12

Por instantes, Kurt ficou sem saber como haveria de reagir. — Pode repetir o que me disse? — foi tudo o que ele conseguiu dizer.

— Não o critico pela sua surpresa — disse ela. — Tal como afirmou o Dr. Ravishaw, a situação é altamente irregular.

— Eu até diria louca — ripostou ele. — A senhora não poderá verdadeiramente acreditar que vai reanimar os mortos, como se fosse uma espécie de feiticeira, pois não?

— Nós não somos devoradores de cadáveres — observou ela. — É só que os homens e as mulheres que viu nesse local não estão mortos. Pelo menos ainda não. E nós estamos desesperadamente a tentar encontrar uma maneira qualquer de os despertar, antes que eles morram.

Kurt considerou o que ela estava a dizer-lhe. — Eu já observei alguns — continuou ele. — Não estavam a respirar. Nas minhas rusgas, quando estava à espera que os militares italianos chegassem, passei por quartos cheios de doentes ligados a máquinas de eletrocardiogramas e não se detetavam batimentos cardíacos.

— Sim, estou ao corrente disso — disse ela. — Mas o facto é que eles estão a respirar e os corações deles ainda funcionam. De facto, a sua respiração é bastante fraca e ocorre apenas com intervalos longos, em média, com menos de uma respiração a cada dois minutos. Os batimentos cardíacos são também extremamente lentos e as contrações dos ventrículos são tão fracas que um monitor comum não as consegue detetar.

— Mas como é que isso pode acontecer?

— Estão numa espécie de coma — continuou ela —, de um tipo que nunca antes vimos. Num coma normal, certas partes do cérebro são desligadas. Só as regiões mais profundas e mais primitivas continuam a funcionar. Assume-se que o corpo reage desse modo como um mecanismo de defesa que permite que o cérebro ou o corpo se possam regenerar. Mas estes doentes mostram uma atividade residual em todas as partes do cérebro, apesar de não reagirem a quaisquer fármacos ou estímulos que tivéssemos tentado até agora.

— Poderá explicar-me isso em linguagem corrente?

— Os cérebros deles não foram danificados — continuou Renata —, mas não conseguem acordar. Se os imaginasse como sendo computadores, é como se alguém os tivesse posto em standby, ou os tivesse adormecido, e que, por mais que os tentássemos ligar de novo, eles não voltassem a ficar ativos.

Kurt conhecia suficientemente a fisiologia humana para poder arranjar problemas, de modo que decidiu fazer perguntas em vez de saltar para certas conclusões. — Se os corações deles estão a funcionar tão devagar e tão infrequentemente, e a distribuir pequenas quantidades de sangue pelo corpo, e se as suas respirações são tão restritas, será que não se arriscam a um débito de oxigénio, capaz de causar danos cerebrais?

— É difícil dizê-lo — respondeu ela. — Pensamos que continuam a existir num estado de animação suspensa. Temperaturas corporais baixas e baixos níveis de atividade celular significam que os seus órgãos estão a usar muito pouco oxigénio. Isso poderá provocar o tipo de respiração de que lhe falei, e a fraca atividade cardiovascular é suficiente para os manter saudáveis e para manter os seus cérebros intactos. Já alguma vez viu alguém que tivesse sido retirado de águas muito geladas após quase se ter afogado?

Kurt assentiu com a cabeça. — Há muitos anos salvei um rapazinho e o seu cão de um lago gelado. O cão tinha ido atrás de um esquilo e ficou preso quando as suas patas traseiras furaram o gelo. O rapaz tentou libertá-lo, mas o gelo começou a partir-se e ambos mergulharam na água. Quando os conseguimos retirar, a pobre criança estava azul, tinha estado debaixo de água durante sete minutos ou mais. Deveria estar morta. O cão também deveria ter morrido, mas os paramédicos conseguiram reanimar ambos. O rapaz acabou por ficar bem, sem quaisquer danos cerebrais. Estamos a falar de qualquer coisa semelhante?

— Oxalá estejamos — respondeu Renata —, embora não seja bem a mesma coisa. No caso do rapaz, a água gelada causou uma reação espontânea no corpo que pôde ser revertida logo que ele atingiu uma temperatura normal. Estas pessoas não foram confrontadas com uma mudança instantânea de temperatura, mas antes afetadas por um tipo de toxina. Ora, pelo menos até agora, nem o aquecimento, o arrefecimento, os choques elétricos, as injeções de adrenalina, nem mesmo os nossos truques do tipo Frankenstein os conseguiram retirar desse estranho estado.

— Então, com que tipo de toxina estaremos nós a lidar? — perguntou Kurt.

— Não fazemos a mínima ideia.

— Terá que ser o fumo do cargueiro.

— Foi nisso que pensámos, mas analisámos uma amostra do fumo. Este revela apenas gases de gasolina queimada com uma pequena mistura de chumbo e amianto, a mesma coisa que encontraríamos num qualquer incêndio de navio.

— Então, será que o incêndio e a nuvem que cobriram a ilha não passam de uma coincidência? Não sei porquê, mas não acredito nisso…

— Nem eu — continuou ela. — Mas não existe nada nessa nuvem capaz de causar o que acabámos por ver. Quando muito, poderia ter provocado irritações oculares, dificuldades em respirar e ataques de asma.

— Nesse caso, se não é o fumo do navio, de que se trata afinal?

Ela fez uma pausa, estudando-o durante alguns segundos, antes de continuar. Kurt teve a impressão de que ela decidira falar mais livremente. — Acreditamos que se tratou de uma substância neurotóxica, despoletada pela explosão, deliberada ou acidentalmente. Há muitos agentes neurotóxicos que duram pouco tempo. O facto de não encontrarmos qualquer rasto do mesmo no solo, no ar ou nas amostras do sangue e dos tecidos das vítimas diz-nos que, fosse qual fosse esse agente biológico ou químico, não teria durado mais do que umas horas.

Kurt viu a lógica do raciocínio, mas havia ainda muitos aspetos que não faziam sentido. — Mas por que motivo alguém iria querer usar uma coisa dessas contra Lampedusa?

— Não fazemos ideia — respondeu ela. — De modo que nos estamos a inclinar para que se tivesse tratado de um acidente.

Enquanto considerava tudo isso, Kurt deu uma vista de olhos ao escritório. Havia termos médicos escritos em dois quadros brancos por detrás da secretária. Uma lista de várias substâncias que eles tinham tentado identificar. Também se deu conta de um mapa do Mediterrâneo com vários alfinetes espetados. Um marcava um local na Líbia, outro assinalava uma parte do Sudão do Norte; outros ainda indicavam lugares no Médio Oriente e na Europa de Leste.

— A senhora referiu-se a um ataque na mensagem que nos enviou — observou ele, assentindo com a cabeça em direção ao quadro. — Creio que deveria ter suspeitado tratar-se de um ataque por não se tratar do primeiro incidente deste tipo…

Ela franziu os lábios. — O Kurt é demasiado observador. A resposta é sim. Há seis meses, um grupo de radicais líbios foi encontrado neste mesmo estado. Ninguém sabia o que lhes tinha acontecido. Acabaram por morrer oito dias mais tarde. Devido às ligações históricas entre a Itália e a Líbia, o meu governo decidiu investigar. Em breve descobrimos incidentes similares em vários hospitais da Líbia e, mais tarde, em todos os locais que vê marcados no mapa. Em cada um desses casos, grupos radicais ou gente poderosa mergulhavam em comas inexplicáveis e morriam. Arranjámos uma operação especial, tomámos este navio como o nosso laboratório flutuante e começámos à procura de respostas.

Kurt entendia perfeitamente a resposta. — E qual é a sua parte em tudo isto?

— Sou médica — respondeu ela, indignada. — Sou especializada em neurobiologia. Trabalho para o governo italiano.

— E aconteceu estar em Lampedusa quando se deu o ataque…?

Ela suspirou. — Estava em Lampedusa a observar as manobras do único suspeito que tínhamos conseguido ligar aos incidentes. Um médico que trabalhava no hospital.

— Já não me admira que soubesse como se proteger a si e aos outros — observou Kurt.

Renata acenou afirmativamente com a cabeça. — Quando se faz um trabalho parecido com o meu, quando se viu o que eu vi, na Síria, no Iraque e noutros lugares, temos pesadelos de pessoas a caírem mortas à nossa frente, de gás invisível a envenenar-nos o corpo e a destruir-nos as células. Tornamo-nos muito atentos ao que nos rodeia. Defensivos. Quase paranoicos. E não há dúvida de que, ao ver a nuvem e as pessoas a caírem logo que a mesma as atingiu, fiquei logo a saber, nesse preciso momento, o que se estava a passar.

Kurt respeitava a sua história e as suas reflexões. — Então o homem morto — sugeriu ele —, o que nos atacou, era o seu suspeito?

— Não — afirmou ela. — Não sabemos quem ele era. Obviamente, não transporta documentos de identificação com ele. Não possui marcas distintivas e as suas características digitais foram queimadas, creio que deliberadamente, nada mais ficando no seu lugar senão tecido cicatricial. Não temos registo de alguém que se parecesse com ele e tivesse chegado à ilha. Normalmente, isso não nos iria dizer muito, no entanto, com toda a imigração e com todas as pessoas em busca de asilo que vêm até Lampedusa, todos acabam por ser muito bem documentados. Não importa se vêm através do aeroporto, do porto, ou se simplesmente desembarcam na costa, numa jangada a cair aos bocados.

— Nesse caso, se o homem com a pistola não é o seu suspeito, quem é afinal?

— Um médico chamado Hagen, que trabalhou no hospital a tempo parcial. Hagen tem um passado obscuro. Sabíamos que estava à espera de receber uma encomenda que deveria chegar nesse dia. Só não sabíamos de onde vinha, quem a vinha trazer e do que se trataria realmente. Mas conseguimos confirmar a sua presença em três dos locais durante e antes da altura dos outros ataques. De modo que acreditámos que ele estava implicado.

Kurt começou a juntar as peças soltas. — Então o morto com a pistola era apenas o carteiro — continuou ele —, que vinha trazer o agente neurotóxico ou a toxina ao tal Dr. Hagen, quando tudo acabou por lhe explodir na cara.

— Essa é a nossa teoria — respondeu ela.

— E o Hagen?

Ela revelou-lhe um olhar severo. — Dos mais ou menos cinco mil habitantes de Lampedusa, Hagen é o único que parece ter desaparecido. Tínhamo-lo sob vigilância constante, mas, infelizmente, a equipa, tal como as restantes pessoas, ficou afetada pela toxina.

Kurt recostou-se melhor na cadeira e pôs-se a olhar para o teto onde dois tons diferentes de tinta se sobrepunham, formando uma risca mais escura. — Então, uma nuvem mortífera cobre a ilha, e as únicas duas pessoas aparentemente imunes ao seu efeito são o seu médico suspeito e o homem que nos tentou assassinar.

Ela assentiu com a cabeça. — É isso mesmo. Será que isso lhe diz qualquer coisa?

Era claro que sim. — Devem estar na posse de um tipo de antídoto — opinou ele. — De uma substância capaz de bloquear os efeitos paralisantes da toxina misteriosa que causou estes comas.

— Foi isso mesmo que pensámos — disse ela. — Infelizmente, não encontrámos nada no escritório do Hagen, na sua casa ou no seu carro, que nos pudesse ajudar. Nem sequer descobrimos algo de especial, no sangue do homem morto, que nos permitisse apurar de que antídoto se tratava.

— E será que isso a surpreende? — perguntou-lhe Kurt.

— Nem por isso — respondeu ela. — Dado que os efeitos do agente neurotóxico não duraram muito tempo, é de crer que qualquer antídoto também fosse de curta duração.

Kurt podia agora aperceber-se da progressão de tudo isso. — Então o antídoto já não faz efeito. Mas, com certeza, poderiam ter encontrado o médico desaparecido; talvez o pudessem persuadir a revelar-vos onde poderão encontrar mais.

Ela sorriu abertamente. — Não lhe escapa nada, Sr. Austin.

— Não me trate por senhor — disse ele. — Faz-me sentir mais velho.

— Então, chamar-lhe-ei Kurt — ripostou ela. — Chame-me Renata.

Ele ficou muito agradado com essa prova de confiança. — E têm alguma ideia acerca do local onde o vosso suspeito possa estar escondido?

Ela olhou-o de viés. — Porque é que me pergunta isso?

— Não sei.

— Não está a planear ir à procura dele, pois não?

— Claro que não — assegurou Kurt. — Soa-me a algo perigoso. Que é que a poderia levar a pensar numa coisa dessas?

— Bem, sei lá… — disse ela, com um falso ar tímido. — Apenas o que pude apurar acerca de si até agora, corroborado por uma conversa que tive com o subdiretor da Agência Nacional Marinha e Submarina, momentos antes de ter invadido a minha ala médica temporária…

Kurt olhou para ela de um modo divertido — Esteve a falar com o meu patrão?

— Sim, com o Rudi Gunn — admitiu ela. — Trata-se de um homem encantador. Disse-me que, com certeza, o Kurt iria oferecer-se para ajudar e que, se eu rejeitasse a sua oferta, se iria envolver de qualquer modo e talvez acabasse por criar uma grande confusão…

Renata estava agora sempre a sorrir, tão agradada com o rumo da conversa que Kurt poderia facilmente adivinhar o que teria sido dito. — E por quanto me vendeu ele?

— Receio que o tivesse feito por uma tuta-e-meia.

O sole mio?

— Não bem solo — disse ela. — Também incluiu o Sr. Zavala como bónus. — Kurt fingiu ficar indignado ao ser vendido aos italianos como um futebolista da segunda divisão, mas estava muito feliz com o negócio. — Nesse caso irão pagar-me em euros ou…

— Em satisfação — sugeriu ela. — Vamos encontrar as pessoas que fizeram isto e vamos parar com o que quer que seja que eles andem a tramar. Se tivermos sorte, o antídoto que evitou que o Hagen e o assaltante sucumbissem à toxina poderá ser usado para tirar as vítimas do coma em que se encontram.

— Não poderia esperar uma melhor compensação — respondeu Kurt. — Por onde poderemos começar?

— Por Malta — respondeu ela. — Hagen fez três viagens até lá no último mês.

Ela abriu uma gaveta, retirou um dossiê e extraiu do mesmo uma série de imagens de vigilância que passou a Kurt. — Ele encontrou-se várias vezes com este homem. Chegou mesmo a ter uma discussão acalorada com ele na semana passada.

Kurt estudou a fotografia. Esta mostrava um homem, com um ar académico e um casaco de tweed com cotoveleiras, sentado na esplanada de um café a falar com três indivíduos. Até parecia que estes o estavam a cercar.

— O que está no meio é o Hagen — esclareceu ela. — Quanto aos outros dois, não temos a certeza. Supomos tratar-se da sua comitiva.

— Quem é o homem com um ar professoral?

— O curador do Museu Oceânico de Malta.

— Não estou a perceber — observou Kurt. — Os curadores de museu não costumam conviver com terroristas nem com os que traficam gás neurotóxico ou armas biológicas. Tem a certeza de que existe uma ligação?

— Não temos certezas de nada — admitiu ela. — Exceto de que o Hagen se tem encontrado regularmente com este homem, com a intenção de comprar alguns artefactos que o museu planeia levar a leilão, após uma cerimónia de gala daqui a dois dias.

Kurt não gostou do que ouviu. — Todos têm os seus hobbies — disse ele —, até mesmo os terroristas.

Ela sentou-se. — Mas colecionar artefactos antigos não é um hobby do Hagen. Ele nunca mostrou interesse por esse tipo de coisas, pelo menos até agora.

— Muito bem — continuou Kurt. — Mas não me parece que fosse estúpido suficiente para lá voltar.

— Foi isso mesmo que pensei — continuou ela. — Contudo, alguém depositou duzentos mil euros na conta que o Hagen tem em Malta. Uma conta que ele abriu no dia seguinte ao encontro com o curador do museu. A Interpol confirmou a transação. Esta foi iniciada algumas horas depois do incidente em Lampedusa.

Kurt seguiu logo essa lógica. Não havia como negá-la. O Dr. Hagen estava vivo, tinha fugido de Lampedusa e movimentado dinheiro dessa conta após o ocorrido. Fosse qual fosse a razão, parecia que o médico fugitivo estava a regressar para outra reunião com o curador-chefe do Museu Oceânico de Malta.

— De modo que a questão é — disse ela, fechando o dossiê e cruzando as pernas —, será que está interessado em ir até lá dar uma vista de olhos?

— Hei de fazer bem mais do que isso — prometeu-lhe Kurt.

Recebeu logo uma expressão de agrado. — Encontrar-me-ei lá consigo, assim que me assegure de que todos os doentes se encontram devidamente hospitalizados e a receberem cuidados. Tenho de lhe pedir para não agir antes de eu chegar.

Kurt levantou-se, com um grande sorriso. — Observar e ir informando — disse ele. — Posso muito bem dar conta do recado.

Ambos sabiam que ele estaria a mentir. Se ele visse Hagen, não perderia tempo a agarrá-lo, mesmo que tivesse de o deitar abaixo no meio da rua.