—Então você deve ser o grande Shakir — disse Kurt, elevando a voz.
— O grande? — retorquiu o seu adversário. — Hum… Sim… Gosto do modo como isso soa.
Kurt ainda não o conseguia ver nitidamente, apenas o facto de ele ser alto e magro e estar rodeado por dois homens com espingardas.
— Já se pode levantar — disse-lhe Shakir.
— É melhor não — respondeu Kurt. — Torna-me um alvo demasiado fácil.
Kurt ainda tinha a pistola, mas estava estendido no chão e, com pelo menos duas armas apontadas, não poderia ganhar um tiroteio, mesmo que conseguisse disparar uma ou duas vezes.
— Confie em mim — disse-lhe o homem. — Podemos alvejá-lo, sem qualquer problema, aí onde se encontra. Vamos, atire-nos a pistola e comece a pôr-se de pé devagarinho.
Simulando que estava a pegar na arma, Kurt fez deslizar a caixa térmica com os tubos de ensaio para dentro da sua bolsa impermeável, e fechou-a. Quando ergueu a mão, para que todos pudessem ver, tinha a pistola bem agarrada. Pô-la no chão de cimento e empurrou-a através do espaço. Esta deslizou facilmente, parando apenas quando Shakir a travou com uma bota.
— De pé — insistiu Shakir, com um gesto da mão.
Kurt levantou-se, sem saber bem por que motivo o bandido não o baleara. Talvez quisesse saber como é que ele descobrira aquele lugar.
— Onde estão os seus amigos? — perguntou Shakir.
— Amigos? — respondeu Kurt. — Não tenho amigos. De facto é uma história triste. Tudo começou quando eu era pequeno…
— Sabemos bem que veio para aqui com mais duas pessoas — observou Shakir, interrompendo-lhe o discurso. — Os mesmos dois com quem tem vindo a trabalhar há já algum tempo.
Na verdade, Kurt não tinha a mínima ideia onde Joe e Renata poderiam estar. Estava contente por saber que o sujeito não os tinha apanhado. Eles deviam ter visto ou ouvido algo perigoso, e ter-se escondido algures. Mas caso estivessem a seguir ordens ou a fugir para um local seguro, Kurt queria manter Shakir longe do rasto deles. — A última vez que os vi, andavam à procura de uma casa de banho. Tinham bebido muito café e, com certeza, deve saber como isso é.
Shakir voltou-se para o homem à sua esquerda. — Vai ver o funcionamento das bombas, Hassan — disse ele. — Não quero nenhum tipo de interferências.
— Ah, pois… — continuou Kurt. — O senhor e as suas bombas. Ótima ideia fingir que tem uma central hidroelétrica e usá-la para o que tem andado a fazer. Mas creia que não irá funcionar por muito tempo. Qualquer pessoa com dois dedos de testa e um conhecimento básico de engenharia pode olhar para o canal e ver que há mais água a sair do que a entrar.
— E, no entanto, ainda ninguém nos fez perguntas, e até mesmo você acabou por descobri-lo há pouco tempo.
Kurt encolheu os ombros. — Eu disse alguém com dois dedos de testa. Há outros por aí bastante mais espertos do que eu…
Shakir fez um gesto para que ele avançasse. — Não faz mal — disse ele. — Em breve tudo irá acabar e então esse esvaziamento de água irá ter um fim. A hidroelétrica irá finalmente desempenhar a sua verdadeira função e ninguém irá saber que as coisas se passaram de modo diferente. Mas, por essa altura, já você estará morto há muito tempo e a Líbia, tal como o resto do Norte de África, fará parte dos meus domínios.
Kurt aproximou-se com uma certa relutância.
— Mãos…
Kurt baixou as mãos e juntou os pulsos. Shakir fez um gesto para que Hassan as atasse e este avançou, fazendo-o com uma fita de plástico com um nó corredio muito apertado.
— Por que está a fazer tudo isto? — perguntou Kurt, enquanto o conduziam pela sala da incubadora.
— É uma questão de poder — explicou Shakir. — Estabilidade. Tendo-a mantido durante décadas e tendo visto o caos que uma ausência de poder pode causar, eu, e outros como eu, decidimos pôr as coisas em ordem. Deveria estar agradecido pelo facto de que o seu país possa preferir lidar comigo, e aqueles que são responsáveis perante mim, em vez de com um grupo de fações quezilentas. Será muito mais fácil assim conseguir despachar trabalho.
— Trabalho? — ripostou Kurt, à medida que se aproximavam da sala isolada e estanque. — Acha que é trabalho matar cinco mil pessoas em Lampedusa? Ou deixar que milhares de líbios, que não têm nada a ver consigo, morram de sede ou na violência de outra guerra civil?
— Lampedusa foi um infeliz acidente — disse ele. — Sobretudo porque, infelizmente, o trouxe até ao meu mundo. Quanto à Líbia, as mortes em massa vão trazer-nos um certo ímpeto. Quanto pior ficar a situação, mais depressa irá mudar. No entanto, a História sempre exigiu um derramamento de sangue — regozijou-se Shakir. — É como óleo nas rodas do progresso.
Já tinham franqueado a porta da sala isolada e estanque. Vários guardas adicionais esperavam-nos do outro lado com os seus uniformes negros. Um deles avançou, agarrou Kurt pelos pulsos, e empurrou-o para o fundo de um veículo todo-o-terreno. Havia dois guardas no assento da frente.
— Levem-no para o…
As palavras de Shakir desapareceram devido ao ronco súbito, quando o guarda, no assento do condutor, rodou a chave, aquecendo o motor e carregando no acelerador.
Os pneus derraparam e Kurt quase caiu do veículo.
Este seguiu a toda a brida em direção ao túnel, deixando para trás um grupo chocado.
— São eles! — ouviu Kurt alguém a gritar.
Tiros ecoaram pela caverna e faíscas voaram pelas paredes quando as balas falharam o alvo. Kurt tentou segurar-se, tentando fazer-se mais pequeno enquanto o tiroteio continuava, até terem dobrado a esquina seguinte.
Olhou para a frente e viu Joe e Renata vestidos com os uniformes que eles tinham retirado aos capangas de Shakir. Renata escondera o cabelo por baixo do boné.
— Que tal esta operação de resgate? — gritou Joe.
— É uma maneira fantástica de começarmos — disse Kurt, enquanto eles seguiam pelo túnel a toda a velocidade.
E foi, de facto, apenas um começo. Porque, alguns segundos mais tarde, as luzes dos faróis de um veículo todo-o-terreno idêntico começaram a persegui-los sofregamente por esse mesmo túnel.
— Agarrem-se rapazes! — gritou Renata. — Estou a mostrar-lhes de que modo guiamos nas montanhas de Itália.
Ela tinha um pé pesado no acelerador e mãos rápidas no volante. Levou o veículo a derrapar numa curva, quase embatendo contra a parede, e depois através de outra curva, antes de encontrarem caminho em linha reta.
Os carros que os seguiam eram guiados com mais cuidado e, quando chegaram ao novo túnel, tinham perdido bastante terreno. A resposta foi mais tiros.
Kurt baixou-se, mas a trepidante viagem dificultava por completo a pontaria. Mesmo assim, sem um tiro certeiro, continuariam a estar em segurança.
— Como é que vocês conseguiram? — perguntou Kurt. — Pensei que se tinham ido embora.
— Estávamos a mudar de roupa quando ouvi um barulho — disse Joe. — Quando olhei, esse sujeito, o Shakir, estava a dar ordens a todos os tipos de fardas negras. De modo que nos tentámos adaptar…
— Genial — disse Kurt. — Creio que volto a estar em dívida para contigo.
Continuavam agora a toda a velocidade pelo túnel estreito, com as paredes muito próximas de ambos os lados. Um grande alto no caminho fez com que o veículo levantasse voo durante um segundo e batesse com a barra de rolagem no teto.
Segundos depois, chegaram a um sítio sem saída. — Atenção!
Renata travou a fundo e derrapou até ter parado. Pôs o veículo em marcha-atrás e continuou, a grande velocidade, em direção aos seus perseguidores, antes de virar para um túnel lateral que ela vira ao passar. Voltou a travar, fez girar o volante e voltou a acelerar. O veículo entrou de rompante no novo túnel e começou a descer por um chão de cascalho.
Tratava-se de uma enorme sala, que tinha sido usada pelos mineiros durante décadas. Mas esta também não tinha saída.
— Temos de voltar a subir — gritou Renata quando os faróis revelaram uma parede lisa. Ela conseguiu inverter a marcha, no momento em que os outros veículos se começavam a tornar mais visíveis à entrada.
— Nunca iremos conseguir sair — observou Joe.
Renata desviou-se para o lado e apagou os faróis. Manteve-se parada quando o primeiro veículo ali chegou e começou a descer o caminho inclinado de cascalho. As luzes dos faróis deslizaram diante deles, e Renata, Kurt e Joe permaneceram no escuro.
Seguiu-se o segundo veículo. Assim que houve espaço, Renata voltou a pôr o pé no acelerador e dirigiu-se para a saída. Já a meio da rampa, voltou a ligar os faróis.
A caixa de mudanças roncou de protesto, enquanto os pneus rodavam sobre si mesmos e só a custo conseguiam avançar. Voltaram a entrar no túnel e tentaram seguir o caminho que os levara até aí.
Contudo, os veículos que os perseguiam não desistiam, emergindo rapidamente e ficando outra vez a curta distância.
— Joe, vê se me cortas estas fitas — pediu Kurt.
Joe estendeu uma mão para agarrar nos braços de Kurt, para depois, com uma faca, conseguir cortar as fitas de plástico. Kurt ficou finalmente liberto.
Abriu o fecho da bolsa impermeável, na parte da frente do seu fato de mergulhador, para abrir a caixa com os tubos de ensaio, retirando de lá um dos tubos.
— Isso é o que eu estou a pensar? — perguntou Joe.
— Névoa Negra — disse Kurt.
Ouviram-se mais tiros na direção deles.
— Então e agora? — perguntou Joe.
— É já tempo de o grupo que nos está a perseguir ir dormir uma boa soneca.
Kurt atirou o tubo contra uma parede, tanto quanto possível para longe do veículo onde se encontravam. O tubo partiu-se logo, espalhando o conteúdo através do túnel, fazendo com que o brilho dos faróis dos veículos que os perseguiam se esbatesse por momentos.
Os seus perseguidores tinham acabado de atravessar a Névoa quando o veículo dianteiro se despistou e foi contra uma parede. Fez ricochete e, em seguida, ficou deitado de lado. O segundo veículo foi contra ele e os homens saltaram dos assentos e espalharam-se pelo túnel. Não se levantaram.
Renata manteve o acelerador a fundo e não demorou até que o desastre tivesse ficado bastante para trás.
— Uma coisa afinal bastante útil — comentou Joe.
— Mas não a podemos usar mais — respondeu Kurt. — Temos de levar esta substância até ao laboratório para ser analisada.
— É por isso que está acondicionada com gelo?
— O fulano disse-me que tínhamos oito horas, após as quais se começaria a degenerar.
— Isso foi muito simpático da parte dele — disse Joe.
— Ele não era mau tipo — observou Kurt. — Estava apenas cheio de trabalho.
Um pouco mais adiante, o túnel dividiu-se em dois. Podiam ver-se luzes de faróis a brilharem após uma curva à esquerda. — Há sempre tráfego quando estamos com pressa — observou Renata. Ela voltou à direita. Esse túnel era a subir, depois, dividiu-se uma vez mais e eles entraram num muito mais largo. Ela continuou e encontrou outras ramificações, umas que subiam e outras que desciam.
— Este deve ser o túnel central — disse Joe.
— Sugiro que continuemos a subir sempre que possível — referiu Kurt. — Terá de haver algures uma saída para esta mina.
— Acham que deveríamos voltar à enorme conduta? — perguntou Renata.
— Agora vai estar altamente vigiada — respondeu Kurt. — Ou encontramos outra maneira de sair, ou então passaremos aqui uma eternidade como os faraós, os crocodilos e os sapos.