se, apesar de Fitz Duncan ser um Morayman pelo sangue. Seu pai era o rei, deposto por MacBeth. Por todos os direitos, o trono da Escócia podia ser dele, mas ele tinha se alinhado com David em vez disso — um movimento que o tinha feito tremendamente impopular no norte e levado a uma revolta, há cinco anos — uma batalha que Keane tinha se recusado a entrar, pois ele considerava os homens de Moray seus parentes distantes mais do que qualquer outro clã da Escócia.

Keane era um homem de poucas palavras, como seus homens podiam atestar, mas ele também estava bastante ciente de que o silêncio falava alto. Eles montavam em silêncio agora, enquanto ele contemplava a sutileza das palavras... aquelas que tinham sido faladas e aquelas que não tinham sido.


(41) banshee - demônio ou diabo (feminino) da morte (personagem folclórica irlandesa)

(42) Vikings - pessoas pertencentes à raça escandinava que viajavam por mar e atacaram as partes norte e sul da Europa entre os séculos 8 e 11, e muitas vezes ficaram vivendo nestes lugares.