No fundo da baía pouco funda, Joe compartilhava o oxigénio da sua garrafa com os D’Campion, acalmando-os e mantendo-os vivos, até que Kurt e Renata descobrissem uma maneira de os trazer até à superfície.
Metê-los no barco de mergulho foi um processo penoso e cortar as correntes foi ainda mais delicado, mas em breve estavam libertos. Por essa altura, contudo, revelara-se-lhes um novo problema.
— Creio que nos estamos a afundar — observou Joe.
O barco de mergulho já tinha aguentado muito, e os estragos maiores tinham ocorrido quando Kurt decidira embater com ele contra a ponte.
— Todo o compartimento da proa se encontra já inundado — afirmou Renata.
— Ainda bem que não estamos muito longe da praia — retorquiu Kurt.
Apontou para a costa e acionou a alavanca. O barco danificado pareceu cambalear lentamente, para encalhar na areia momentos depois. O grupo saiu dele, ficou com água pelo joelho e, em seguida, conseguiu finalmente atingir a areia seca.
— Sigamos até à estrada de acesso — sugeriu Kurt. — Talvez possamos encontrar alguém que nos dê boleia.
Atravessaram a praia, sempre de olho nos combatentes vencidos que estavam caídos por terra.
— Estão todos mortos — disse Renata. — Incluindo aquele a quem eu apenas alvejei nas pernas.
— Este grupo tem uma visão retrógrada e distorcida da frase: Não se deixa nenhum homem para trás — observou Joe.
Kurt olhou mais de perto para o homem que Renata atingira nas pernas. Tinha espuma branca a sair-lhe da boca. — Cianeto. Não há dúvida de que estamos a lidar com fanáticos. Devem ter-lhes dado ordens para não se deixarem capturar vivos.
— Não se tratará de uma ordem fácil de dar, mas difícil de obedecer? — perguntou a Sr.ª D’Campion.
— Sim, para pessoas normais — respondeu Kurt. — Mas quem sabe com que tipo de organização estaremos nós a lidar?
— Com terroristas — sugeriu o Sr. D’Campion.
— Estão todos bem versados no terror — sublinhou Renata. — Mas creio que a missão deles é bem mais do que espalhar medo.
Kurt revistou o corpo. Não encontrou qualquer identificação, nenhuns símbolos religiosos, joias ou tatuagens, nenhumas cicatrizes de iniciação usadas por vezes pelos grupos de fanáticos para marcar os seus. De facto, nada capaz de indicar quem eram esses homens ou para quem trabalhavam.
— Telefone para o governo de Malta — pediu ele a Renata. — Veja se podem contar com alguma cooperação das Força de Defesa e com as agências de segurança. Como se costuma dizer: Os mortos não contam histórias, mas, de acordo com a minha experiência, isso raramente é verdade. As suas armas, as roupas, as impressões digitais dão-nos por vezes pistas. Estes fulanos tiveram que vir de algum lado, tiveram que ter um passado e, se considerarmos o modo como lutaram, não me parece que fossem alunos de quadro de honra ou meninos de coro.
Ela assentiu com a cabeça. — Talvez consigamos alguma informação dos dois que foram capturados perto do Sophie C.
— Se é que ainda não se envenenaram… — observou Kurt.
Daí, o grupo começou uma lenta subida até à estrada de acesso, passando pelos edifícios abandonados da estância de férias, até chegarem à estrada no topo da escarpa.
Algumas horas mais tarde, depois de terem tomado um duche e vestido roupa lavada, estavam sentados na sala de estar barroca do casarão dos D’Campion, enquanto o Sol se começava a pôr. Sofás e cadeirões com almofadas muito confortáveis enchiam o andar térreo, para além de pinturas, estátuas e toda uma biblioteca que cobria as paredes. O balcão do loft no andar superior elevava-se sobre eles. No centro de uma das paredes crepitava o fogo numa enorme lareira de pedra.
O corredor e a biblioteca estavam numa confusão, após os assaltantes terem rasgado livros e partido candeeiros numa tentativa de os intimidar.
Nicole D’Campion tentava limpar o melhor que podia, até o marido a ter feito parar. — Deixa isso, minha querida. Precisamos que a polícia e que os empregados da companhia de seguros vejam tudo isto antes de começarmos a arrumar.
— É claro — concordou ela. — É que não é nada o meu género deixar tudo desarrumado. — Sentou-se em seguida e olhou para Kurt, Joe e Renata. — Os meus sinceros agradecimentos por nos terem vindo salvar.
— E os meus — acrescentou o marido.
— Até certo ponto, creio que era o mínimo que poderíamos fazer — observou Kurt. — Talvez tivesse sido a nossa vinda até aqui que os fez correr perigo.
— Não — disse Étienne, pegando num decantador de cristal que estava num tabuleiro de prata maciça. — Esses homens chegaram dois dias antes de vocês. Conhaque?
Kurt não aceitou.
Joe ficou mais animado. — Poderia beber qualquer coisa para me aquecer os ossos.
Étienne encheu um copo em forma de túlipa com o líquido dourado. Joe agradeceu-lhe e pôs-se a saborear a bebida, deleitando-se com o aroma e com o gosto. — É incrível.
— E deverá sê-lo — disse Kurt, olhando para o decantador de cristal e depois para o seu amigo despretensioso. — Se não estou em erro, trata-se de um Delamain Le Voyage, a oito mil dólares a garrafa.
O rosto de Joe corou de embaraço, mas Étienne tentou acalmá-lo. — É o mínimo que posso fazer por um homem que me salvou a vida.
— Sem dúvida — acrescentou Nicole.
De facto não havia dúvida. Kurt estava orgulhoso do seu amigo que dava tanto aos outros, se bem que nem todos se mostrassem agradecidos.
Étienne voltou a pôr o decantador de cristal Baccarat no tabuleiro e sentou-se, bebendo pequenos goles do seu copo e olhando pensativamente para o lume.
— Sou um especialista em dar cabo de certos momentos — disse Kurt —, mas que é que, de facto, esses homens queriam de si? O que se passa com esses artefactos egípcios que faz com que haja gente capaz de matar por eles?
Os D’Campion trocaram olhares. — Puseram o meu estúdio de pernas para o ar — observou Étienne — e quase destruíram a nossa biblioteca.
Kurt ficou com a impressão de que o casal não queria falar do assunto. — Desculpe, mas o que me disse não é uma resposta — disse ele. — Em vez de vincar que nos está a dever muito, apelo ao seu sentido de humanidade. Milhares de vidas encontram-se em perigo. Talvez dependam do que os senhores possam saber, de modo que preciso que seja sincero connosco.
Étienne pareceu ficar ligeiramente ofendido com a afirmação. Ficou sentado numa imobilidade de pedra. Nicole estava nervosa, brincando com a bainha do vestido.
Kurt pôs-se de pé e foi até um canto ao lado da lareira, dando-lhes tempo de considerarem o que fora dito. Por cima da mesma, havia uma enorme pintura. Representava uma frota de navios britânicos a lutar contra uma armada francesa ancorada numa baía.
Kurt estudou a pintura em silêncio. Considerando a história e a presente situação, em breve se deu conta do que estava a ver: A Batalha do Nilo.
— O rapaz encontrava-se no convés a arder
De onde todos menos ele estavam fugidos,
A chama que iluminara o naufrágio da batalha
Brilhava em torno dele por sobre os falecidos.
Kurt disse os versos entre dentes, mas Renata conseguiu ouvi-lo.
— Que estava a dizer?
— «Casabianca» — disse ele. — O famoso poema da poetisa inglesa Felicia Hemans. É acerca de um rapaz de doze anos que era filho do comandante do L’Orient. Ele permaneceu no seu posto durante toda a batalha, até ao fim, quando o navio explodiu logo que o fogo chegou ao paiol da pólvora.
Kurt voltou-se para Étienne. — Trata-se da Baía de Abukir, não é verdade?
— É, sim — disse Étienne. — Já vejo que conhece a História e a poesia.
— É uma estranha pintura para estar num lugar de destaque em casa de um expatriado francês — acrescentou Kurt. — Geralmente, não gostamos de comemorar as derrotas das nossas nações.
— Tenho os meus motivos… — disse ele.
No canto de baixo, o artista tinha assinado o nome: Émile D’Campion. — Um antepassado seu?
— Sim — respondeu Étienne. — Era um dos savants de Napoleão que fora com a expedição para decifrar os mistérios do Egito.
— Se pintou isto, quer dizer que sobreviveu à batalha — observou Kurt. — Creio que deveria ter trazido para casa algumas recordações.
Os D’Campion voltaram a trocar olhares. Finalmente, Nicole disse: — Diz-lhes, Étienne. Não temos nada a esconder.
Este acenou afirmativamente com a cabeça, bebeu o último gole de conhaque e pousou o copo. — Émile, de facto, sobreviveu à batalha e comemorou-a com esta pintura. Se olhar para o canto oposto ao seu nome, verá um pequeno barco a remos com um grupo de homens. É ele, juntamente com os melhores intelectuais de Napoleão. Estavam a caminho do seu navio L’Orient quando a luta começou.
— Creio que nunca chegaram a alcançar o barco — observou Kurt.
— Pois não — disse Étienne. — Viram-se forçados a procurar abrigo a bordo de um outro barco. Decerto ouviu falar dele como o William Tell, ou em francês, Guillaume Tell.
Kurt passara metade da sua vida a estudar guerras navais e estava familiarizado com esse nome. — Guillaume Tell era o navio do almirante Villeneuve.
— O contra-almirante Pierre-Charles Villeneuve era o segundo no comando da frota. Nesse dia estava encarregue de quatro navios. Mas, mesmo quando a batalha começou a correr mal aos seus camaradas, recusou-se a combater.
Étienne apontou então para um navio um pouco afastado dos outros. — Este é o navio de Villeneuve — disse ele —, à espera e de atalaia. Interminavelmente, teria parecido aos outros. Quando nasceu o dia, a maré da batalha ainda estava contra eles, mas a maré na baía tinha mudado. Villeneuve decidiu levantar âncora, desfraldou as velas e zarpou para o mar, escapando com os seus quatro navios e com o meu trisavô.
Voltou-se então para olhar Kurt de frente. — Não o surpreenderá se eu lhe disser que o ato de Villeneuve sempre me provocou um certo conflito interior. Embora não abone a favor da coragem francesa e do esprit de corps, eu talvez não estivesse aqui hoje se Villeneuve não tivesse abandonado a batalha e decidido partir.
— E a discrição é a melhor parte da coragem — comentou Renata, juntando-se à conversa. — No entanto, tenho quase a certeza de que o resto da frota não o viu desse modo.
— Pois não, não viram — apressou-se Étienne a esclarecer.
Kurt tentou juntar as peças na sua mente, pensando alto à medida que o fazia: — Depois da batalha, Villeneuve veio até aqui, a Malta, e teria sido eventualmente capturado pelos britânicos, logo que conquistaram a ilha.
— Exatamente — confirmou Étienne.
— Normalmente, não costumo interromper histórias épicas relacionadas com o mar — disse Joe —, mas será que podemos continuar a falar do seu antepassado e do que ele descobriu no Egito?
— É claro — concordou Étienne. — Descobri, ao ler o seu diário, que ele escavara vários túmulos e monumentos. E quando digo escavar, estou a referir-me ao facto de os homens de Napoleão se terem apossado de tudo o que poderiam transportar: obras de arte, inscrições, obeliscos e fragmentos gravados. Arrancaram painéis inteiros das paredes, arrebanharam vários jarros e vasos, enviando um comboio desses materiais para a frota. Infelizmente, muitos desses tesouros estavam a bordo do L’Orient, quando este explodiu.
— A maioria, mas não todos — observou Kurt.
— Precisamente — acrescentou Étienne. — A última remessa desse tesouro, se assim lhe poderemos chamar, estava com ele no barco a remos, com os marinheiros, quando irrompeu uma grande discussão. Émile tinha ordens rigorosas para entregar tudo o que encontrasse ao cuidado do almirante Brueys, no L’Orient, mas os ingleses já tinham rompido a linha e três dos seus barcos já haviam começado a rodear o navio.
Étienne olhou para Renata. — A discrição mais uma vez se afirmou — disse ele, empregando a palavra que ela usara. — Voltaram-se para os únicos barcos que não estavam envolvidos, e os últimos caixotes de arte egípcia acabaram nas mãos de Villeneuve, escapando à destruição, quando ele zarpou para Malta e aí chegou, duas semanas após a batalha.
— E esses mesmos caixotes foram postos a bordo do Sophie Celine alguns meses mais tarde — observou Kurt.
— Ou assim se acredita — disse Étienne. — Embora esse facto não seja claro. De qualquer modo, isso era o que os nossos amiguinhos violentos estavam a pedir para ver quando apareceram: tudo o que Émile tivesse recolhido no Egito, especialmente de Abidos, da Cidade dos Mortos.
— Cidade dos Mortos… — repetiu Kurt, olhando fixamente para o lume e depois voltando-se para Joe. Essa era precisamente a expressão que ele usara para descrever Lampedusa. Decerto era uma ilha dos mortos ou dos quase mortos. — Esses artefactos não teriam, por acaso, algo a ver com uma névoa capaz de matar milhares de uma vez, pois não?
Étienne parecia muito surpreendido. — De facto referiam-se a qualquer coisa chamada Névoa Negra.
Kurt já o suspeitava.
— Mas isso não é tudo — disse Étienne. — A tradução de Émile também fala noutra coisa. Algo a que ele chamava o Bafo de Anjo, o que se trata, sem dúvida, de uma ocidentalização. O termo mais correto, o termo egípcio, seria Névoa da Vida: uma névoa tão fina que se acreditava ter vindo de um espaço para lá deste mundo, da vida do Além, onde o deus Osíris a usava para ressuscitar os mortos que ele pretendesse. Levado à letra, esse Bafo de Anjo era capaz de trazer os mortos de novo à vida.