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Algures sobre o Mar Mediterrâneo

A partida de Bengasi de Paul e Gamay atrasou-se quase vinte e quatro horas, quando o aeroporto foi encerrado devido à violência crescente. Os pilotos estavam com tanta vontade de partir como os Trout. O avião já estava cheio de combustível e pronto para levantar voo à hora marcada. Estava agora a sobrevoar o Mediterrâneo, a uma altitude de onze mil metros.

O Challenger 650 tinha uma cabina espaçosa, apesar de ser um jato executivo, uma característica que fazia com que parecesse muito baixo em terra, mas que se revelava uma bênção para pessoas altas como Paul.

— Prefiro voar aqui do que naquele DC-3 a cair aos bocados — comentou ele.

— Não sei — respondeu Gamay. — Aquele velho avião tinha um tipo de encanto rústico.

— Seria mais um encanto enferrujado… — corrigiu ele.

Sentados em frente um do outro em assentos de cor creme, Gamay e Paul tinham os pés em cima de uma espessa carpete, que era suficientemente macia para que pudessem tirar os sapatos.

Abriram os seus computadores portáteis, pousando-os nas mesinhas usadas para as refeições, e tentaram ligar-se ao website encriptado da NUMA.

— Eu encarrego-me da história de Villeneuve — disse Paul —, de ver se encontro algum repositório dos seus pertences, ou alguma pista sobre o que ele poderia ter feito com os papéis que D’Campion lhe enviou.

Ela acenou afirmativamente com a cabeça. — E eu vou trabalhar na correspondência entre os dois homens, que o Kurt conseguiu descarregar do website da NUMA. Espero lembrar-me bem do meu francês da universidade; se não conseguir, terei de usar o programa de tradução.

O silêncio da cabina e o voo de três horas deu-lhes tempo para despacharem muito trabalho. A meio caminho já Gamay decidira pôr as pernas por baixo de si no assento e apanhar o cabelo atrás, ficando com o aspeto de uma rapariga que se estivesse a preparar para os exames.

Paul levantou os olhos do computador. — Para um homem que viveu uma vida tão interessante e que desempenhou um papel tão importante na História, não há muita informação sobre o almirante Villeneuve.

— Que é que descobriste?

— Que era descendente de uma família de aristocratas — respondeu Paul. — De acordo com a lógica, deveria ter ido para a guilhotina como a Maria Antonieta e os outros. Mas, aparentemente, apoiou a Revolução desde o princípio e permitiram-lhe manter o seu cargo na Marinha Francesa.

— Quem sabe se ele não seria um sedutor — sugeriu ela.

— Deveria tê-lo sido. Após o desastre na Baía de Abukir, foi capturado pelos britânicos, reenviado para França e acusado de cobardia. E, no entanto, apesar de tudo, Napoleão defendia-o. Chamou a Villeneuve um homem de sorte. Em vez de um tribunal militar, o aristocrata acabou por ser promovido a vice-almirante.

Gamay recostou-se melhor no assento. — Uma surpreendente reviravolta do destino…

— Especialmente se considerarmos que ele deixou Napoleão mal visto no Egito, e que a sua derrota acabou por ser inevitável.

— Já tenho pensado se a sua sorte não terá a ver com esta «arma» — observou Gamay. — Não sei se sabes, mas a Baía de Abukir é junto da cidade de Roseta. Encontrei, nas cartas de D’Campion, várias referências a artefactos que retiraram de lá. Alguns deles parecem apresentar inscrições trilingues, como a própria Pedra de Roseta. Uma das primeiras tentativas de tradução de D’Campion menciona os poderes de Osíris de retirar a vida para a voltar a dar. E se Villeneuve estivesse a prometer esta arma a Napoleão logo após a sua descoberta?

Paul considerou a hipótese. — Sempre a prometer. A ser promovido a vice-almirante e depois a conduzir a frota para outro desastre, antes de voltar para Napoleão, uma vez mais, para lhe dizer que, por fim, tinha feito mais um avanço.

— Era como o menino que estava sempre a dizer que vinha aí o lobo — sugeriu Gamay.

— Mas por essa altura, talvez Napoleão já não estivesse disposto a dar-lhe ouvidos.

Gamay assentiu com a cabeça. — Mas Villeneuve não conseguia parar. As suas cartas falam de destino e desespero, de uma oportunidade de reescrever a sua história pessoal. No entanto, se virmos a última carta do ficheiro de D’Campion, Villeneuve já se expressa com mais receio: pensa que Napoleão já não acredita do mesmo modo no que ele diz.

— Quando é que ele enviou essa carta?

— A dezanove de Germinal do ano XVI — disse ela. — De acordo com o computador, será… 9 de abril de 1806. Menos de duas semanas antes de ter sido morto.

— Napoleão era conhecido pelas suas ações impetuosas — acrescentou Paul — e pelo seu desdém absoluto por alguém ou por qualquer coisa que o tentasse controlar. Quando a invasão de Inglaterra foi cancelada, ele decidiu marchar para leste e invadir a Rússia, só para ter algo a conquistar. É claro que isso acabou por ser um desastre. Mas Villeneuve, com essa arma sobre a sua cabeça, parece-me tratar-se de uma coisa que Napoleão apenas poderia suportar durante um certo tempo.

Ela olhou para o relógio. — Estamos quase a aterrar. Tens alguma ideia por onde deveremos começar?

Paul suspirou. — Não existe nenhuma biblioteca com o espólio de Villeneuve, nem um museu ou um monumento em sua memória. A única coisa que consegui encontrar são uns quantos recortes de jornal, de há vinte anos, que se referem a uma mulher chamada Camila Duchêne. Ela tentou vender alguns desses documentos e obras de arte que diz ter descoberto na casa de família, obras que, alegadamente, pertenciam a Villeneuve e a um outro nobre.

— E que lhes aconteceu? — perguntou Gamay.

— Foram identificadas como fraudes — esclareceu Paul. — Villeneuve não era conhecido como artista. Mas, o que é bastante interessante, os seus antepassados eram donos de uma casa de hóspedes onde Villeneuve estava a viver algumas semanas antes da sua morte.

Antes que mais alguma coisa pudesse ter sido dita, o ruído dos motores mudou e a aeronave começou a descer. Ouviu-se a voz do piloto através dos altifalantes: — Estamos a aproximar-nos de Rennes, onde iremos aterrar dentro de aproximadamente quinze minutos.

— Isso dá-nos um quarto de hora para descobrirmos alguma pista acerca de Madame Duchêne — sugeriu Paul.

— Era precisamente nisso que eu estava a pensar.