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Tariq Shakir encontrava-se numa câmara em tempos reservada aos faraós e aos seus sacerdotes. Um túmulo escondido, intocado por ladrões de tumbas, estava cheio de objetos e tesouros que em muito ultrapassavam os que tinham sido encontrados no túmulo de Tutancámon. Arte e hieróglifos do auge da Primeira Dinastia decoravam as paredes. Uma réplica mais pequena da esfinge, coberta com folha de ouro e pedras azuis semipreciosas, dominava uma ponta de uma enorme sala com meia dúzia de sarcófagos no centro. Dentro de cada um deles havia o corpo de um faraó, que se pensava ter sido roubado e profanado há já milhares de anos. Em volta deles viam-se animais mumificados, para os servir na vida do Além, e o esqueleto de um barco repousava não muito longe.

O mundo em geral nada sabia dessa câmara, um facto que Shakir também não tinha a intenção de revelar. Mas, uma vez por outra, levava até lá especialistas para trabalharem, e não via motivos para que eles e o seu povo não pudessem apreciar a glória restaurada dos antigos. Apesar de tudo, se ele fora bem-sucedido, uma nova dinastia da sua própria criação erguer-se-ia sobre o Norte de África.

Mas, de momento, tinha um problema.

Deixou a câmara funerária e foi até à sala de controlo. Aí, o seu fiel tenente Hassan estava de joelhos, com uma pistola apontada à cabeça segundo as ordens de Shakir.

— Tariq, por que motivo me estás a fazer uma coisa destas? — perguntou Hassan. — Qual a razão de tudo isto?

Shakir avançou em direção ao amigo e levantou um dedo. Foi o suficiente para que Hassan ficasse calado. — Vou mostrar-te.

Com um controlo remoto, acendeu um monitor, com um ecrã plano, na parede do fundo. Quando uma imagem começou a aparecer, o rosto queimado e ferido pelo sol do candidato número quatro emergiu.

— Chegou-me um relatório de Malta — continuou Shakir. — O Hagen e dois membros da tua equipa escolhida a dedo foram encarregues de eliminar os americanos. Um deles foi abatido, Hagen foi capturado e um outro escapou. Estou certo de que percebes que é urgente que nenhum dos nossos homens seja capturado.

— Claro que percebo — respondeu Hassan. — Foi por isso que enviei…

— Que enviaste um candidato que não fez o trabalho que eu estava à espera — observou Shakir, com rancor. — Um que eu tinha pensado ter morrido no deserto há três dias.

— Nunca sugeri que ele tivesse morrido.

— Escondeste de mim a sua sobrevivência — prosseguiu Shakir. — Afinal, trata-se de uma e da mesma transgressão.

— Não — insistiu Hassan — Ele sobreviveu, tu não perguntaste. Eu próprio decidi cumprir a tua oferta, de que seria dada uma outra hipótese àqueles que conseguissem chegar ao posto de controlo.

Shakir odiava que alguém usasse as suas próprias palavras contra ele. — Exceto que não é possível que alguém tivesse sobrevivido a essa marcha até ao posto de controlo. Não sessenta quilómetros através do deserto sob um sol abrasador, sem água nem sombra. Não após semanas de uma competição esgotante em que os participantes já tinham dormido muito mal.

— Mas digo-te, ele conseguiu — afirmou Hassan. — E sem ajuda. Olha para a cara dele. Olha-lhe para as mãos. Ele enterrou-se na areia quando pensou que ia morrer e ficou aí escondido até ao anoitecer. Depois saiu do abrigo e continuou.

Shakir vira as cicatrizes. Esperto, pensou ele. Engenhoso. — Por que motivo os meus homens não me informaram disso?

— Não estava ninguém no posto de controlo quando ele chegou — insistiu Hassan. — O pessoal tinha-se ido embora, assumindo, tal como tu, que mais ninguém iria conseguir acabar essa caminhada com vida. O número quatro chegou e contactou-me. Ao ver a sua força e determinação, decidi que ele seria a escolha perfeita para tomar conta dos nossos homens. Ele estava lá sem que eles soubessem. Se eles falhassem, as suas ordens eram para os eliminar e evitar que fôssemos expostos.

Shakir era o líder inquestionável da Osiris, mas não receava admitir os seus erros. Se Hassan estivesse a dizer a verdade, nesse caso o número quatro era sem dúvida um candidato que merecia ser premiado com um cargo e, pela mesma importância, um bom nome.

Ao pedir a Hassan que se calasse, Shakir desativou a ligação por satélite e questionou esse mesmo sobrevivente. As respostas eram em tudo semelhantes, sem serem idênticas. Shakir teve a impressão de estar a ouvir a verdade em vez de uma história ensaiada.

Olhou para os guardas por detrás de Hassan. — Libertem-no.

Os guardas fizeram isso e ele pôs-se de pé. — Quando eu era criança, a minha família vivia nos arredores do Cairo. O meu pai procurava pedaços descartados de metal, que encontrava no lixo, para vender. Foi assim que nós sobrevivemos. Um dia, um enorme escorpião entrou na nossa casa. Mordeu-me. Estava quase a esmagá-lo com um tijolo quando o meu pai me segurou na mão.

» Disse que me iria ensinar uma lição. De modo que pôs o escorpião num frasco e tentou matá-lo, primeiro com água fria e depois com água quente. Depois deixámo-lo ao sol, dentro do frasco de vidro transparente, durante dias. Em seguida, deitámos-lhe álcool por cima. Tentou nadar mas não conseguiu e acabou por ficar no fundo do frasco. No dia seguinte, escoámos o álcool e atirámos o escorpião para a esterqueira ao pé de nossa casa. Não só ainda estava vivo como estava pronto para nos atacar. Antes que me pudesse voltar a atingir, o meu pai enxotou-o para longe com uma vassoura. O escorpião é nosso irmão, disse-me ele. Teimoso, venenoso e difícil de matar. O escorpião é um animal nobre.

No ecrã, o número quatro acenava ligeiramente com a cabeça.

— Provaste quanto vales — disse-lhe Shakir. — Agora és um de nós. Um irmão. O teu nome de código será Escorpião, pois provaste ser teimoso, difícil de matar e, sem dúvida, até tens alguma nobreza. Não me imploraste piedade no deserto. Não te deixaste possuir pelo medo. Por isso, elogio-te.

No ecrã, o homem a quem tinham atribuído esse novo título curvou a cabeça.

— Usa essas cicatrizes com orgulho — observou Shakir.

— Sem dúvida.

— Quais são as tuas ordens? — perguntou Hassan, tentando entrar na conversa, mas, sobretudo, contente por estar vivo.

— Continuam as mesmas — disse ele. — Arranjar os artefactos antes de eles se tornarem conhecidos do público, e apagar qualquer registo deles do museu. Desta vez irás tu para tomar conta de tudo pessoalmente.