Joe sentou-se numa cadeira de pele num aparatoso escritório da baixa do Cairo. A decoração moderna, a luz indireta e a música suave emprestavam ao ambiente uma aura de sucesso. Era muito diferente da noite de tempestade, alguns anos antes, quando ele conhecera pela primeira vez o major Edo numa sala de interrogatório cheia de fumo.
E isso fora lamentável.
— Parece-me que já não está no exército — disse Joe.
O cabelo de Edo estava mais comprido e as suas parecenças com Clark Gable mais acentuadas, agora que ele trocara a farda por um fato feito por medida.
— Estou na publicidade — informou Edo. — É esse agora o nome da minha ocupação. É muito mais bem pago e permite-me ser — fez um gesto ondulado com as mãos — mais criativo.
— Criativo? — perguntou Joe.
— Nem imagina como isso é desprezado no exército.
Joe suspirou. — Alegro-me com o que me diz — disse ele, tentando parecer sincero. — Estou apenas surpreendido. Que aconteceu? Segundo ouvi dizer, o Edo tinha sido promovido a brigadeiro.
Este recostou-se melhor na cadeira e encolheu os ombros. — Mudanças — disse. — Grandes mudanças, não sei se sabe. Primeiro, foram os protestos, após toda a luta. Tornou-se uma revolução. Houve um governo que caiu e um novo que se instalou. E depois, como já seria de esperar, os protestos começaram outra vez e o governo voltou a cair. Houve muitas purgas no exército. Forçaram-me então a sair, sem nenhuma pensão.
— E escolheu publicidade para a sua nova carreira?
— O meu cunhado fez uma fortuna em negócios — disse Edo. — Parece que todos querem vender alguma coisa a alguém.
Joe pôs-se a pensar se haveria algum modo em que Edo ainda os pudesse ajudar. — Suponho que nos poderia arranjar um encontro com os peixes graúdos da Osiris Construction…?
Edo debruçou-se um pouco e olhou mais para ele. — Osiris? — perguntou, com uma óbvia preocupação. — Em que é que se envolveu, meu amigo?
— É complicado — disse Joe.
Edo abriu uma gaveta de onde retirou um maço de cigarros. Pôs um na boca, acendeu-o e começou a ondular com ele pelo ar, à medida que ia falando, nunca o voltando a pôr na boca. Pelo menos, algumas coisas não tinham mudado. — Se estivesse no seu lugar, deixaria a Osiris sossegada — avisou ele.
— Porquê? — perguntou Joe. — Quem são eles?
— Eu diria quem é que não são — respondeu Edo. — São todos aqueles que costumavam ser importantes.
— Será que poderia ser mais específico? — pediu-lhe Joe.
— São a velha guarda — admitiu o publicitário —, os militares que foram retirados do poder há alguns anos. Os militares têm estado a controlar o Egito desde que os Oficiais Livres tomaram o poder, em 1952. Têm sempre tido a mão no leme. Nasser era militar. Sadat era militar. Mubarak era militar. Têm estado sempre encarregues de tudo. Mas é bem mais do que isso. Estou certo de que já ouviu a expressão complexo militar industrial. No Egito, isso foi levado a um nível inteiramente novo. Os militares estavam na posse da maioria dos negócios e decidiam quem ficava com os empregos. Contratavam amigos, em jeito de recompensa, e inimigos para os aplacar. Contudo, desde a Revolução, as coisas têm sido diferentes. Há demasiado escrutínio para que tudo volte ao que costumavam ser. A Osiris é o resultado disso. É gerida por um homem chamado Tariq Shakir que era coronel na polícia secreta. Ele tinha grandes ambições de poder um dia vir a comandar o país, mas sabia que o passado o iria impedir de que tal acontecesse. De modo que, com a ajuda de outros indivíduos da velha guarda, encontrou uma outra maneira. A Osiris é a corporação mais poderosa do país. São eles que ganham todas as empreitadas, não só do nosso governo mas de outros. Todos têm imensa cautela com eles, mesmo os atuais políticos.
— Então esse Shakir é um homem com grandes poderes — observou Joe.
Edo acenou afirmativamente com a cabeça. — Ele nunca será visto na linha da frente, mas tem de facto um grande poder, aqui e no estrangeiro. Já viu o que está a acontecer na Líbia, na Tunísia, na Argélia?
— Claro — admitiu Joe.
— Os novos governos nesses países são formados pelos amigos de Shakir, pelos seus aliados.
— Ouvi dizer que eram membros da velha guarda nos seus respetivos países — observou Joe.
— Pois eram — disse Edo. — Agora já estará a ver como tudo se começa a ligar.
Joe tinha a impressão distinta de que eles estavam a ir cada vez mais fundo do que era esperado, a cada passo que davam, quase como se tivessem apanhado um peixe pequeno que fora comido por um peixe maior que, por sua vez, estivesse a ser perseguido por um tubarão gigante.
— A Osiris tem o seu exército privado — revelou Edo. — Gente expulsa das unidades regulares, homens das Forças Especiais, assassinos da polícia secreta. Qualquer um, demasiado inconveniente para o exército regular, poderá encontrar um lar acolhedor na Osiris.
Joe esfregou a testa. — Precisamos de entrar no edifício deles e não temos tempo para esperarmos por um convite. Existem milhares de vidas em perigo.
Edo sacudiu a cinza do cigarro, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Joe pensou ter visto uma mudança nos olhos dele: uma expressão mais calculista se impusera. O publicitário pôs as mãos na parede e olhou para o teto. Parecia confinado pelo escritório, quase como se ele fosse demasiado grande para caber entre aquelas paredes.
Voltou-se para Joe, rodando subitamente sobre os calcanhares. — Seria o fim da minha carreira ajudar inimigos da Osiris, mas devo-lhe muito, o Egito deve-lhe muito… — Apagou o cigarro, muito enfaticamente. — Para além do mais, já começo a ficar farto deste negócio. Não faz a mínima ideia do que é trabalhar com um cunhado. É bem pior do que o exército.
Joe riu-se. — Nós apreciamos a sua ajuda.
Edo assentiu com a cabeça. — Então qual é a sua ideia e a dos seus amigos para entrarem no edifício da Osiris? Assumo que um assalto frontal e direto, ou saltar de um helicóptero, se encontrem fora de questão.
Joe apontou com o queixo para a área da receção, onde Kurt e Renata tinham estado a estudar diagramas e plantas arquitetónicas que ela descarregara para o seu computador. — Não tenho ainda a certeza. Os meus amigos têm estado a trabalhar nisso. Eu próprio gostaria de ouvir o plano.
Edo fez um gesto para que entrassem, seguindo-se as apresentações do costume. Só depois começaram a conversar.
— Os meus colegas enviaram-me o esquema do edifício da Osiris — esclareceu Renata, avançando e colocando o iPad em cima da secretária, para que todos pudessem ver. — Se assumirmos que esta planta está correta, penso que já encontrámos um ponto fraco.
Ela bateu com um dedo no ecrã, até uma fotografia de alta resolução desse local ter começado a surgir. Incluía o rio e a área circundante. — A segurança do lado da rua é extremamente complexa e impossível de ludibriar, o que significa que a única maneira de nos podermos aproximar desse sítio é através do rio. Vamos precisar de um barco, equipamento de mergulho para três pessoas, e de um laser de frequência média, verde será o ideal; no entanto, qualquer coisa semelhante a um laser, capaz de indicar um alvo, dos que os militares costumam usar, poderá servir.
Edo concordou. — Posso arranjar-vos essas coisas, mas, e depois?
Kurt começou a explicar: — Subimos o rio no barco a motor até este ponto, a cerca de um quilómetro do edifício. Eu, a Renata e o Joe entramos na água e começamos a deslocar-nos para norte, seguindo a corrente e mantendo-nos junto à margem leste. Em seguida, introduzimo-nos no canal, evitamos as primeiras turbinas e continuamos, até ficarmos diante do segundo impulsionador… aqui.
— Parece muito fácil — observou Edo.
— Estou certo de que haverá complicações — acrescentou Joe.
— Claro — disse Kurt, voltando-se de seguida para Renata. — Não se importa de mudar para a apresentação através de diagramas?
Renata tocou no ecrã do computador e viu-se uma planta do canal.
— Não iremos ter qualquer problema para entrarmos no canal da água — esclareceu Kurt. — Mas uma vez lá dentro, teremos que navegar para lá das turbinas. Visto ser à noite, podemos assumir que os mecanismos estarão a trabalhar a meio gás, mas isso poderá mudar a qualquer momento. E mesmo que não estejam a trabalhar, as turbinas irão estar a rodar, ainda que mais lentamente.
— Ponham-nas na lista das coisas a serem evitadas — disse Joe.
— Exatamente. E a melhor maneira de o fazer é mantermo-nos sempre encostados à parede interior. Há bastante espaço em volta do primeiro conjunto de turbinas. Logo que as tivermos ultrapassado, continuaremos até ao segundo impulsionador e é aí que as coisas hão de começar a tornar-se interessantes.
Ao estudar o diagrama, Joe deu-se conta de duas coisas. A segunda turbina era maior e havia duas saliências apontadas para dentro, desde a parede até à margem do enorme disco rotativo. Pareciam as palhetas de uma máquina de pinball. Apontou para elas.
— Trata-se de portões defletores — explicou Kurt. — Concebidos para forçar mais água para as lâminas das turbinas quando é necessária mais energia. Na posição retraída, ficam planas contra as paredes e alguma água escapa a essas lâminas. No entanto, quando estão abertas, as suas margens alinham-se diretamente com a carenagem da turbina. Não há espaço em volta delas, mas iremos estar fora da água antes de as atingirmos. — Apontou então para um ponto na planta. — Existe um escadote de manutenção, soldado a um dos lados do portão, neste sítio. Mantemo-nos sempre junto à parede e vamo-nos agarrando, à medida que deslizamos e trepamos para cima.
— Parece uma coisa muito simples desde que os portões estejam retraídos — observou Joe. — Mas… e se estiverem corridos? Temos alguns números acerca do que isso possa provocar na corrente?
— Na sua máxima extensão, a corrente é duplicada e a quantidade exata de força depende do fluxo atual do rio. Nesta altura do ano é cerca de dois nós.
— Dois nós não é propriamente um problema — retorquiu Joe —, mas quatro nós já será.
Kurt acenou afirmativamente com a cabeça. Era esse o risco que eles iriam correr.
Joe considerou as várias possibilidades. Não havia qualquer motivo para a estação gerar o seu máximo de eletricidade a meio da noite, pois os picos de utilização ocorriam à tarde.
— Se assumirmos que não vamos ser transformados em carne picada — acrescentou Kurt —, o nosso problema seguinte começará à superfície.
— Com certeza, eles devem ter câmaras montadas — observou Edo.
Renata respondeu dessa vez: — Pois têm. Aqui e aqui. Mas estas duas câmaras estão direcionadas para fora, concebidas para verem alguém que se aproxime da estrutura. Logo que passemos o primeiro conjunto de turbinas, só existe uma câmara com a qual nos teremos de preocupar. Está montada aqui — explicou ela, apontando para um outro local. — É capaz de varrer toda a extensão da passagem metálica junto à parede interior. A mesma que nós teremos de usar.
— É para isso que vocês precisam do laser — disse Edo.
— Exatamente — respondeu Renata. — Um laser focalizado poderá sobrecarregar o sensor. De modo que você irá estar encarregue disso. O melhor ângulo será da praia um pouco mais a sul e na margem oposta. Assim que o alinharem com a câmara, o sensor irá esforçar-se para processar o sinal e eles não poderão ver mais do que um ecrã em branco.
Kurt continuou: — Assim que essa câmara ficar sem imagem, poderemos sair da água, movermo-nos através da passagem metálica e entrarmos pela porta.
— E por quanto tempo terei de manter o laser ativado?
— Dois minutos — sugeriu Renata. — É quanto precisamos.
— E os alarmes e as câmaras internas de vigilância? — perguntou Edo.
— Posso desligá-los assim que estivermos lá dentro — prometeu ela. — Quer os alarmes quer as câmaras são controlados por um programa de software chamado Halifax. O pessoal na nossa secção técnica ensinou-me um modo de o sabotar.
Renata voltou a mostrar as plantas do interior. — Sabemos que o Hassan entrou por esta porta — começou ela a explicar. — O seu sinal permaneceu forte quando ele percorreu este corredor e, eventualmente, entrou neste elevador. Com base no enfraquecimento do sinal e no seu desaparecimento, temos de assumir que ele foi até ao piso inferior, e não para outro mais acima. O que significa que ele deverá estar na sala de controlo das operações, aqui.
— E têm a certeza de que não vão cair numa armadilha? — perguntou Edo. — Não tenho de vos dizer que, mal entrem, estarão fora de qualquer tipo de ajuda.
— Sabemo-lo bem — disse Kurt. — E, acredite-me, não consigo imaginar por que razão Hassan se encontra nesse edifício, a observar os níveis de potência. O seu telefone indicava que ele lá estava até deixarmos de receber o sinal que, desde então, não voltou a ser captado pelo satélite. No entanto, mesmo que ele lá não esteja, a Osiris tem algo a ver com isso, o que quer dizer que não poderá fazer nada mal dar uma vista de olhos.
— Vocês são muito corajosos — observou Edo. — E que devo eu fazer enquanto vocês estiverem dentro do edifício?
— Espere por nós no rio, um pouco mais abaixo — sugeriu Kurt. — Se encontrarmos o Hassan, haveremos de o trazer cá para fora e, se não for esse o caso, sempre daremos por aí um giro, evitamos a loja de presentes e voltamos para casa.