O encarregado da segurança da central hidroelétrica da Osiris permanecia na secretária de controlo, a olhar para o relógio. As imagens no ecrã do computador em frente dele tremiam e iam mudando na rotação monótona do costume, e o encarregado tentava lutar contra a vontade de descansar os olhos. Lote principal, lote secundário, exterior norte, exterior sul, seguido de todas as imagens interiores captadas pelas várias câmaras. Não havia emprego neste mundo mais aborrecido do que ver vídeos de segurança. Era sempre a mesma coisa.
Enquanto este pensamento passava pela cabeça do encarregado, de súbito, este sentiu-se mais acordado. Uma pequena réstia de adrenalina atingira-o, vinda não se sabia bem de onde.
Era sempre a mesma coisa.
De repente, deu-se conta de que as imagens não deviam ser sempre as mesmas. Ele devia ter visto o técnico a aparecer nas últimas três séries das câmaras, enquanto se dirigia para a passagem de metal, junto ao canal, para substituir o sensor que se fundira.
Pegou no rádio e pressionou o botão para falar. — Kaz, fala da base. Onde é que te meteste?
Após um pequeno atraso, a voz do outro respondeu-lhe: — Já estou na passagem, a substituir a câmara.
— Que caminho tomaste para aí chegares? — perguntou o encarregado.
— Que queres dizer?
— Diz-me lá…!
— Fui pelo vestíbulo principal até às escadas do lado leste — disse Kaz. — Que outro caminho podia eu ter seguido?
Ele nunca aparecera no ecrã.
— Volta às escadas — pediu-lhe o encarregado. — Depressa.
— Mas porquê?
— Faz o que te digo!
O encarregado começou a tamborilar com os dedos sobre a secretária. Subitamente, estava bem acordado, com o corpo a pulsar de adrenalina.
— Muito bem, já estou nas escadas — anunciou o técnico. — Que se passa?
O encarregado percorreu as várias câmaras, até trazer para o ecrã as imagens das escadas do lado leste, com o mesmo a dividir-se em quatro partes, uma câmara em cada andar. Mas nada mudara. — Em que andar estás?
— No terceiro. Estou mesmo aqui. Não me consegues ver?
O encarregado não o conseguia ver e soube logo que algo de estranho se passava, algo que não tinha apenas a ver com uma mera avaria.
— Não, não te consigo ver — respondeu o encarregado. — Consegues verificar se a câmara está avariada?
— Não — esclareceu Kaz —, parece estar a funcionar muito bem.
Começou então a fazer-se luz na mente do encarregado. Uma câmara no canal avariada devido a um curto-circuito. As câmaras de interior, incapacitadas ou paradas. Tinham um problema de segurança. Tinham um intruso.
Pressionou o botão de alarme silencioso, que alertaria os guardas, e ligou o rádio para todos os canais. — Preciso que todo o edifício seja fechado e inspecionado — disse ele. — Passado a pente fino… Temos um possível intruso, ou intrusos, e não nos podemos fiar nas câmaras nem nos sistemas automáticos. Terão de ser vocês mesmos a inspecionar meticulosamente cada estrutura.
Longe do centro de segurança da central hidroelétrica, os intrusos tinham encontrado um veículo todo-o-terreno com dois assentos, com uma gaiola de proteção, e os guardas vestidos de negro que aí estavam sentados com uma expressão de surpresa. Tinham-nos daí retirado facilmente e estavam a arrastar os guardas subjugados pelo lado de um túnel, quando descobriram o laboratório.
Havia uma porta exterior feita de vidro, encaixada num aro de borracha, que não estava fechada à chave. Kurt entrou por ela, seguido por Joe e Renata. Os dois trabalhadores de batas brancas olharam para eles muito chocados.
— Não se mexam — gritou-lhes Joe, com uma pistola na mão.
Os homens ficaram imóveis, mas a mulher tentou correr para um alarme ou para um intercomunicador. Renata apanhou-a e deixou-a sem sentidos.
— É sempre intrigante ver como as pessoas se mexem depois de se lhes dizer para não o fazerem — observou Joe.
Kurt voltou-se para Renata. — Lembre-me para me manter perto de si da próxima vez que surja uma escaramuça num bar.
Em frente deles, o homem pôs as mãos no ar, seguindo uma política de não-confrontação.
— O senhor é cientista, assumo — disse Kurt.
— Biólogo — respondeu o homem.
— É americano? Como se chama?
— Brad Golner.
— No mundo real, trabalha para a Osiris num departamento farmacêutico, não é verdade? — observou Kurt.
— Fui contratado para trabalhar no laboratório do Cairo. Também há um em Alexandria — admitiu ele. — A Zia trabalha comigo. — Apontou então para a mulher inconsciente.
— Mas os projetos especiais têm lugar aqui, não é assim? — inquiriu Kurt.
— Não temos escolha. Fazemos o que nos mandam.
— Os nazis também não tinham — retorquiu Kurt. — Creio que devem saber por que motivo aqui estamos e o que procuramos…
Golner assentiu com a cabeça. — É claro. Vou mostrar-vos o que querem.
O biólogo conduziu Kurt através do laboratório, que parecia estar completamente deslocado no complexo de túneis. Estava bem iluminado e cheio de equipamento moderno, incluindo máquinas centrifugadoras, incubadoras e microscópios. O chão, paredes e teto estavam cobertos de plástico antissético brilhante, o que tornava o espaço mais fácil de esterilizar caso houvesse algum acidente. Mais ao fundo, chegaram a uma parede de vidro que separava uma sala isolada e estanque do restante laboratório.
Golner pôs uma mão junto ao puxador da porta e preparava-se já para teclar uma série de números.
— Cuidado — disse Kurt, pondo-se atrás dele e encostando-lhe a pistola às costas. — A não ser que consiga sobreviver sem o fígado.
O biólogo voltou a pôr as mãos no ar. — Não quero morrer…
— Isso faz de si o primeiro não-fanático que encontrei nestas aventuras.
Diante da sala isolada e estanque, Kurt olhou para Joe e Renata. — Dispam os guardas — disse ele. — Vistam as fardas deles. Tenho a impressão de que vamos sair deste sítio muito depressa, de modo que será melhor parecermos que somos nós quem manda aqui.
Eles concordaram com um gesto de cabeça e arrastaram Zia e os dois homens para um local menos conspícuo do laboratório.
Kurt voltou-se para o biólogo. — Agora, muito devagar.
O homem teclou o código e a porta abriu-se com um vago cicio. Ele entrou e Kurt seguiu-o.
Kurt assumira que iria encontrar prateleiras refrigeradas, iluminadas por detrás, cheias de pequeninos frascos de vidro e de tubos de ensaio, contendo talvez uma indicação de «risco biológico». Em vez disso, passaram por uma segunda porta e entraram numa outra grande sala dessa caverna, com um chão de terra batida. Estava ali um calor de morte e uma secura excessiva, devido a uma iluminação de lâmpadas vermelhas muito quentes. Parecia a superfície de Marte.
Na sala principal de controlo, longe do laboratório, Shakir, Hassan e Alberto Piola estavam diante de uma série de ecrãs de computador que cobriam uma parede inteira. Esses ecrãs mostravam a rede interconectada de estações de bombeamento, poços e condutas que retiravam a água do profundo aquífero e a despejavam no Nilo.
Numa outra parede, mapas, gráficos e diagramas representavam um outro projeto, um que tinha requerido que os homens de Shakir tivessem concebido esse labirinto de túneis em volta deles.
— Este lugar fascina-me — disse Piola. — Até onde vão os túneis?
— Não sabemos bem — respondeu Shakir. — Continuam bem para lá de qualquer espaço que já tivéssemos explorado. Os faraós tinham aqui as suas minas de ouro e de prata, e também de sal e natrão. Existem centenas de túneis que ainda não conseguimos explorar, já para não mencionar fissuras e salas por toda esta caverna.
Piola nunca ali estivera. Acreditara simplesmente no que Shakir lhe prometera, com uma grande ajuda em dinheiro. — E tudo isto estava inundado quando o descobriram?
— Os níveis mais baixos estavam — esclareceu Shakir. — Começámos a esvaziá-los e descobrimos velhos desenhos que indicavam que a água inundava este espaço periodicamente. Foi assim que encontrámos o aquífero. Aqui não está muito longe da superfície, mas afunda-se mais, em direção a oeste.
Os olhos de Piola tornaram-se mais vivos quando este se sentou para começar a falar de negócios. — Então este aquífero cobre todo o Saara?
— Até seria mais apropriado dizer que o Saara o cobre — comentou Shakir. — Mas a resposta é sim, até à fronteira de Marrocos.
— E como se poderá certificar de que as outras nações não o descobrem ou não começam a extrair água dele, escavando mais fundo do que o que têm feito até agora?
— A geologia torna-o difícil de localizar — esclareceu Shakir —, embora, eventualmente, o acabem por encontrar. — Encolheu então os ombros como se isso não importasse. — Por essa altura já os controlaremos. Vamos estar a dirigir e a governar um império que se estende do Mar Vermelho ao Atlântico. Até Marrocos cairá. Abarcarei todo o Norte de África, e vocês e os vossos amigos hão de ter acesso a tudo, por um preço justo, é claro.
— É claro — repetiu Piola, com um sorriso. Os seus interesses em várias companhias mineiras e numa exploração de petróleo não estavam em cima da mesa, mas tornar-se-iam imensamente lucrativos assim que os contratos começassem a aparecer.
— Para começar, como é que encontrou esta tumba? — perguntou ele. — Decerto os arqueólogos têm andado à procura de algo semelhante, pelo menos há mais de um século.
— Sem dúvida — disse Shakir. — Exceto que quase não existe qualquer informação acerca deste local. Nós viemos a sabê-lo apenas depois de um arqueólogo na Direção das Antiguidades nos ter trazido vários fragmentos de papiro. Isso levou-nos a procurar artigos que tinham sido retirados pelos franceses e pelos britânicos, mas a verdadeira chave foi encontrada no fundo da Baía de Abukir. Relatou-nos de que modo Aquenáton trazia os corpos dos velhos faraós dos seus sarcófagos e os levava para novos locais, onde estes poderiam ser iluminados pelo Sol nascente, algo que os sacerdotes de Osíris consideravam uma abominação. Mas ganharam vantagem sobre Aquenáton, roubando os sarcófagos de doze reis, que estavam numa câmara funerária, e trazendo-os para aqui, antes que os devotos de Aquenáton os pudessem alcançar.
— E como é que descobriu a Névoa Negra?
— As placas da Baía da Abukir trouxeram-nos até aqui — continuou Shakir. — Os escritos que encontrámos conduziram-nos aos segredos da Névoa. Contaram-nos de que modo os sacerdotes de Osíris iam de barco, uma vez por ano, até ao Reino de Punt para recolherem o que precisavam para fazer essa poção. É claro que tivemos de a modificar, mas isso contribuiu para que pudéssemos aperfeiçoar a fórmula.
— Que é…
Shakir riu-se. — Ainda bem que não lhe disse, Alberto, caso contrário teria de o atirar aos crocodilos.
Piola levantou uma mão. — Não se apoquente. Espero apenas que a sua demonstração tivesse sido o suficiente para convencer os nossos amigos de que resistir só lhes servirá para que morram mais depressa.
— Pois é — disse Shakir, com um tom confidencial. — No entanto a questão é: que acontece a seguir? A Líbia é frágil. Seria uma grande ajuda se pudessem, através de um voto no vosso parlamento, transformar a Líbia num protetorado, logo que esta se desmorone. Uma operação ítalo-egípcia permitir-nos-ia fazer cumprir a ordem.
— Precisamos de mais votos — disse Piola. — Não os poderei arranjar se não tiver nada para oferecer. Preciso de outro carregamento da Névoa para substituir o que foi destruído em Lampedusa. Se pudermos apertar mais dez ministros, teremos então o voto. Quem sabe se até nem poderemos formar um novo governo em que eu seria primeiro-ministro?
Hassan apressou-se a relatar-lhe: — Estamos a preparar neste momento uma nova remessa, mas não nos adiantará de nada se os líbios recusarem a nossa ajuda. Apesar de estarem quase a desequilibrar-se, recusam-se a cair.
Shakir acenou afirmativamente com a cabeça. — Temos de lhes fazer as vidas ainda mais negras.
— E será que podem? — perguntou Piola. — Segundo sei, as principais nascentes de água foram fechadas, mas algumas das estações mais pequenas ainda abastecem algumas populações, mantendo as bombas a trabalhar continuamente e não uma vez por outra. Dentro de vinte e quatro horas, os líbios não terão sequer um copo de água para beber, muito menos uma quantidade que lhes permita lutar por ela.
— Isso há de dar cabo deles — concordou Piola.
Hassan era da mesma opinião. — E dar-nos-á uma desculpa para os invadirmos. Será ótimo, sobretudo se os nossos soldados forem vistos como aqueles que trazem água para as famílias mais sequiosas, em vez de entrarem de rompante de armas em riste.
Shakir concordou. Morreriam mais alguns milhares. Talvez dezenas de milhares. Porém, o resultado final seria o mesmo. O Egito controlaria a Líbia. Os procuradores egípcios controlariam a Argélia e a Tunísia, e Shakir controlá-los-ia a todos.
— Então concordam — disse Piola. — Nesse caso, partirei imediatamente para Itália.
Antes que tivessem dito mais alguma coisa, um telefone fixo começou a tocar. Hassan foi atender. Falou com brevidade e depois desligou o telefone. O seu rosto revelava preocupação.
— Eram os seguranças da central hidroelétrica — disse ele. — Alguém conseguiu lá entrar. Têm estado à procura de um intruso mas sem sucesso. No entanto, descobriram que falta uma das carruagens. Encontraram-na no túnel, a trinta metros do ponto de acesso de Anúbis.
Shakir franziu os lábios. — O que quer dizer que eles não têm um assaltante, nós é que temos.
Kurt começou a caminhar na paisagem marciana, suportando as ondas de calor que vinham das lâmpadas.
— Esta é a nossa incubadora — disse Golner.
— Uma incubadora de quê? — De facto, ao olhar em volta, tudo o que ele via era chão seco, com centenas de pequenos montículos que dele sobressaíam, formando uma espécie de padrão geométrico. — Que estão vocês a criar aqui?
— Nada está a ser criado — esclareceu o biólogo. — Estão a dormir, a hibernar…
— Mostre-me.
Golner conduziu Kurt a uma parte da divisão, saiu do caminho e acocorou-se ao lado de um dos pequenos montículos. Com uma colher de jardim, sacudiu a terra solta e retirou um bocado de terra do tamanho de uma bola de basebol. Começou a escovar o solo dessa esfera e depois começou a retirar-lhe uma camada.
Kurt, até certo ponto, estava à espera de ver uma criatura alienígena a contorcer-se. Mas, logo que a camada exterior foi removida, revelou um sapo inchado e semimumificado.
— Trata-se de um sapo africano — explicou o biólogo. — Apenas adormecido, a hibernar, como lhe disse.
Kurt considerou a afirmação. Nos climas mais frios, as coisas hibernavam no inverno, mas, em África, ficar adormecido era um modo de poder sobreviver às secas. — Hibernar — repetiu Kurt — porque o enterrou na lama e aqueceu o ambiente?
— Sim, é isso mesmo. O calor em excesso e a falta de humidade fazem com que os sapos iniciem um mecanismo de sobrevivência. Enterram-se na lama e fazem com que lhes cresçam camadas extra de pele, que secam e os mantêm como que num casulo. Os corpos ficam adormecidos, os corações param virtualmente de bater e ficam como se estivessem numa tumba, apenas com as narinas desimpedidas para poderem respirar.
Kurt estava atónito — É daqui que vem a Névoa Negra? Dos sapos adormecidos?
— Receio bem que sim.
— Mas, como é que funciona?
— Em resposta às condições de seca — começou Golner a explicar —, as glândulas nos corpos destes sapos produzem um cocktail de enzimas, uma mistura completa de químicos que despoletam um adormecimento ao nível das células. Só a parte mais primitiva do cérebro se mantém ativa.
— Como um cérebro humano num estado comatoso.
— Sim — esclareceu o biólogo. — É quase idêntico.
— De modo que o senhor e a sua equipa extraíram esse cocktail químico dos sapos africanos e modificaram-no para que pudesse funcionar na biologia humana.
— Ajustámos os químicos para sermos eficazes com espécies maiores — disse Golden. — Infelizmente isso limita o prazo de validade. Se for congelada a temperaturas abaixo de zero, poderá manter-se indefinidamente. No entanto, à temperatura ambiente, tornar-se-á inerte num espaço de oito horas. Quando libertada no ar, dissipar-se-á dentro de duas a três horas, decompondo-se em simples compostos orgânicos.
— Foi por isso que não encontraram qualquer réstia dessa substância em Lampedusa — observou Kurt.
Golner assentiu com a cabeça.
— É uma arma com uma vida muito curta — assinalou Kurt.
— Nunca deveria ter sido uma arma, sobretudo a princípio. Era um tratamento, um modo de salvar vidas.
Kurt não acreditava nisso, mas deixou que o indivíduo lhe explicasse. — Mas como?
— Os médicos usam muitas vezes comas medicamente induzidos, para vítimas de traumas, para pessoas queimadas e para outras que sofreram graves lesões. É um modo de permitir que o corpo se cure. Mas esses fármacos são muito perigosos, pois danificam os rins e o fígado. Este novo remédio seria natural, logo, não causaria os mesmos danos.
Ele parecia estar a acreditar no que dizia e, ao mesmo tempo, a tentar convencer-se a si mesmo.
— Detesto dizê-lo, mas creio que o senhor foi enganado.
— Bem sei — respondeu Golner. — De qualquer modo, eu deveria ter sabido. Eles continuaram a fazer-me perguntas acerca de métodos de administração. Se poderia ser dissolvido em água, se poderia ser anulado pelo ar… Não havia quaisquer razões médicas para fazer tais perguntas. Só as armas precisariam de ser distribuídas desse modo.
— Assim sendo, por que razão se manteve então a trabalhar nestas coisas?
— Alguns dos outros que começaram a questionar tudo isto não tardaram a desaparecer — explicou Golner.
Kurt percebeu. — Já vi como o Shakir trata aqueles que o contrariam. Espero poder pôr um fim a tudo isso.
— Não será assim tão fácil — observou Golner, com tristeza. — Em breve todo o processo será automatizado e eles nem sequer irão precisar de mim. — Voltou a colocar o sapo no seu buraco. — Venha comigo.
Entraram num outro compartimento isolado que era um laboratório de pesquisa típico. Limpo, escuro e tranquilo, cheio de frigoríficos e mesas de laboratório sobre as quais havia pequenas centrifugadoras que não paravam de rodar.
Brad Golner olhou para a primeira e depois para a segunda. — A nova remessa ainda não está pronta — disse ele, indo da que estava a ser centrifugada até aos frigoríficos. Abriu uma porta e libertou-se um vapor gelado. Enfiando a mão, retirou alguns tubos de ensaio de um congelador, pô-los numa caixa de esferovite e depois colocou-lhe sacos de gelo em volta.
— Têm cerca de oito horas até isto aquecer até uma temperatura crítica. Depois disso, perde toda a sua eficácia.
— Como o poderemos usar? — perguntou Kurt.
— Que quer dizer com usar?
— Sim, para reanimar as pessoas de Lampedusa — explicou Kurt. — Aquelas que o Shakir pôs em coma.
Golner abanou a cabeça. — Não — disse ele, com uma certa premência. — Isto não é o antídoto, é a Névoa Negra.
— Mas o que eu preciso é do antídoto — admitiu Kurt. — Estou a tentar despertar as pessoas; não pô-las a dormir.
— Isso não é fabricado aqui — explicou o biólogo. — Não nos permitem fazê-lo. Senão iríamos saber de mais e, na visão deles, tornar-nos-íamos uma ameaça.
Um outro modo como Shakir mantinha as pessoas inseguras e subservientes, pensou Kurt. — E sabe o que é?
Golner voltou a abanar a cabeça.
— Poderá não saber — insistiu Kurt —, mas, decerto, deverá ter uma ideia.
— Teria de ser uma forma de…
Antes que o biólogo pudesse ter acabado a frase, a porta por detrás deles abriu-se. A luz vermelha da incubadora, que parecia Marte, espalhou-se pelo local de armazenamento. Kurt sabia que não poderiam ser Joe nem Renata. Encostou-se imediatamente a um canto, agarrando em Golner para que este também não fosse visto.
Mas foi um pouco lento de mais. Ouviram-se alguns tiros. Uma bala passou de raspão pelo braço de Kurt, mas as outras duas acertaram em cheio no peito do biólogo.
Kurt escondeu-o por detrás de uma das mesas de centrifugação. Ele mal respirava. Parecia estar a tentar dizer qualquer coisa. Kurt inclinou-se um pouco mais.
— … as peles… postas numa caixa hermeticamente selada… recolhidas cada três dias… — Golner ficou tenso como se uma nova guinada de dor o tivesse atingido, depois descontraiu-se e o corpo ficou imóvel.
— Kurt Austin — ribombou uma voz muito alta desde a porta.
Kurt permaneceu ali, atrás da mesa. Estava fora de vista, mas os armários de madeira fina não iriam impedir que uma bala lhe pudesse acertar. Estava à espera de ser alvejado a qualquer momento, mas não foi isso que aconteceu. Talvez os homens não quisessem um tiroteio no meio de um laboratório cheio de toxinas.
— Tem-me a mim em desvantagem — disse-lhe Kurt.
— E será aí que irá permanecer — retorquiu a mesma voz.
Kurt olhou para lá da esquina da mesa e viu um trio de silhuetas à porta. Pensou que a do centro seria Shakir, mas com a luz vermelha da incubadora a iluminá-los por detrás, os três homens pareciam mais o diabo e os seus acólitos, vindos para cobrar o pagamento de uma longa dívida.