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Bengasi, Líbia

Tinham irrompido rixas na cidade. Com a falta de água, a ameaça de uma guerra civil estava a tornar-se cada vez mais provável. A sala de emergência encontrava-se à pinha quando eles chegaram. Alguns doentes tinham sido esfaqueados, outros espancados e até havia os que tinham levado tiros.

Paul e Gamay conseguiram arranjar um canto desocupado onde esperar, e não demorou até que tivessem sido abordados por um membro das forças de segurança da Líbia. Este passou uma hora a interrogá-los acerca dos acontecimentos na estação de bombeamento. Eles explicaram-lhe o que tinham estado aí a fazer e de como haviam trabalhado com Reza na esperança de descobrir o que estaria a passar-se com o lençol freático.

O agente parecera pouco convencido. Assentia apenas com a cabeça e tomava notas, mesmo apesar de os membros da estação de bombeamento terem confirmado tudo isso. Prestou particular atenção à descrição que eles fizeram do ataque e da fuga.

Seguiu-se um silêncio tenso, apenas interrompido por gritos, quando traziam da rua outro grupo de homens feridos. O agente do governo olhou para eles com um certo pressentimento.

— Quando é que tudo isto começou? — perguntou Gamay, surpreendida com o facto de o hospital estar cheio.

— Os protestos começaram assim que o governo cortou a água em algumas secções da cidade. Tornaram-se violentos esta tarde. Iniciou-se um racionamento severo, mas não vai ser suficiente. As pessoas estão desesperadas e alguém está a incitá-las.

— Alguém? — perguntou Paul.

— Há muitos a interferir na Líbia nos dias que correm — disse o agente. — Está já bem documentado que espiões e agentes egípcios percorrem as nossas cidades. Porquê? Não sabemos, mas há cada vez mais.

— Então é por isso que não confia em nós? — perguntou Gamay. — Acha que fizemos alguma coisa ao Reza?

— No mês passado, alguém atentou contra a vida dele — continuou o agente —, e por uma boa razão: ele é uma pessoa indispensável para que a água volte a fluir. Mais do que qualquer outra pessoa, é ele que sabe do sistema e da geologia. Sem ele, talvez estejamos perdidos.

— Tudo o que fizemos foi tentar ajudar — observou Gamay.

— A ver vamos — disse o agente, sem acrescentar mais nada.

Quando o agente acabou de falar, um cirurgião saiu finalmente da sala de operações e olhou para eles. Tinha um ar cansado ao aproximar-se de ambos, retirando a máscara do rosto. Notavam-se-lhe grandes olheiras e o aspeto fatigado de um homem que já tinha trabalhado muito, mas que não via um fim à vista para as suas tarefas.

— Por favor, dê-nos boas notícias — pediu-lhe Gamay.

— O Reza está vivo e a melhorar — disse o cirurgião. — Uma bala penetrou-lhe a coxa e um estilhaço cortou-lhe o fígado, mas esse fragmento metálico não lhe acertou em mais nenhuma parte vital. Felizmente, ou talvez infelizmente, as nossas equipas cirúrgicas têm vindo a especializar-se nesse tipo de ferimentos. A guerra civil encarregou-se disso.

— Quando poderemos falar com ele? — perguntou Gamay.

— Ele acabou de acordar da anestesia. Devem esperar pelo menos meia hora.

— Eu vou vê-lo agora — disse o agente, levantando-se e mostrando o seu crachá de identificação.

— Não é uma boa altura — disse o médico.

— Mas ele não recuperou já os sentidos?

— Sim.

— Então leve-me até ele.

O cirurgião respirou fundo, com uma certa frustração. — Pois bem — concordou ele. — Venha comigo. Precisamos que vista uma bata.

Enquanto o médico levava o agente até ao vestiário, o telefone de Gamay tocou. Ela viu o nome no ecrã. — É o Kurt, provavelmente a pensar por que motivo não nos apresentámos ao trabalho nos últimos dois dias.

Paul olhou em volta e fez um gesto em direção à varanda. — Vamos apanhar ar.

Saíram para o ar livre e Gamay tocou na tecla do telefone para responder.

— Então, como foram as vossas férias? — perguntou Kurt.

O ar da noite era suave e tépido, percorrido pelo odor do Mediterrâneo. Mas podia ouvir-se o som de helicópteros a circularem e de tiros distantes. — Não foram lá muito descontraídas — respondeu Gamay.

— Que pena — disse Kurt. — Que me dizem a uma segunda lua de mel no campo, em França, com todas as despesas pagas pela NUMA?

— Não podia soar melhor — admitiu Gamay. — Embora eu saiba que não será apenas isso.

— Há sempre uma outra coisa — observou Kurt.

Paul estava a ouvir a chamada. — Diz-lhe que precisamos de ficar aqui.

Gamay assentiu com a cabeça. — E haverá alguma hipótese de podermos recusar? Estamos aqui a investigar uma coisa. Algo que ainda não completámos.

— E isso o que é?

— Uma seca extrema no Norte de África.

Kurt ficou calado por momentos, mas depois disse: — Mas isso no Saara não é a norma?

— Não foi isso que eu quis dizer — continuou Gamay, dando-se conta de que não fora clara. — Não se trata de uma seca provocada por uma falta de chuva, mas de uma relacionada com o facto de os lençóis freáticos se estarem a esgotar. Lagos que se enchiam na primavera, transformaram-se em lamaçais. Bombas e poços de águas profundas que têm funcionado bem, há décadas, agora mal conseguem fornecer um fio de água.

— Isso parece-me muito estranho — admitiu Kurt.

— Está a gerar conflitos e sabe-se lá mais o quê.

— Lamento esse estado de coisas — disse Kurt —, mas outra pessoa irá ter de lidar com essa questão. Preciso da vossa ajuda em França. Já reservámos um voo de Bengasi para Rennes. Gostaria que embarcassem nele o mais depressa possível.

— Importas-te de nos dizeres porquê?

— Logo o irão saber, assim que entrarem no avião — insistiu Kurt.

Ela pôs uma mão em cima do telefone. — Deve estar a passar-se algo de importante. O Kurt não costuma ser assim tão reservado.

Paul olhou para o sítio onde o agente líbio os tinha interrogado. — Esperemos que nos permitam sair da cidade.

Gamay também estava preocupada com isso. Depois retomou a chamada: — Poderemos ter alguns problemas com as autoridades. É uma longa história, mas estaremos aí, logo que nos seja possível.

— Mantenham-me informado — disse Kurt. — Se não puderem sair, iremos precisar de outra pessoa… e bem depressa.

Kurt desligou, e Gamay voltou a meter o telefone no bolso. — Um mal nunca vem só — disse ela.

— Aqui não — retorquiu Paul. — Isto é um deserto.

— Foi o que me disseram — observou ela, com um sorriso triste.

Entretanto, o agente líbio tinha saído da sala de operações. Dirigiu-se a eles e entrou na varanda.

— As minhas sinceras desculpas — disse. — O Reza não só confirmou a vossa história, como insiste que os senhores lhe salvaram a vida e que o ajudaram muito na estação de bombeamento.

— Estou contente por saber que já não recaem suspeitas sobre nós — disse Paul.

Viu-se um clarão numa parte distante da cidade. Um trovão ouviu-se segundos mais tarde. Algo tinha explodido.

— Sim, já não suspeitamos de vocês — confirmou o agente — e o Reza ainda está vivo, mas os estragos já foram feitos. Duas outras estações de bombeamento também foram atacadas, e as outras estão a funcionar muito abaixo das suas capacidades. O Reza irá aqui estar ainda vários dias, e poderá demorar semanas até que possa regressar ao seu trabalho. Quando ele puder sair daqui, o país vai estar a despedaçar-se pela terceira vez em cinco anos.

— Talvez possamos ajudar — disse Paul.

O agente olhou para a distância. Havia fumo que subia na noite, obscurecendo as luzes. — Sugiro que saiam agora, quando ainda o podem fazer. Não vai demorar até se tornar difícil para qualquer um sair desta cidade. E poderão encontrar outros no governo que não tenham mentes tão abertas. Eles vão andar à procura de bodes expiatórios. Será que me estão a perceber…?

— Gostaríamos de nos despedir do Reza — insistiu Gamay.

— E depois disso — acrescentou Paul —, agradecíamos que nos dessem uma boleia até ao aeroporto.