Shakir começou a andar em direção ao flamejante oleoduto e à longa estrutura, construída com blocos de cimento, que albergava uma das suas muitas estações de bombeamento. Dois dos seus homens estavam aí de guarda. Estes abriram e mantiveram as portas bem abertas, olhando sempre em frente. Sabiam que não seria uma boa ideia olhar Shakir nos olhos.
Uma vez lá dentro, Shakir foi até à parte de trás do edifício. Uma porta gradeada separava-o de um elevador de minas. Abriu-a e entrou. Tratava-se de uma cabina, concebida para poder transportar grandes grupos de homens e equipamento pesado; Shakir pressionou o botão para descer.
Dois minutos e cento e vinte metros mais abaixo, as portas abriram-se e Shakir entrou num complexo subterrâneo e cavernoso, iluminado por luzes escondidas no chão e nas paredes. Parte dessa caverna era natural e o resto fora escavado pela equipa mineira e pelos engenheiros de Shakir. Continuava por mais duzentos metros. Parte do espaço estava cheio de bombas monstruosas, do tamanho de pequenas casas, e de dezenas de enormes condutas que se torciam e serpenteavam pela gigantesca caverna, antes de se encontrarem num ponto central, mergulharem no solo e desaparecerem.
Shakir tirou os óculos, impressionado, como sempre, pelo trabalho. Passou pelo enorme conjunto de maquinaria e dirigiu-se a um centro de controlo, onde grandes ecrãs mostravam os contornos do Egito e de grande parte do Norte de África. Uma série de linhas atravessava o mapa, ignorando todas as fronteiras. Números ao lado de cada uma delas indicavam pressões, quantidades de fluxos e volumes. Ver as pequeninas bandeiras onde piscavam luzes verdes agradou-lhe bastante.
Finalmente, chegou à luxuosa sala de conferências. Para além da vista (não existia nenhuma), a sala era igual à de qualquer espaço para reuniões corporativas num arranha-céus de escritórios. A mesa de mogno no centro estava rodeada de cadeiras confortáveis onde se sentavam homens corpulentos. Os ecrãs na parede mostravam o emblema da Osiris.
Shakir sentou-se à cabeceira e pôs-se a observar o grupo que estivera ali sentado à sua espera. Cinco egípcios, três líbios, dois argelinos e dois representantes, respetivamente, do Sudão e da Tunísia. Shakir construíra a Osiris do nada e, num espaço de poucos anos, transformara-a numa das mais importantes corporações internacionais. A fórmula para o sucesso requeria quatro ingredientes principais: trabalho árduo, uma astúcia sem escrúpulos, contactos e, como não poderia deixar de ser, dinheiro. Dinheiro, é bom de ver, de outras pessoas.
Shakir e os seus amigos íntimos dos Serviços Secretos tinham arranjado os primeiros três elementos, os homens que estavam sentados à mesa tinham fornecido o último. Todos eles eram ricos, e muitos tinham em tempos sido poderosos. Tinham sido, pois a Primavera Árabe, que atirara Shakir para o desemprego, afetara-os ainda mais intensamente.
Tudo começara na Tunísia onde um pobre vendedor ambulante, que fora abusado pela polícia durante anos, se imolara em protesto.
Parecia de tal modo impossível na altura que esse ato pudesse vir a ter qualquer consequência, que apenas pensaram que se trataria de mais uma vida destruída pelo fogo e simplesmente perdida. Mas, segundo o que veio a acontecer, o homem não só se incendiou a si mesmo como se tornou o fósforo que acabou por incendiar o mundo árabe e por queimar metade do mesmo.
A Tunísia fora a primeira a cair e os que tinham governado esse país, durante décadas, fugiram para a Arábia Saudita. A Argélia fora a seguinte, antes que o fogo se espalhasse e engolisse a Líbia, onde Muammar Gaddafi reinara por mais tempo e com mais força do que qualquer um: quarenta e dois anos com um pulso de ferro. Os que o rodeavam tinham ficado ricos e poderosos com os lucros do petróleo. Quando a guerra civil começou, muitos não conseguiram sequer salvar as suas vidas, mas os que tinham sido suficientemente espertos para depositarem o dinheiro e enviarem as famílias para o estrangeiro tiveram mais sorte, ainda que, tal como os seus compatriotas da Tunísia, em breve se tivessem tornado refugiados, homens sem uma pátria ou sem um objetivo.
O Egito desmoronara-se depois disso e as reverberações provocadas acabaram por arrastar o Iémen, a Síria e o Barém, em diferentes dimensões. Tudo despoletado por uma pequena faísca.
Agora, que as chamas já se tinham extinguido, os homens que tinham conseguido sobreviver ao incêndio queriam reafirmar o seu controlo.
— Creio que todos vocês tiveram uma ótima estadia — disse Shakir.
— Não queremos conversa de chacha — retorquiu um dos egípcios, um homem de cabelo branco, com um belo fato ocidental e um enorme relógio Breitling no pulso. Ele enriquecera ao receber vastas quantias em dinheiro da Força Aérea Egípcia para usar aviões que lhe tinham sido vendidos por uma tuta-e-meia. — Quando irá começar a operação? Estamos todos ansiosos.
Shakir voltou-se para outro subordinado. — As estações de bombeamento estão prontas?
O homem acenou afirmativamente com a cabeça, carregou no teclado em frente dele e projetou o mesmo esquema de África que fora mostrado na sala de controlo.
— Como estão a ver — confirmou Shakir —, a rede está completa.
— Haverá qualquer indicação de que a nossa perfuração teria sido notada? — perguntou um dos antigos generais da Líbia.
— Não — afirmou Shakir, categoricamente. — Ao usarmos a construção do oleoduto para ocultarmos o nosso trabalho subterrâneo, conseguimos evitar que alguém pudesse suspeitar enquanto perfurávamos qualquer secção relevante do aquífero subsaariano. Este, tal como todos vocês sabem, alimenta cada nascente e oásis do deserto, daqui até à parte ocidental da Argélia.
— E os aquíferos mais à superfície? — perguntou um dos outros líbios. — O nosso povo tem vindo a utilizá-los há anos.
— Os nossos estudos mostram que todas as nascentes de água potável dependem desse profundo lençol freático — observou Shakir. — Logo que comecemos a retirar dele grandes quantidades de água, o fornecimento tornar-se-á incerto.
— Quero que esse mesmo fornecimento seja cortado por completo — insistiu o tunisino.
— Será impossível fazer isso — ripostou Shakir. — Mas isto é um deserto… Quando a Tunísia, a Argélia e a Líbia se derem conta de uma súbita redução no fornecimento, ou talvez de um decréscimo de oitenta a noventa por centro, estarão à nossa mercê. Até os rebeldes precisam de beber água… Ora, o abastecimento será retomado logo que vocês reconquistarem o poder. Se nós trabalharmos juntos, a Osiris poderá então controlar todo o Norte de África.
— E o que é que acontece à água? — perguntou o argelino. — Não poderemos bombear do deserto milhares de milhões de litros de água sem que ninguém se dê conta.
— Esta corre pelos oleodutos — explicou Shakir, apontando para a rede que se entrecruzava no mapa —, e depois para condutas subterrâneas… aqui, aqui e aqui. Deste sítio, corre para o Nilo e depois, anonimamente, para o mar.
Os homens poderosos olharam uns para os outros com uma expressão aprovadora. — Está muito bem pensado — disse um deles.
— E os europeus e os americanos que poderão não gostar do nosso súbito regresso? — perguntou o líbio.
Shakir sorriu. — O nosso homem em Itália já estará a tomar conta disso — explicou ele. — Tenho um estranho pressentimento de que não será um problema.
— Muito bem — disse o líbio. — E quando irá começar? Haverá mais qualquer coisa de que precise?
Shakir apreciava bastante o entusiasmo deles. Depostos dos seus assentos no poder, aqueles homens estavam tão ansiosos por voltar que fariam qualquer coisa para que tal pudesse acontecer. Mas ele já extraíra deles o suficiente, em termos de dinheiro e de concessões. Agora era tempo de agir.
— Muitas das bombas estão a funcionar há meses — disse-lhe ele. — O efeito de sifão já começou a ter lugar. O resto poderá ser iniciado imediatamente. — Fez então um gesto para um dos técnicos. — Assinala as outras estações: põe todas as bombas em andamento.
Quando o técnico executou a ordem de Shakir, um som de turbinas gigantescas e de bombas começou a ouvir-se através da parede. Dentro de momentos tornar-se-ia demasiado elevado para que pudessem continuar a conversar. Shakir decidiu que iria ter a última palavra.
— No deserto, chamamos sirocco ao vento quente. Hoje somos nós quem o enviamos. Este varrerá a África, pondo um fim a esta Primavera Árabe e substituindo-a com o mais seco e abrasante dos verões.