Porto de La Valletta, Malta
Entrar no Porto de La Valletta era como embarcar numa viagem ao passado, a uma época em que pequenos entrepostos como Malta, governados por grupos de homens poderosos, eram vitais para o comércio internacional e para o controlo do Mediterrâneo.
Depois de o Sea Dragon ter passado pelo quebra-mar, a vista era em tudo igual ao que tinha sido nos dias gloriosos daquela ilha, e Kurt não teve problemas em imaginar-se a viver ali nos séculos XIX, XVIII, ou até mesmo XVII.
Mesmo em frente, iluminada pelo sol, via-se a cúpula da Igreja Carmelita que dominava o horizonte. Em torno desta, havia edifícios antigos e outras igrejas. O próprio porto era guardado por não menos de quatro guarnições de muralhas, com quatro praças de artilharia e cidadelas que ainda vigiavam o canal estreito.
O Forte Manoel surgia da ilha sobre o istmo de uma ilhota recortada, enquanto o Forte de Sant’Elmo se encontrava instalado na ponta da península. As suas muralhas de pedra descolorida pareciam impositivas e inexpugnáveis após quase quinhentos anos. Mesmo em frente, guardando a parte direita do porto, o Forte Ricasoli tinha um desenho diferente e parecia baixo e espalhado, dado que as suas muralhas se estendiam até se ligarem ao quebra-mar onde havia um pequeno farol. E, finalmente, dentro do porto, via-se o Forte St. Angelo, erguendo-se à beira-mar numa estreita língua de terra.
E se todos os fortes não fossem suficientes para sugerir que Malta era uma fortaleza, os paredões, edifícios e falésias naturais eram todos feitos da mesma pedra de cor creme.
Era quase como se toda a ilha tivesse sido esculpida e desbastada a partir de um único bloco de calcário, em vez de construída a partir do solo ao longo de anos.
— Dá que pensar como é que alguém vindo do exterior conseguiu alguma vez conquistar esta ilha — disse Joe, admirado perante todas aquelas fortificações.
— Do mesmo modo que a força bruta poderá ser sempre contrabalançada — respondeu Kurt. — Por truques e distrações. Napoleão aportou aqui a caminho do Egito e começou por comprar fornecimentos para os seus navios. Os comerciantes locais, ansiosos por fazer dinheiro, deixaram-no entrar. Assim que a sua frota já estava fora do alcance dos fortes, ele desembarcou as tropas e apontou as espingardas para as suas casas.
— Uma espécie de cavalo de Troia sem ter de se construir um cavalo — resumiu Joe.
Nesse momento, o Sea Dragon entrava no interior do porto e dirigia-se a uma secção aberta das docas. Aí, a paisagem era mais moderna, havia petroleiros a descarregarem combustível e óleo de aquecimento, ao lado de navios de cruzeiro e de grandes cargueiros. O Sea Dragon aportou perto deles.
Sem mesmo esperar que amarrassem o navio, Kurt e Joe saltaram para o cais e começaram a caminhar rapidamente para uma rua.
— Mantém sempre dois homens alerta — gritou Kurt. — Suspeito que haja por aqui sujeitos perigosos.
— Como vocês os dois? — respondeu-lhe Reynolds com um grito.
Kurt riu-se.
— Tentem não causar muitos problemas — acrescentou Reynolds. — Já não temos dinheiro para pagar a vossa fiança.
Kurt limitou-se a fazer um gesto com a mão. Ele e Joe estavam atrasados para uma reunião com o curador do Museu Oceânico de Malta.
— Achas que o curador ainda estará à nossa espera? — perguntou Joe, enquanto tentavam chamar um táxi.
Kurt olhou para o céu. Estava quase a anoitecer. — Creio que as nossas hipóteses rondam os cinquenta por cento.
Um táxi parou no cimo da rua e eles entraram
— Queremos ir para o Museu Oceânico — disse Kurt.
O taxista não perdeu tempo, abrindo caminho pelas vielas cheias de curvas, ultrapassando algumas luzes amarelas e deixando-os em frente do museu, onde eles começaram a subir a escadaria de uma fachada relativamente impressionante.
A parte da frente do Museu Oceânico de Malta lembrava a Kurt a Biblioteca Pública de Nova Iorque, onde não faltavam sequer leões de pedra de ambos os lados. Quando chegaram à porta de entrada, Kurt falou com o guarda de segurança e ele e Joe esperaram um pouco, enquanto esse mesmo guarda tentava contactar alguém a pedido deles.
Não demorou muito até que um homem esguio, de casaco de tweed com cotoveleiras, viesse à porta.
Kurt estendeu-lhe a mão. — Presumo que seja o Dr. Kensington, não é verdade?
— Chame-me William — disse o homem, apertando-lhe a mão. Tratava-se de um expatriado inglês. Um dos muitos nessa ilha que tinham feito parte do Império Britânico por mais de um século.
— Desculpe termos vindo tão tarde — disse Kurt. — Os ventos não eram favoráveis.
Kensington sorriu. — Algo que se passa muito frequentemente, por isso é que inventaram o barco a motor.
Uma pequena onda de riso circulou entre eles, enquanto Kensington os convidava a entrar no edifício antes de fechar a porta. Um aceno para o guarda de segurança pareceu ser uma coisa costumeira, no entanto, antes que ele os conduzisse pelo corredor, Kurt deu-se conta de que o curador olhara através dos vidros da janela, elevando uma das ripas dos estores venezianos para ver melhor.
Kensington desviou-se desse lugar e conduziu-os por uma sala de estar, passando pelo luxuoso vestíbulo principal, onde se adivinhavam já as preparações para a cerimónia festiva e para o leilão que iria ocorrer dentro de dias. Foram até ao escritório do curador, uma pequena divisão retangular num canto remoto do segundo andar. Estava cheio de tabuleiros com pequenos artefactos, pilhas de revistas e de ensaios académicos. A janela parecia deslocada, dado que era um painel estreito com um vitral.
— Isto ainda nos ficou do tempo em que este edifício era uma abadia, no século XVIII — explicou Kensington.
Enquanto os três homens se sentavam, a luz de holofotes chegou-lhes do exterior, acompanhada pelo som de obras: martelos pneumáticos, gruas e homens aos berros.
— É um bocado tarde para estarem a deitar tudo abaixo — referiu Kurt.
— Estão a fazer obras na praça. Fazem-nas à noite para não perturbarem os turistas.
— Oxalá fizessem o mesmo nas estradas em torno de D.C. — observou Joe. — Iria em muito diminuir o meu tempo de viagem para o trabalho todos os dias.
Kurt estendeu um cartão de visita a Kensington.
— NUMA… — disse o curador, observando o retângulo de papel. — Já trabalhei antes com o vosso pessoal. É sempre um prazer. Em que vos posso ajudar?
— Nós estamos aqui para lhe fazer algumas perguntas sobre a receção que irá ocorrer antes do leilão.
Kensington guardou o cartão. — Sim, vai ser muito emocionante — disse ele. — A gala irá ter lugar daqui a duas noites. Vai ser tudo a rigor e não irá faltar nenhum detalhe. Convidar-vos-ia, mas receio tratar-se de um grupo restrito.
— E que irá acontecer nessa receção?
— Permitir-se-á aos convidados verem os lotes de uma forma virtual — explicou Kensington — e avaliarem-se uns aos outros, de modo a que saibam contra quem estão a apostar. — Sorriu. — Nada faz subir os preços como uns quantos despiques entre egos.
— Estou a ver… — disse Kurt.
— Permitam-me que vos diga — acrescentou o curador — que as pessoas pagarão uma boa soma pelo direito de verem uma coisa que mais ninguém viu em centenas ou mesmo em milhares de anos.
— E ainda mais para levarem essa mesma coisa para casa e ficarem com ela.
— Pois — confirmou Kensington. — Mas nada há de ilegal no que a isso diz respeito e será tudo em benefício do museu. Somos uma organização privada, temos de financiar as nossas restaurações através de outras coisas para além da venda de bilhetes.
— E tem uma lista dos artigos a serem vendidos?
— É claro que tenho — admitiu Kensington —, mas receio não a poder partilhar convosco. Há regras e processos que têm de ser seguidos.
— Regras? — perguntou Kurt.
— E processos — repetiu o curador.
— Não sei se estou a perceber bem… — continuou Kurt.
Uma gota de suor surgiu na testa de Kensington. — Os senhores sabem como é, sendo exploradores no mar. Assim que alguma coisa é recuperada e revelada ao mundo, começam logo todos a lutar acerca de quem possa ser o dono. Quando há ouro recuperado de um galeão espanhol, a quem é que pertence? A equipa que o descobriu diz que lhe pertence. Os espanhóis insistem que o navio era deles. Os descendentes dos incas dizem que, em primeiro lugar, o ouro lhes pertencia, pois que o tinham retirado do solo. E isto poderá passar-se com ouro. Com artefactos, é bem pior. Sabem por acaso que os egípcios estão a processar os ingleses para obterem a Pedra de Roseta? E o Obelisco de Latrão em Roma? Originalmente, estava no exterior do Templo de Ámon em Carnaque, até que Constâncio II o tivesse retirado. Ele queria levá-lo para Constantinopla mas só o conseguiram trazer até Roma.
— De modo que nos está a dizer…
Kensington foi muito claro: — Que estamos à espera que nos processem logo que os artigos sejam revelados, no entanto, gostaríamos de ter pelo menos uma noite para os apreciarmos, sem termos de lutar contra os advogados deste mundo…
Era uma boa história, talvez mesmo uma meia-verdade, pensou Kurt, mas o curador estava a tentar esconder qualquer coisa. — Sr. Kensington — começou ele.
— William.
— Eu não queria ter de fazer isto — continuou Kurt — mas o senhor não me deixa outra alternativa.
Retirou então as fotografias que Ambrosini lhe tinha dado e estendeu-lhas.
— E que deverei eu estar aqui à procura?
— Trata-se do senhor — explicou Kurt. — Concordo que não será a sua melhor fotografia, mas é sem dúvida o William. Até está a usar esse mesmo casaco de tweed.
— Pois estou. E daí?
— Os homens nessa mesma fotografia — começou Kurt —, digamos que não são o tipo de indivíduos com quem o senhor gostaria de ser fotografado. E também creio que não serão o tipo de pessoas que venham aqui ao seu evento.
Kensington olhou fixamente para a fotografia.
— Reconhece alguns deles? — perguntou Joe.
— Este — disse Kensington, apontando para o Dr. Hagen. — Trata-se de um caçador de tesouros, de um pequeno colecionador. Um médico, se a memória me não falha. Os outros dois eram colegas dele. Mas não estou a ver o que isto possa ter a ver…
— É médico, sim — interrompeu-o Kurt. — Até aí acertou. Suspeita-se também que ele seja um terrorista, procurado devido ao incidente que ocorreu ontem em Lampedusa. Os outros também deverão fazer parte do mesmo.
O rosto de Kensington ficou branco como a cal. Os canais televisivos tinham estado a passar, ininterruptamente, detalhes dessa história, chamando-lhe o pior desastre industrial desde Bhopal. — Nunca ouvi falar de terrorismo — disse ele. — Pensei tratar-se de um acidente químico provocado pelo cargueiro que aí encalhou.
— É isso que tem sido comunicado pelo mundo fora — esclareceu Kurt. — Mas não é esse o caso.
Kensington engoliu em seco e pigarreou. Tamborilou com os dedos e depois pôs-se a mexer nervosamente na caneta que tinha em cima da secretária, enquanto se começava a ouvir o ruído do motor de uma das gruas lá fora.
— Não… não faço ideia do que querem que vos diga — gaguejou ele. — Eu nem sequer me lembro do nome do homem.
— Hagen — referiu Kurt, como se numa tentativa de o ajudar.
— Sim… pois é, é Hagen.
— O senhor deve ser uma pessoa muito esquecida — ripostou Kurt. — De acordo com aqueles que tiraram a fotografia, o senhor encontrou-se com eles três vezes. Gostaríamos que pelo menos se lembrasse do que ele queria.
Kensington suspirou e olhou em volta, como se estivesse à procura de ajuda. — Queria um convite para o evento que estamos a organizar — admitiu ele, finalmente. — Disse-lhe que não lho poderia arranjar.
— E porquê?
— Tal como lhe expliquei, trata-se de uma receção muito privada. Reservada apenas a uma escassa dezena de benfeitores e amigos muito ricos do museu. O Dr. Hagen não poderia pagar por um assento à mesa.
Kurt recostou-se melhor na cadeira. — Nem mesmo com duzentos mil euros?
Isso atraiu a atenção de Kensington, mas o curador não se desmanchou. — Nem mesmo com um milhão.
Kurt sempre assumira que o dinheiro se destinava à compra dos artefactos, mas talvez acabasse por ter outra finalidade. — Caso ele lhe tenha oferecido dinheiro como um suborno, deverá compreender que esta gente não é do tipo de pessoas que pagam. Preferem não deixar rasto. Podem mostrar-lhe o dinheiro. Poderão dar-lhe algum dinheiro de entrada ou deixá-lo ficar com ele durante algum tempo. No entanto, assim que lhes der o que eles querem, certificam-se de que o senhor nunca irá viver para o gastar.
Kensington não ficou indignado, permanecendo sentado em silêncio enquanto refletia nas palavras de Kurt.
— Mas o William já estará farto de saber isso — acrescentou Kurt. — Caso contrário, não teria olhado pela janela como se a própria morte andasse atrás de si.
— Eu…
— Está à espera que eles voltem — disse Kurt. — Está com medo deles. E acredite que tem todas as razões para isso.
— Não lhes dei nada — disse Kensington para se defender. — Disse-lhes para se irem embora. Mas, não está a perceber, eles…
Kensington permaneceu calado e começou a mexer em qualquer coisa que tinha em cima da secretária antes de se baixar e abrir uma gaveta.
— Tenha calma — disse Kurt.
— Não estou à procura de uma pistola — esclareceu ele, retirando um frasco de remédio para a azia que estava quase vazio.
— Nós podemos protegê-lo — disse-lhe Kurt. — Podemos conduzi-lo às autoridades que poderão evitar que algo lhe aconteça, mas, primeiro, tem de nos ajudar.
Kensington pôs na boca alguns comprimidos para a azia. Era como se o ajudassem a encontrar um equilíbrio.
— Não têm de me proteger do que quer que seja — ripostou ele, mastigando o remédio. — Quero dizer, isto é ridículo. Dois colecionadores importunaram-me acerca de uns artefactos e, de súbito, isso transforma-me num criminoso? Num assassino em série?
— Ninguém o acusou de uma coisa dessas — explicou Kurt. — Mas estes homens estiveram envolvidos e o senhor está envolvido com eles, à força ou por vontade própria. De qualquer modo, corre perigo.
Kensington massajou as fontes, à medida que gritos do exterior ecoavam pelo edifício e que se começara a ouvir um martelo pneumático.
Kurt reconheceu a expressão de um homem que se debatia interiormente. Parecia querer apagar a dor, o ruído, o stresse.
— Asseguro-vos — disse ele. — Nada sei sobre esses homens. Tal como os senhores, eles queriam simplesmente saber acerca de uns artigos que irão constar do leilão, artigos sobre os quais, dado um acordo de confidencialidade, eu nada deverei dizer. Porém, antes que comecem a ter muitas ideias, poderei dizer-vos o seguinte: os artigos em questão não são nada fora do costume. Nada há de extraordinário acerca dos mesmos.
O martelo pneumático no exterior parou finalmente e, nesse súbito silêncio, Kensington pegou numa caneta, com a mão visivelmente a tremer.
— São apenas bugigangas — continuou ele, falando quase distraidamente, enquanto começava a escrever. — Artefactos não-autenticados do Egito. Nada de grande valor.
Ouviu-se um forte motor no pátio mais abaixo. Era um som poderoso e estranhamente deslocado. Foi o suficiente para pôr os cabelos de Kurt em pé. Este voltou-se para ver uma sombra arredondada a deslizar em frente do vitral da janela.
— Atenção — gritou ele, atirando-se da cadeira para o chão.
Ouviu-se um terrível choque, seguido pela lança de uma grua a entrar pela janela como um aríete.
Pedaços de vidro e de pó voaram por toda a parte, enquanto a lança amarela e negra da grua continuava a avançar, batendo na secretária de Kensington e esmagando-a contra a parede, entalando o curador nesse processo.
A lança da grua recuou alguns palmos e Kurt saltou para cima de Kensington, agarrando-o e desviando-o, antes que um segundo impacto acabasse por destruir o que ainda restava da secretária e abrisse um buraco na velha parede por detrás da mesma.
Uma terceira investida quase fez com que o teto lhes caísse em cima.
— Kensington! — gritou Kurt, olhando para o homem.
O rosto deste estava lacerado, o nariz partido, os lábios e os dentes esmagados. A lança da grua apanhara-o em cheio. Ele não respondeu, mas parecia ainda estar a respirar.
Kurt estendeu-o no chão e reparou no bilhete amachucado que ele tinha na mão. Apanhou-o precisamente no instante em que Joe lhe gritava para o avisar.
— Baixa-te!
A lança da grua estava a desviar-se para o lado. Kurt cobriu o corpo de Kensington e manteve-se contra o chão, tanto quanto possível, enquanto os atacantes investiam contra outra parede.
Dessa vez, a lança ficou presa na cantaria por baixo da janela. Fizeram ainda uma tentativa pouco corajosa para a libertar mas, em seguida, esta acabou por se imobilizar.
Kurt aproximou-se apressadamente da brecha aberta na parede. Viu um homem na cabina da pequena grua a tentar desesperadamente controlar os maquinismos, enquanto outro homem se encontrava perto, com uma metralhadora de mão.
Ao ver Kurt, o atirador elevou a arma e disparou uma rápida rajada de tiros. Kurt desviou-se quando as balas começaram a acertar perto da abertura mas sem encontrarem um alvo.
Por essa altura, já Joe pegara no telefone para pedir socorro. Ainda estava a falar quando se ouviram mais rajadas.
Kurt sabia que esses disparos tinham sido apontados numa direção diferente. Voltou a olhar para fora. Os atacantes estavam agora a correr, a dar tiros por cima da multidão numa tentativa de abrirem caminho entre as pessoas.
— Fica com o Kensington — pediu Kurt ao amigo. — Eu vou atrás deles.
Antes mesmo que Joe pudesse protestar, Kurt conseguiu sair pelo que ainda sobrava da janela e começou a descer pela lança da grua.