Navio-Hospital Natal
Mar Mediterrâneo
Kurt, Joe e outros sobreviventes de Lampedusa estavam sentados ao ar livre no convés do navio italiano que tinha uma enorme cruz vermelha na chaminé. Tinham sido evacuados por soldados com roupas de proteção química, postos em helicópteros militares e desviados para leste. A operação correra bem. A parte mais difícil fora arrancar Joe da máquina de ressonância magnética, porém, ao cortarem as partes metálicas do que ele trazia vestido, tinham conseguido libertá-lo.
Após duches de descontaminação e de toda uma série de testes médicos, deram-lhes roupas novas, que eram uniformes militares sobresselentes, puseram-nos no convés e providenciaram-lhes o melhor café expresso que Kurt se lembrava de ter bebido.
Depois de uma segunda chávena, reparou que não conseguia estar quieto.
— Estás com aquela expressão no teu olhar… — observou Joe.
— Há uma coisa que ainda me incomoda.
— Se calhar, é a cafeína — alvitrou o amigo. — Bebeste o suficiente para pôr um elefante com tiques nervosos.
Kurt baixou os olhos para a chávena vazia e olhou Joe de frente. — Vê o que te rodeia — disse ele. — Diz-me o que vês.
— Também não tenho mais nada que fazer — respondeu Joe. Olhou em todas as direções. — Céu azul, a água a brilhar… pessoas felizes por estarem vivas. Embora eu saiba que terás reparado em qualquer coisa que te deve ter entristecido.
— Pois foi — ripostou Kurt. — Pois reparei. Estamos todos aqui. Todos os que sobreviveram. Todos, menos a pessoa com quem eu estaria mais interessado em falar, a Dr.ª Ambrosini.
— Eu vi-a quando entrámos a bordo — disse Joe, mexendo o açúcar que pusera no café. — Não te critico por quereres vê-la novamente. Quem é que não gostaria de brincar aos médicos com ela…?
Não havia dúvidas sobre o facto de ela ser uma mulher muito atraente, mas Kurt queria falar com ela por outras razões. — Se bem que possas duvidar, estou mais interessado na sua mente.
Joe levantou uma sobrancelha, e depois bebeu mais um gole de café, algo que significava: está-se mesmo a ver…
— Estou a falar a sério — insistiu Kurt. — Tenho algumas perguntas para lhe fazer.
— A começar por «Qual é o seu número?» — aventurou Joe. — Logo seguido de «O seu camarote ou o meu?»
Kurt não pôde deixar de se rir. — Não — insistia ele. — Ela disse algumas coisas quando eu cheguei à sala de cirurgia que me pareceram um pouco estranhas. Parecia ter alguma informação acerca do fulano que nos tentou matar. Já para não mencionar o facto de ela, desde o princípio, ter chamado a esse incidente um ataque, a começar com o apelo na rádio que nós conseguimos intercetar.
Joe mostrou um olhar um pouco mais calculado. — De que estás tu para aí a falar?
Kurt encolheu os ombros como que a demonstrar o óbvio. — Um cargueiro em chamas no meio do mar, fumo escuro a espalhar-se pela ilha, pessoas a caírem mortas por causa disso: que eu saiba, isso é um desastre. Um acidente. Até lhe chamaria uma catástrofe. Mas um ataque…?
— Isso são palavras muito fortes — observou Joe.
— Tão fortes como este café — disse o amigo.
Joe olhou para o horizonte distante. — Parece-me que já estou a ver até onde queres chegar e, embora eu goste sempre de ser a voz da razão, intriga-me também o facto de ela ter tido informação suficiente para reunir um grupo de pessoas e para selar rapidamente toda a sala, a fim de evitar o que aconteceu a toda a gente nesse hospital. Mesmo para um médico, creio ter-se tratado de uma resposta demasiado rápida.
Kurt acenou afirmativamente com a cabeça. — É antes o género de reação em que alguém, que pudesse estar à espera de problemas, já tivesse pensado.
— Um plano de contingência.
— Ou um procedimento operacional padronizado.
Kurt olhou em volta. Estavam a ser observados por três marinheiros italianos. Tratava-se de uma espécie de guarda de honra, sem grandes responsabilidades, e os marinheiros não pareciam estar muito interessados nessa missão. Dois deles estavam encostados à amurada a conversarem calmamente um com o outro, ao fundo do convés. O terceiro encontrava-se mais perto, a fumar um cigarro, ao lado de um pequeno guindaste mecânico. — Achas que consegues distrair os guardas?
— Só se me prometeres que lhes consegues escapar e que agitarás as coisas de tal modo que eles decidam atirar-nos borda fora.
Kurt levantou a mão como se estivesse a fazer um juramento — Juro pela minha honra.
— Então está bem — disse Joe, acabando de beber o café. — Cá vamos nós.
Enquanto Kurt observava, Joe levantou-se e dirigiu-se ao terceiro guarda, o único que estava suficientemente perto. De imediato, tentou entabular uma conversa, completa, a gesticular muito com as mãos para captar a atenção do homem.
Kurt levantou-se e começou a avançar, embrenhando-se nas sombras, ao lado de uma escotilha fechada, e encostando-se à antepara. Quando Joe apontou para uma coisa lá em cima, na superestrutura, o guarda inclinou a cabeça para trás e pestanejou, devido à luz solar, enquanto Kurt abria a escotilha para passar pela mesma e a voltar a fechar pelo lado de dentro.
Felizmente, o corredor estava vazio, mas isso não o surpreendia. O navio era grande, com cento e vinte metros de comprido, na sua maioria espaço vazio, e com uma tripulação de menos de duzentos homens. Grande parte dos corredores estaria vazia; o grande desafio era encontrar um que o levasse até à enfermaria, onde ele suspeitava poder encontrar a Dr.ª Ambrosini.
Começou a percorrer o espaço em direção à proa, onde se tinham desenrolado os processos de descontaminação e os testes. As instalações dos doentes teriam de estar perto. Se a encontrasse, bateria à porta, fingiria uma forte dor de garganta ou talvez uma apendicite. Algo que ele nunca mais fizera desde que tentara sair da escola, a meio do dia, no oitavo ano.
Pegou numa pequena caixa de ferramentas que tinha sido deixada no exterior da oficina. Ter passado anos na Marinha e ter viajado à volta do mundo com a NUMA ensinara-lhe muitas coisas, uma delas era que, se não queríamos que alguém parasse para conversar, tínhamos de andar muito depressa e evitar olhá-lo nos olhos e, se possível, levar qualquer coisa na mão que parecesse ter de ser entregue urgentemente.
A tática funcionou às mil maravilhas quando ele passou por um grupo de marinheiros para quem ele praticamente não olhara. Estes tinham desaparecido por detrás dele, precisamente no momento em que Kurt encontrou umas escadas que conduziam ao piso inferior, antes de continuar a sua busca.
Estava tudo a correr muito bem até ele se ter dado conta de que se tinha perdido. Em vez do centro médico, só estava a encontrar armazéns e compartimentos fechados à chave.
— Saíste-me cá um investigador… — murmurou ele para si mesmo. Quando estava a decidir qual a melhor direção a tomar, um homem e uma mulher de batas brancas desceram as escadas, falando em voz baixa um com o outro.
Kurt deixou-os passar e seguiu-os. — Primeira regra quando nos perdemos: seguir aqueles que aparentem saber para onde vão — disse para si mesmo.
Seguiu-os por mais dois lances de escadas e por um passadiço, até eles terem desaparecido por uma porta que se fechou suavemente por detrás deles.
Kurt parou ao lado da mesma. Não viu nada nessa porta que pudesse sugerir que não se tratasse de mais um armazém, porém, quando a entreabriu com muito cuidado para poder espreitar lá para dentro, descobriu que afinal estava errado.
Diante dele via-se uma sala cavernosa, com luzes fortes e muito brancas no teto. Parecia a princípio um armazém de mercadorias, mas estava vazio, à exceção de centenas e centenas de corpos sobre padiolas ou colchões, em cima do frio chão de aço. Alguns tinham fatos de banho vestidos, como se tivessem sido recolhidos de uma praia; outros estavam em calções e t-shirts e outros ainda tinham roupas com um ar mais formal, incluindo as fardas cinzentas que Kurt vira no pessoal do hospital. Nenhum deles se mexia.
Kurt abriu mais a porta e entrou, indo na direção das pessoas. Não fora a presença deles ali que o surpreendera. Apesar de tudo, alguém teria de recolher os mortos e os helicópteros tinham estado a levantar voo e a aterrar durante todo o dia. Era antes o facto de muitas das vítimas estarem agora ligadas a elétrodos, monitores e outros instrumentos. Algumas estavam ligadas a agulhas e a tubos para transfusões intravenosas; outras estavam a ser examinadas pelo pessoal médico.
Um sujeito começou com espasmos quando um técnico lhe deu um choque elétrico, e depois voltou a ficar imóvel logo que a corrente foi interrompida.
Por momentos, ninguém reparou na presença de Kurt, pois, apesar de tudo, este estava vestido como um membro da tripulação e eles encontravam-se demasiado ocupados com o que quer que fosse que estavam a fazer. Mas quando ele se introduziu mais no recinto e reconheceu Cody Williams e dois outros membros da equipa da NUMA, todos repararam nele. Um deles estava a ser injetado com qualquer coisa, enquanto lhe retiravam um conjunto de elétrodos da cabeça. Cody estava a levar o tratamento de choque.
— Mas que diabo se passa aqui!? — gritou Kurt.
Uma dezena de rostos voltou-se para ele. De súbito, todos souberam que ele não deveria ali estar. — Mas quem é você? — perguntou um deles.
— E o senhor quem é? — perguntou Kurt. — E que espécie de experiências doentias estão vocês a fazer com estas pessoas?
A voz potente de Kurt ressoou pelo espaço cavernoso. O seu aspeto zangado chocou o pessoal médico. Houve quem fizesse comentários entre dentes. Alguém disse alguma coisa numa língua que lhe pareceu ser alemão, enquanto outro já estava a gritar pelos seguranças.
De súbito, apareceu um grupo da Polícia Militar italiana, aproximando-se dele de ambos os lados.
— Não importa quem o senhor possa ser, não tem autorização para aqui estar — informou-o um dos médicos. Este falava inglês com um sotaque que não era italiano, parecendo-lhe tratar-se de francês.
— Levem-no daqui para fora — disse um outro. Para surpresa de Kurt, esse médico parecia-lhe oriundo do Texas ou do Iowa.
Apesar do aviso, Kurt deu um passo em frente dirigindo-se ao pessoal da NUMA em que eles pareciam estar a fazer experiências. Queria ver o que estariam eles a fazer aos seus companheiros e pôr um fim a tudo isso. Mas um polícia militar intercetou-o, de cassetete na mão e tasers à cintura.
— Levem-no lá para baixo — sugeriu outro médico mal-humorado. — E, pelo amor de Deus, apertem a segurança neste navio. Como diabo poderemos nós trabalhar com este tipo de interferências?
Antes que Kurt pudesse ser levado, ouviu-se uma voz de mulher: — Acham que é necessário pôr o nosso herói a ferros e enterrá-lo nas profundezas do porão?
Estas palavras eram ditas em inglês mas com um sotaque italiano e proferidas com a mistura exata de autoridade e sarcasmo, certificando-se assim de que lhe iriam obedecer. Vinham da Dr.ª Ambrosini, que estava agora num passadiço por cima deles.
Com a graça de uma bailarina, desceu por umas escadas de ferro e começou a andar para onde Kurt e os polícias se encontravam.
— Mas, Dr.ª Ambrosini… — protestou um dos médicos estrangeiros.
— Não há mas nem meio mas, Dr. Ravishaw. Ele salvou-me a vida e a de outras dezoito pessoas, e deu-nos a melhor pista para a origem deste problema desde o início das nossas investigações.
— Isto é altamente irregular — disse o Dr. Ravishaw.
— Pois é — respondeu ela. — De facto até é…
Kurt retirou algum prazer dessa troca de palavras e notou que, por irónico que pudesse parecer, a Dr.ª Ambrosini era a pessoa mais pequena na sala, mas, sem dúvida, a que comandava todas as operações. Ela parecia estar muito contente por ver Kurt, contudo alguns sorrisos e uma certa simpatia não eram suficientes para acalmar a zanga que este sentia. — Será que me poderá dizer o que é que se está aqui a passar?
— Podemos falar a sós?
— Gostaria imenso — respondeu ele. — Diga-me para onde podemos ir.
A Dr.ª Ambrosini dirigiu-se para um pequeno escritório perto do armazém de mercadorias. Kurt seguiu-a e fechou a porta depois de ter entrado. Segundo lhe pareceu, aquele escritório teria servido para um contramestre, mas fora agora entregue ao pessoal médico.
— Em primeiro lugar — começou ela —, queria agradecer-lhe por me ter salvado a vida.
— Creio que já me pagou esse favor — observou Kurt.
Ela riu-se, desviou uma madeixa de cabelo do rosto e tentou ajeitá-la por detrás da orelha. — Duvido muito que eu o tenha salvado do que quer que fosse — ripostou ela. — O mais provável é que tenha salvado esses pobres polícias militares de uma repreensão pouco agradável que, pelo menos, lhes teria afetado a autoestima.
— Penso que me esteja a sobrevalorizar — disse ele.
— Duvido — prosseguiu ela, cruzando os braços no peito e debruçando-se sobre a secretária.
Tratara-se de um belo elogio, talvez com um pouco de verdade, mas Kurt não estava ali para trocar cumprimentos. — Podemos saltar para a parte onde me conta por que motivo esses curandeiros estão ali a fazer experiências nos meus amigos?
— Esses curandeiros, como lhes chamou, são meus colegas — observou ela, de um modo defensivo.
— Pelo menos estão vivos.
Ela respirou fundo, como se a decidir quanto lhe deveria contar, e depois disse: — Sim… Bem… Percebo perfeitamente por que está incomodado. Os seus amigos, como toda a gente na ilha, sofreram bastante. Mas precisamos de descobrir…
— Que tipo de toxina os matou? — perguntou Kurt, interrompendo-a. — Creio que é uma boa ideia. A não ser que esteja errado, isso deverá ser feito através de análises ao sangue e a uma série de tecidos e, enquanto o estiver a fazer, talvez alguém devesse estar a testar o fumo que ainda está a sair do cargueiro. No entanto, a não ser que me possa dizer qualquer coisa que eu não saiba, não há necessidade nenhuma para o tratamento do tipo Dr. Frankenstein que eu acabei de ver.
— Tratamento do tipo Dr. Frankenstein… — repetiu ela. — Essa é uma descrição surpreendentemente exata do que estamos a tentar fazer.
Kurt sentiu-se confuso. — E porquê?
— Porque — continuou ela — estamos a tentar trazer de novo à vida os seus amigos e as restantes pessoas.