56

—Quem são vocês? — perguntou Paul.

— Pode chamar-me Escorpião — respondeu o homem.

Ele parecia orgulhoso do seu nome. Paul não conseguia imaginar porquê.

— Como é que nos encontraram? — Paul deu-se conta de que uma pergunta dessas não iria adiantar muito, mas estava a tentar fazer render o tempo. Nunca antes vira esse tal Escorpião. Embora pudesse adivinhar para quem ele trabalhava, parecia-lhe impossível que aqueles homens conseguissem ter sabido onde ele e Gamay se encontravam.

— Temos o diário de D’Campion — disse o Escorpião. — Ele mencionou Villeneuve muitas vezes. A partir daí foi fácil escolher Rennes e encontrar Camila Duchêne.

— Se lhe fizeram mal… — ameaçou Gamay.

— Felizmente para ela, vocês chegaram antes de nós. Fazia mais sentido que viéssemos à vossa procura do que atormentar uma idosa. Bem, para cá com o dossiê das cartas.

Paul e Gamay trocaram um olhar triste. Havia muito pouco que eles pudessem fazer. Paul pôs-se à frente da sua mulher, permitindo assim que esta pudesse esconder o canivete, embora ela nada pudesse fazer contra as lâminas de vinte centímetros que os homens empunhavam.

— Aqui está — disse ele, fechando o dossiê e empurrando-o na direção deles. Este deslizou sobre o tampo polido da mesa para ficar junto do Escorpião que o agarrou, lhe deu uma vista de olhos, e depois o colocou debaixo do braço.

— Porque não se vão embora antes que chegue a polícia? — sugeriu Gamay.

— Não há quaisquer polícias a caminho — assegurou-a o Escorpião.

— Nunca se sabe — arriscou Paul. — Alguém vos poderia ter visto…

— Que estavam vocês a fazer com essa pintura? — perguntou o Escorpião, colocando-se à frente de Paul.

— Nada — disse Paul. Porém, no momento em que o disse, soube logo que falara depressa de mais. Ele nunca saberia mentir apropriadamente.

— Mostre-ma.

Paul respirou fundo e dirigiu a mão para a prateleira. Ao retirar o caixilho, deu-se conta de que pegara na obra de arte errada. Tratava-se do navio de guerra. Talvez isso fosse uma coisa boa, pensou.

Ao pô-la em cima da mesa para a empurrar até ao Escorpião, Paul deu-se conta de que tinha agora uma arma do seu lado. Contorceu o corpo e atirou a pintura como quem atira um disco de plástico. Esta acertou no estômago do seu oponente, fazendo com que ele se dobrasse.

A seguir a esse ataque, Paul avançou bruscamente, pontapeando o homem enquanto ele estava dobrado. — Corre! — gritou ele para Gamay.

O tamanho enorme de Paul tinha muitas vantagens e desvantagens. Devido à sua altura, raramente andara ao murro. Poucas pessoas escolheriam um homem com um metro e noventa para andarem à luta. Por isso, os combates corpo a corpo não eram a sua especialidade.

Por outro lado, quando recorria ao seu peso, poderia dar um forte murro ou um bom empurrão. O pontapé que dera no Escorpião fez com que este rolasse para trás e fosse de encontro aos seus dois amigos. Os três pareceram particularmente surpreendidos pelo assalto, e um pouco inseguros quanto aos melhores métodos para atacar aquele homem zangado e corpulento.

Paul não deu azo a que eles o descobrissem. Voltou-se e começou a correr na direção contrária. Conseguiu chegar a uma esquina e viu Gamay a correr em direção a uma porta mais adiante.

— Agarrem-no! — gritou o Escorpião.

Paul conseguiu alcançar Gamay quando ela já estava com a mão na porta. Só nessa altura se deu conta de que ela tinha a pintura do barco a remos.

— Pensei que te estavas a mexer mais devagar do que o normal — disse ele.

— Tinha de ter o quadro — confessou ela, no seu melhor sotaque de alta sociedade.

— Oxalá possamos ficar com ele — disse Paul, abrindo a porta.

Tinham chegado a umas escadas que serviam de saída em caso de incêndio, segundo lhes pareceu. Paul abriu a pesada porta de metal.

— Para cima ou para baixo? — perguntou Gamay.

— Creio que, se descermos, vamos para a cave. Sigamos antes para cima.

Apressaram-se a subir, chegaram ao piso seguinte e tentaram a porta. Estava trancada.

— Continua a subir — gritou Paul.

Continuaram, incentivados pelo som da porta no andar de baixo a abrir-se.

Ao lado de um letreiro onde se lia L3, Gamay empurrou uma porta.

— Também está trancada — constatou ela. — Estas portas não deveriam estar sempre abertas?

Subiram mais um andar e viram luz a entrar por uma janela. — Estamos no telhado — disse Gamay.

Paul tentou abrir a porta que, mais uma vez, também estava trancada. Gamay reagiu usando o caixilho da pintura para partir os vidros da janela. Depois de ter retirado os vidros, entrou por aí.

Paul seguiu-a e começou a rolar pelo telhado do museu. Uma pequena parte em volta deles era plana e alcatroada, mas o resto tinha telhas muito inclinadas. — Tem de haver outra forma de chegarmos lá abaixo.

Do outro lado da parte com telhas havia outro sítio plano, com uma casota em cima. Era em tudo igual à da escada de onde tinham saído. — Por ali — disse ele.

Gamay foi a primeira a ir para lá, enquanto Paul olhava em volta em busca de algo com que pudesse improvisar uma arma. Não viu nada e apressou-se a segui-la. O telhado verde era muito inclinado de ambos os lados, as telhas estavam húmidas e polidas após décadas de chuva.

Atravessaram a secção central, deram um salto para a parte plana e alcatroada e correram para a porta. Estava fechada à chave, mas depressa conseguiram partir as vidraças da janela.

Por detrás deles, os seus perseguidores já estavam no telhado.

— Vai tu — disse Paul. — Eu vou ver se os empato.

— Discordo — disse Gamay. — Lá dentro conseguiste lutar muito bem, mas ambos sabemos que tu não és nenhuma versão gigante do Bruce Lee. É melhor ficarmos juntos.

— Está bem — concordou Paul. — Mas temos de ser rápidos.

Ela deu-lhe a pintura, pôs as mãos no parapeito da janela e começou a gritar. Quando Paul se voltou, viu que alguém que se encontrava lá dentro a tinha agarrado pelos braços e que a estava a tentar arrastar para dentro da casota. Ele agarrou-a pelas pernas e puxou-a. Essa espécie de jogo da corda durou um segundo e Gamay voou para trás a grande velocidade. Via-se que tinha sangue na boca.

— Estás bem? — perguntou Paul.

— Lembra-me que tenho de apanhar uma injeção antitetânica assim que chegarmos aos Estados Unidos.

— Mas isso é só se fores mordida — observou Paul. — Não se fores tu a morder.

— Então esquece — disse ela.

Estavam agora encurralados. Paul pegou num pedaço de telha, mas isso não era, de modo algum, uma boa arma. O homem no interior da segunda escadaria começou a dar fortes empurrões à porta.

— E agora?

— Existe o canal — retorquiu Paul. — Vamos saltar.

Foram novamente para a parte com as telhas, mas, dessa vez, desceram um pouco mais. Gamay tinha o equilíbrio de uma cabra montesa, mas Paul sentiu que a sua altura era agora um contratempo. Verificava que era difícil manter-se suficientemente baixo sem tombar para a frente.

Começou a deslizar de costas pelo telhado abaixo. Gamay fez o mesmo e, em breve, já estavam no beiral. Encontravam-se agora a uma altura de quatro andares com um intervalo de dois metros que teriam de cobrir.

Paul observou: — A distância até lá abaixo é bem maior do que eu pensei.

— Não me parece que tenhamos outra escolha — disse Gamay.

— Talvez eles tenham receio de nos seguir.

Atrás deles os homens já estavam a posicionar-se em cima das telhas. — Não me parece que seja esse o caso. Vai tu primeiro.

Gamay atirou a pintura para baixo. Esta foi cair na passagem de pedra, ao lado do canal.

— Deem-nos a pintura — gritou um dos seus perseguidores. — É a única coisa que queremos.

— Agora é que ele nos está a dizer isso… — observou Gamay.

— Estás pronta? — perguntou-lhe o marido.

Ela assentiu com a cabeça.

— Vai.

Gamay usou as pernas o melhor que pôde, acocorando-se para, em seguida, dar um salto. Voou com os braços abertos, conseguiu manter um intervalo muito razoável entre ela e o muro, na margem do canal, e mergulhou nas águas muito escuras.

Paul seguiu-a. Atirando-se e aterrando ao lado dela.

Vieram à superfície apenas com um intervalo de segundos. A água estava gelada mas acabou por lhes saber bem. Nadaram até ao muro onde Paul a ajudou a subir para o caminho, antes de fazer o mesmo. Ela acabara de pôr a mão no caixilho da pintura quando ouviram, atrás deles, o som de três pessoas a mergulhar.

— Estes tipos não sabem desistir — disse Gamay.

— E nós também não.

Com os homens a nadar na direção deles, Paul e Gamay desataram a correr, mas foram bloqueados por um outro par sinistro ao fundo da viela.

— Estamos outra vez encurralados.

Um pequeno barco a motor estava preso a uma argola no canal. Era a única coisa a que poderiam recorrer.

Paul atirou-se para dentro dele, quase o virando. Gamay entrou e desamarrou a corda. — Vamos!

Paul puxou pelo fio de náilon e o motor começou a trabalhar, vomitando uma nuvem de fumo azulado. Empurrou a alavanca e viu-se mais fumo, mas o hélice funcionou muito bem e o pequeno barco estreito partiu a toda a velocidade.

Paul mantinha-se atento ao que se encontrava diante dele, para não colidir com dezenas de barcos e barcaças que estavam atracados na margem do canal. Começara já a sentir-se em segurança quando um outro barco pequeno começou a deslizar para fora do nevoeiro atrás deles e se começou a aproximar.