No fim da tarde combinada com as meninas, deambulámos entre os bazares do mercado. Admiro a forma calma e alegre como as pessoas percorrem os caminhos e fazem compras. Os seus rostos são tranquilos, serenos e despreocupados. Nada que se assemelhe à Superfície, onde a maioria anda sempre com pressa, stressada e carrancuda. Aprecio os objetos coloridos dispostos nas bancadas e preciso de ser praticamente arrastada para entrar em duas ou três «tocas» de roupa.
— Anda lá, Ara. Se não gostares de nada, vamos embora — diz Isla, entusiasmada e esperançosa.
— Não entendo, pensava que todas as mulheres gostavam de roupa nova — remata Mira com um revirar de olhos.
— Pois enganas-te, amiga. Nem todas nascem com o gene da loucura por compras. Posso garantir que noventa por cento da roupa do meu armário foi a minha mãe que comprou — digo com uma meia gargalhada.
Este pensamento estreita-me o coração, e o já familiar sentimento de angústia retorna. Pensar na minha mãe, na minha família, e no que estão a passar. No desespero que sentem por não encontrarem o meu corpo. O quanto o meu pai se está a martirizar por ter concordado em levar-nos na viagem para nos despedirmos do meu avô. E agora, além de o perderem a ele, perderam-me a mim. Mas eu estou bem (assim como o meu avô, já agora). Se ao menos pudesse dizer-lhes. Tenho de arranjar uma forma. Será possível? Ou estarei a pedir demasiado?
— Experimenta estas. — Petra fala num tom prático, atirando o cabelo para trás. — Têm bom corte, por isso vão assentar-te bem — garante, empurrando-me para dentro de um provador e impingindo-me umas calças verde-abacate.
— Está bem, está bem — rendo-me.
— Já que aí estás, veste isto também. — Isla abre um pouco a cortina do provador e pousa um vestido no cabide.
— E, já agora, estes também. — Sofia atira uns calções pelo menos dois tamanhos acima do que eu uso e de uma cor estranha. Rio-me, mas não lhe digo que não gosto. — Se eu vivesse na Superfície, ia comprar muita roupa. Adoro a vossa moda! E os sapatos, então… Teria uma divisão só para sapatos. Aqueles Louboutin… São tão lindos… — Emite um suspiro profundo e sonhador.
— Caraças! Tens bom gosto — brinco. — Pode ser, mas não experimento mais nada — resmungo.
Adquiro dois pares de calças, algumas blusas e o vestido que Isla me forçou a levar para «uma ocasião especial», segundo as suas próprias palavras. Agradeço à senhora que, profissionalmente, dobra e me entrega as roupas dentro de uma sacola de pôr à cintura.
Elas param em quase todas as bancas e experimentam muita coisa, mas estranhamente não trazem nada, o que revela que não têm os mesmos hábitos consumistas que nós. Observo algumas bancas de um brilho estonteante. Pedras preciosas de todas as cores estão aqui apresentadas com tanta simplicidade como se fossem simples bijuteria.
— Ara, experimenta este — diz Mira, afastando-me o cabelo dos ombros para me colocar um colar. — É tão lindo. — O rosto dela ilumina-se e dá-me a sensação de que gostaria mais dele para si própria.
É a primeira vez que vou às «compras» com amigas, e constato que até pode ser divertido. Não detesto totalmente. E tenho amigas; considero-as minhas amigas. Pela primeira vez na vida, sinto-me realmente confortável perto de um grupo de pessoas.
Será por serem quem são ou por estarem onde estão? Ou o problema é meu? Nunca me dei realmente a conhecer aos outros, escondendo-me na minha concha.
O fio é fino e delicado, e o pendente, pequeno e transparente, de um azul muito claro. Um azul que me faz lembrar os olhos de alguém… Aqui estou eu a tentar distrair-me, e ele arranja sempre forma de vir ter ao meu pensamento.
— É uma água-marinha. São da gruta lkaldogsha, a nordeste da floresta. Fica-te bem — diz a mulher atrás da banca.
— Pois fica, Ara. Leva — incentiva Isla, entusiasmadíssima.
— Não é necessário. Não preciso de mais nada. — Retiro-o. Não posso levá-lo e ter ao pescoço um símbolo que me lembrará ainda mais do que vejo nos meus sonhos.
Quanto valerá esta pedra? É de um brilhante precioso e, pelo brilho intenso e a transparência, será do melhor que existe.
— Concordo. Não faz falta nenhuma. Somos Protetoras, não românticas — atira Petra com um esgar para as amigas. O nariz altivo e a linguagem corporal transbordam uma segurança invejável.
— Ela vai levar. — Mira sorri para a mulher, que, com o braço estendido, aguarda que eu lhe devolva o colar para o embrulhar no pano que tem na outra mão. Mira é incisiva e decidida, ótimas qualidades para uma boa investigadora.
— Está bem, pronto. Será o nosso presente de boas-vindas, já que gostas de oferecer pedras — acrescenta Petra, numa fraca tentativa de ocultar um sorriso brincalhão.
Não consigo parar de rir. Como é possível ela conhecer-me tão bem.
— Desisto. — Reviro os olhos, resignada.
— Fizeste uma ótima aquisição — diz uma voz grave atrás de mim.
Estremeço quando Llyr, de sorriso rasgado, me pousa a mão no ombro e o aperta.
— Olá — diz Beau com o seu típico brilhozinho nos olhos. Tem um monte de livros debaixo do braço longo.
Fico aturdida por vê-lo ao lado de Llyr, com roupas semelhantes e uma postura mais formal.
Atrás dele está o mesmo guarda-costas de olhos mortiços que eu vi no dia da festa. É como a sombra de Llyr, move-se se este se move e fica estático quando ele para.
— O meu filho tem-me mantido a par da tua adaptação — diz Llyr num gesto com a cabeça para Beau. — Soube que já integraste os treinos dos Protetores.
Somente agora percebo que Beau é filho de Llyr. Não são nada parecidos. Beau é mais alto, o pescoço largo e uns olhos observadores. É evidente que ele gosta de agradar ao pai e que leva muito a sério o seu papel de filho do Regente.
Rezo para ele não ter falado sobre as minhas pesquisas. Acho que o Regente não iria gostar de saber que investigo sobre como ir embora de Aquorea. E que o filho me está a ajudar! Não quero ser mal interpretada nem mal-agradecida.
— Sim, está ao nosso cuidado, Regente. — Petra não me deixa responder, e uma vez mais fico grata pela sua intervenção certeira. — E tem-se saído muito bem.
— Folgo em saber. Se precisares de alguma coisa, podes dispor. Ou fala com o Beau — diz, com os olhos carregados de promessas que eu não consigo desvendar.
— Está tudo bem, não preciso de nada, obrigada — retruco.
— Continuação de bom passeio. — Llyr retoma o caminho, com a sua sombra colada atrás.
— Até logo, sereias — brinca Beau com um aceno.
— Até logo — respondemos em coro.
— Vais ficar bem? Sei que custa — diz Isla em tom de gracejo para Mira. Ao que ela retribui com um longo revirar de olhos e a língua de fora.
Sei a que se referem. Opto por ignorar e falar com Mira assim que tiver oportunidade.
— Não sabia que o Beau é filho do Llyr. Não podiam ser mais diferentes. E porque é que anda sempre com um guarda-costas? — pergunto, após confirmar que eles já estão longe o suficiente para não me escutarem.
— Desde que a mulher do Llyr, a Grisete, foi raptada, ele nunca mais andou sem proteção — responde Petra. — O Adro foi colega do Ghaelle. Aliás, foi treinado por ele, portanto, é também um dos melhores. Como o Ghaelle rejeitou o cargo, ele escolheu o Adro.
— Então, a mãe do Beau foi uma das vítimas dos Albas? — pergunto, condoída daquela situação.
Elas franzem a testa e fazem que sim com a cabeça em conjunto.
— E o pior de tudo é que nunca encontraram o corpo. Ele nunca se pôde despedir da mãe. — A voz de Sofia é serena e triste.
O meu carinho e a amizade por Beau tornam-se maiores quando penso num menino assustado, sem o amor da mãe.
— O Beau é filho do Llyr — afirmo com apatia.
— Sim, e por este andar será o próximo Regente — constata Petra. — Está a preparar-se para isso. Conhece toda a gente e tenta estar a par de tudo o que se passa, mesmo que não seja do seu departamento.
— É um metediço — brinca Sofia.
— Vendo como as pessoas gostam dele, não me admira nada que o consiga ainda mais cedo do que o pai — diz Mira.
— E aí a Mira será a primeira-dama — instiga-a Isla, piscando os olhos como uma boneca, para depois dar uma gargalhada espalhafatosa.
— Hum… Não me parece. Acho que ele já tem dono. Não é, Ara? — Sofia surpreende-me, mais uma vez, com esta afirmação. Parece que quer a todo o custo empurrar-me para os braços de Beau.
— Que eu saiba, não — digo, desconcertada com o seu comentário
— Até parece. Aquele enfezadinho?! — Mira ignora Sofia e responde a Isla, com um gesto desinteressado. — Preferia juntar-me a um dhihilo.
Outra vez? Mas o que será um dhihilo?
Mas Sofia tem razão. É fácil gostar de Beau. Sem me conhecer, ele colocou-se à disposição para me ajudar a pesquisar sobre os portais. Como agora sei que ele tem, provavelmente, acesso a informação privilegiada, reforço ainda mais a ideia de não estragar tudo e deitar a nossa amizade a perder.
A mulher atrás da banca das joias estica o braço para me dar o pequeno embrulho de tecido com o colar no interior. Na mesma banca há um objeto que me chama mais a atenção do que o fio.
— Para ti — digo, baixinho, ao olhar de relance para Mira e passando-lhe o presente. — Vai ficar-te melhor.
O sorriso dela é um rasgão no seu rosto. Hesita, mas aceita, colocando-o de imediato. E depois faz uma pequena dança desajeitada, mostrando, orgulhosa, o fio às outras.
A minha atenção continua na banca. Um alfinete pequeno, semelhante ao que Fredek tinha na lapela do colete. Este, porém, tem um símbolo diferente, mas recordo-me de o ver no documento «Descent». Um V com outro V invertido sobreposto e com um traço horizontal bem definido no final.
— Que símbolo é este? — Aponto para o pequeno broche.
— É o símbolo de anastomose. A junção entre os dois mundos: o nosso mundo e a Superfície — responde Mira.
— A mim, isso sempre me pareceu um jato de água meio destrambelhado. — Isla ri.
São coincidências a mais.
— Será que consigo encontrar informação sobre ele na biblioteca? — pergunto.
— Na quê? — pergunta Isla, confusa, encostando-se na banca de roupa ao lado.
Rapidamente percebo que talvez não seja esse o termo usado por eles. Porque será que Beau não me corrigiu?
— Hum… o sítio onde guardam os livros, a informação, e que todos podem consultar? — explico. — Como a que têm no Colégio Central.
Mira olha-nos, confusa.
— Ah… O Recetáculo do Conhecimento! — exclama Petra, ao bater com as palmas das mãos nas coxas e de sorriso aberto para Isla.
— Recetáculo do Conhecimento. Faz sentido — concordo com um aceno de cabeça.
Isla, Petra e Sofia desatam em gargalhadas fortes e profundas, o que me baralha.
— Parem com isso. — Mira arqueia as sobrancelhas, com os lábios cerrados numa linha fina.
— O que foi? — pergunto, sem nada perceber.
As outras três continuam na risota.
— São elas que são parvinhas. Estão a meter-se contigo. Aqui também se chama biblioteca.
Dou um murro leve no ombro de Petra e faço uma careta para Isla e Sofia. Elas avançam, à nossa frente, para outro bazar. Petra experimenta um cinto largo e tenta arranjar forma de prender nele a sua pistola de arpões.
— Achas que consigo obter lá mais informação acerca daquele símbolo?
— Só se for na do Colégio Central. Na do GarEden, a não ser que procures coisas do género «o espectro eletromagnético da clorofila», não é o sítio certo para pesquisar — responde com o seu sorriso caloroso.
Na do Colégio Central sei que não encontrarei mais nada. Uma vez mais, fico sem respostas.
No fim do jantar — e à revelia das outras —, Mira e eu retiramo-nos mais cedo. A Ponte-Mor — a principal da cidade — está a abarrotar de pessoas, que a cruzam nos dois sentidos, e o meu corpo uma vez mais começa a destilar. Vamo-nos desviando das crianças que correm e gritam em brincadeira. Tenho de aproveitar este momento para lhe falar a respeito de Beau e das minhas intenções para com ele. Amizade, nada mais. Deixar isso claro de uma vez por todas. Apesar de ela, até agora, ter lidado muito bem com a situação. Não demonstra ciúmes, nem teve qualquer comportamento negativo para comigo, pelo contrário, continua superamorosa. Não sei como será a sua reação, por isso decido dar uma de Petra e ir direta ao assunto.
— Mira, não se passa nada entre mim e o Beau. Somos somente amigos. No aniversário do Kai, bebi demais e… — Paro para decidir como continuar. Opto pela verdade. — Bem, na verdade, foi um desastre. Primeiro, a Umi continuou a ser uma víbora; depois, aquele tipo agrediu-me, e o Kai, como sempre, claro, estava lá para me acudir. Ele frustra-me tanto, nunca sei com que humor o vou encontrar, e acabamos por discutir de novo — digo, de uma assentada.
— Agrediu-te? Quem te agrediu? — A voz está alterada. Inquieta. Ela parou de andar.
Giro nos calcanhares. A sola dos meus ténis chia no chão morno de cristal. Fico à sua frente. O trânsito de pessoas à nossa volta continua a fluir e eu sinto-me ligeiramente claustrofóbica. Mira usa um vestido cor de laranja muito vivo, que contrasta lindamente com o seu tom de pele. Aqui estou eu, a confessar que beijei o rapaz de quem ela gosta, e tudo o que vejo nela é preocupação genuína.
— Oh, não foi nada. Um tipo qualquer. Quer dizer, apanhei um susto do caraças, mas o Kai deu-lhe um murro e resolveu o assunto. — Rio-me baixinho a pensar no meu agressor a gemer, no chão, com a mão na cara. — Mas o que eu quero dizer é que eu tinha bebido demais. Não é desculpa, claro. Não há desculpa para o meu comportamento e para trair a tua amizade desta forma, mas nunca bebi tanto antes e… não sei, talvez por estar mais vulnerável. Foi só um beijo, acho, e não significou nada. Não há razão para te magoar desta forma e só espero que me perdoes. — Um enorme peso sai-me de cima ao abrir-lhe o meu coração. Tinha a noção de que andava com este problema aqui às voltas, mas nunca pensei sentir um alívio tão grande.
— Ara… Agradeço a tua sinceridade. Mesmo. — Pega na minha mão e eu sorrio-lhe perante aquele gesto de afeto, que me tranquiliza. — Mas não tenho esse tipo de sentimento pelo Beau.
— Não? — Fico confusa. Até agora, as reações dela, sempre que me viu com Beau, foram estranhas, de ciúme, que ela tentava, educadamente, disfarçar. Para não falar de quando, na fatídica noite antes da festa, em casa dos meus avós, ela me perguntou se eu e Beau tínhamos ido passear. Que outro motivo teria para estas reações?
— Não. — A mão dela aperta-se um pouco mais na minha e baixa o olhar. — Entendeste mal, o meu sentimento é direcionado a outra pessoa.
Será que gosta de Kai? Se for o caso, também não tem de se preocupar comigo. Segundo Petra, ele já teve, ou ainda tem, «uma coisa» com Sofia. Acho que ela percebe que estou com dificuldade em atingir o cerne da questão.
— Da Sofia, Ara. Eu gosto da Sofia. — Larga-me a mão e prende o cabelo atrás das orelhas.
— O quê? — A minha voz sai baixa, mas alegre.
— Nunca lhe disse nada, porque não queria que as coisas ficassem estranhas entre nós. Não sei como lhe dizer, até porque já percebi que não sou correspondida.
Oh… Como é possível não ter percebido? Todos os sinais estavam lá, mas eu interpretei-os mal. Sempre que me viu com Beau e Sofia, o seu rosto mudava, mas deduzi, erradamente, que era por causa de Beau. Sofia. A querida Mira gosta da Sofia.
— És correspondida. Talvez não com o mesmo tipo de amor que sentes em relação a ela, mas, ainda assim, amizade é amor.
Abraço-a e ela retribui. Aperta-me e balança-me na brincadeira.
— Obrigada por partilhares comigo, Mira. Mas porque não lhe dizes? Já percebi que é um preconceito que não existe aqui. Por exemplo, o Wull e o namorado tiveram problemas?
Afastamo-nos e ela suspira.
— Não, claro que não. Sou eu que não me sinto preparada. É estranho explicar, não sei como encarar a minha família e, principalmente, as minhas amigas. Mas sei que contigo o meu segredo fica bem guardado. Tu és assim toda misteriosa.
— Eu? Misteriosa? — Rio. — E não te preocupes, o teu segredo fica bem guardado, claro.
Continuamos o resto do trajeto num silêncio reconfortante, até cada uma seguir o seu caminho, com os respetivos segredos guardados a sete chaves.
Os treinos prosseguem. E assim se passaram treze tumultuosos dias, desde que encontrei Edgar morto à porta do Salão Ruby. As pessoas andam nervosas e inquietas. E embora não falem abertamente do que aconteceu, sente-se uma tensão no ar. Os mais novos parecem não ter qualquer ideia de que foi assassinado, mas sim que morreu devido a circunstâncias naturais.
Não vejo Kai desde então, mas todos os dias sinto a sua presença nos meus sonhos, cada vez mais perturbadores e aflitivos. Sonho que luto, dentro de água, para proteger os meus pais e a minha irmã, contra uns seres feios e enormes, com presas afiadas. Kai sempre a meu lado, mas sem interferir nas lutas, deixando-me à minha sorte. Serei eu a culpada do seu desaparecimento?! Não entendo o porquê de me sentir tão integrada e, ao mesmo tempo, tão indesejada num sítio. E isto devo-o somente a Kai. Acho. É um misto de emoções.
Quero ficar.
Continuar a aprender e a lutar, amadurecer as amizades, pertencer a este grupo de pessoas que já considero minhas amigas.
Mas também quero ir.
Mandar Kai à fava pelo seu desprezo e matar as saudades da minha família.
Grande parte das noites, Isla janta em casa dos meus avós, e depois conversamos durante horas a fio no alpendre. Conto-lhe tudo sobre a minha família, acerca de Benny e do meu amigo Colt. Nunca me falou sobre o irmão, e eu também nunca lhe perguntei se ele estará bem ou mal. Calculo que, se houvesse algum problema grave, ela ou alguém falaria no assunto. Tento sorver o máximo de conhecimento que me é possível para conseguir achar um caminho de volta à minha família. Abordo mais duas vezes o meu avô, peço-lhe que me ajude a ir embora, a encontrar uma saída. Ameaço-o, inclusive, de que irei expor o meu caso perante o Consílio, que têm de me deixar ir porque não pedi para entrar. Mas os meus pedidos caem em saco roto e ele continua simplesmente a pedir que eu dê tempo ao tempo.
Aprendo a apreciar a vida mais lenta deste local e a conhecer as pessoas pelo nome. E as pessoas também se habituaram a ver-me por aqui e a respeitar-me.
— Agora, vai ser a doer. Mergulhem! — A voz de Wull é esganiçada para o seu grande porte, e eu saio do meu torpor de pensamentos.
Eu assim faço. Estico os braços e aponto os dedos em direção à água, inclino-me para a frente e mergulho no rio. A sua temperatura provoca uma sensação agradável no corpo. Penso na estupidez que tem sido andar sempre a derreter com o calor, tendo aqui esta imensidão onde me refrescar.
Hoje, o treino é dentro de água. Os dois grupos, do Primeiro e Segundo Estágios, juntos. Não temos pé, nadamos em profundidade, ao mesmo tempo que nos desviamos de obstáculos naturais e de outros que nos são atirados no momento, sem contarmos. A agilidade e a rapidez dentro de água estão a ser postas à prova. Também tenho a oportunidade de experimentar a pistola de arpões dentro de água, e percebo que funciona com a mesma velocidade que em terra firme.
Mas os meus pulmões não aguentam tanto quanto os dos meus colegas e, numa das vezes que venho recuperar o fôlego, sinto algo puxar-me bruscamente. Esbracejo, torço o corpo, esbugalho os olhos e olho para baixo para ver o que me prende. É Umi. Tento pontapear com força para me libertar das suas mãos, mas ela continua a segurar e apenas me deixa pôr a cabeça fora de água por segundos. E volta a puxar.
Ouço um sussurro, como uma memória antiga.
Flete as pernas. Dá uma cambalhota.
Continuo a espernear e a esbracejar para receber um pouco de oxigénio, mas as mãos dela agarram-me.
Flete as pernas com força. Dá uma cambalhota e solta-te, ouço novamente, desta vez mais nitidamente.
Assim faço. O rosto de Umi exibe um sorriso e isso dá-me energia para fletir as pernas com destreza. Dou uma cambalhota à retaguarda, acertando com os pés no rosto dela e fazendo-a soltar-me.
Quem pensa ela que é? O que pretende de mim?
Consigo respirar apressadamente e nadar até à margem, enquanto ela me segue e tenta agarrar de novo.
— Umi, para com isso — grita Petra, saindo do seu local de treino e nadando na nossa direção.
— Craca! — Aponta o dedo na minha direção, enquanto limpa o sangue que lhe escorre do nariz.
Craca? Deve ser o equivalente a cabra.
— Anda, Ara. — Petra arrasta-me por um braço, mas eu não desprendo os olhos de Umi.
— Ainda não terminei contigo. Quem ri por último, ri melhor — dispara ela, ainda com o olhar toldado.
— Não — grito. — Quem ri por último é de raciocínio lento! — E não consigo resistir a esboçar um grande sorriso provocador na sua direção.
A risada forte de Petra distrai-me de Umi.
— Queres que ela te mate? — reclama Petra. — Para com isso — diz, ainda sem deixar de rir.
— Qual é o problema dela? — interrogo com a respiração acelerada.
— Ainda perguntas?
— O que se passa aqui? — pergunta Wull, aproximando-se de nós. Boris mantém-se dentro de água, mas reparo que também está atento ao que se passa.
— A Umi, outra vez. Ela ainda vai fazer com que alguém se magoe a sério — diz Petra, preocupada e com as sobrancelhas franzidas.
— Eu falo com ela. Estás bem para continuar, Ara? — pergunta Wull, verdadeiramente preocupado.
— Sim.
— Continua, então. Eu fico de olho nela. É verdade, hoje jantas na Fraternidade. Agora que treinas connosco, tens de comer com o populacho. — Ele pisca-me o olho em sinal de cumplicidade.
Dói-me o corpo, mas ela provavelmente ficou com o nariz partido. Resolvo não dar parte fraca e terminar o treino, sob os olhares atentos de Wull, Boris e Petra, contente pelo convite para jantar na Fraternidade. Estou curiosa por ver onde, afinal, vivem os Protetores.
O meu corpo está mais musculado devido ao exercício diário. Sinto-me pela primeira vez à vontade para o mostrar, por isso, decido experimentar as calças que adquiri na tarde de compras com as meninas.
Como fui ensinada a não aparecer de mãos a abanar, decido fazer uma fornada de bolachas caseiras para os meus amigos. Boris, guloso como é, irá certamente apreciar.
As instalações dos Protetores ficam do lado de lá da ponte, na parte rochosa, onde é mais fresco. Sigo as indicações de Petra e passo pelo silencioso Salão Ruby, que está com as suas belas portas fechadas. Pouso a mão na madeira trabalhada e estudo os símbolos, alguns dos quais são iguais aos que copiei para o papel. Ando mais um pouco e paro de novo quando vejo a corda por onde Kai desceu comigo até ao rio. Toco na corda e um pensamento assola-me: e se nunca mais o vejo?
Continuo até o caminho ficar tão estreito que sou obrigada a andar quase de lado. O corrimão robusto separa-me do precipício. O acanhado trilho termina e eu sigo pelo único sítio possível, à esquerda. Desço umas escadas largas e íngremes, cinzeladas na própria rocha. Deparo-me com uma caverna ampla e achatada, com a iluminação alaranjada típica dos candeeiros de sal. Aberturas largas esculpidas em diversas direções levam, segundo as placas de identificação, às salas de treino, ao refeitório, aos dormitórios e aos apartamentos dos Protetores. Sigo o túnel número dois para o refeitório. Petra disse que estaria lá à minha espera.
Para meu espanto, assim que entro na sala de jantar, a primeira pessoa que vejo é Kai. O meu queixo estatela-se no chão e o coração explode em mil pedaços, de emoções ridiculamente contraditórias. Está sentado duas mesas ao lado da mesa onde se encontra Petra, com um grupo de pessoas mais velhas. Cada um deles com as suas armaduras de braços em pele e outros com armaduras também que cobrem os ombros e o peito. Ri-se e parece divertido e bem-disposto, como um miúdo despreocupado e sem responsabilidades. Fico em choque. Quando me vê, examina-me de cima a baixo. Os nossos olhos cruzaram-se e ficam presos durante uns segundos.
Esteve a esconder-se de mim? Por isso é que pôs o Boris responsável pelos treinos?
Não, não estive… Devias ir embora, Rosialt…
A sua voz ecoa nitidamente dentro da minha cabeça. É como uma súplica; quase um lamento, não uma ordem.
Não, não faz qualquer sentido; a minha cabeça está a alucinar, mas desta vez tenho a certeza, não estou maluca. É a voz de Kai. É a sua voz, não restam dúvidas. Consigo ouvir os pensamentos dele. Um receio invade-me. Isso significa que ele também consegue ouvir os meus?
Estou perplexa. Será mesmo possível? Ainda sem desviar os olhos dos seus, faço um esforço para concentrar mentalmente toda a minha energia:
Queres mesmo que vá?
Ele não me quer aqui, sei disso desde a primeira vez que o vi, quando acordei nos seus braços para desmaiar logo em seguida. O olhar dele abranda sobre o meu, fica menos duro, mais descomprimido, e simplesmente roda a cabeça e continua a falar com a normalidade com que estava antes de eu entrar.
— Ara! — Petra grita, acena-me efusivamente, e eu sou obrigada a sair da minha angústia existencial. Aceno de volta, pateticamente.
Ela está de pé, à minha espera. Veste um minúsculo vestido castanho-claro e mexe no cabelo enquanto fala com um rapaz que não tira os olhos do seu pronunciado decote, como se os olhos dela fossem ali. Ao fundo, o ritmo dos tambores que ouvi no Underneath. Uma sensação de bem-estar, multiplicada por amargura, invade-me.
— Boas, pessoal — digo, aproximando-me da mesa.
— Boas, Ara — respondem alguns deles. Petra sorri para o rapaz e ele afasta-se. Senta-se ao lado de Boris, que corta uma grande posta de peixe e começa a devorá-la assim que esta toca no prato. Com a mão livre, serve-se do acompanhamento.
— Trouxe isto para sobremesa. — Pouso o cestinho das bolachas em frente a Boris e pisco-lhe o olho.
Petra indica-me que me sente à sua frente ao lado de Suna. É magrinho e de cabelo muito encaracolado, pelas orelhas.
— És a minha heroína! — Os olhos de Boris sorriem. Pega não em uma, mas em duas bolachas.
— Deixa algumas para nós. E isso é para a sobremesa. — Petra repreende Boris e eu sorrio.
— Mmm… Tenho fome — diz, enquanto trinca as bolachas. Vejo-o saborear… até se aperceber de que são feitas exclusivamente de farinha e sal. Cospe tudo e faz um grande espalhafato quando se debruça por cima da mesa e bebe água diretamente do jarro.
— São de sal! — Pisco o olho a Petra e ela dá-me um high five.
— Tu és má! — choraminga Boris.
— É para aprenderes a não te meteres comigo.
Pego no cesto, embrulho as bolachas com o guardanapo e levanto-o, mostrando as verdadeiras bolachas que estão por baixo. Ofereço-lhe uma em sinal de tréguas. Ele cheira e leva-a à boca a medo, mas sorri quando percebe que me deixei de partidas.
— Tens aqui uma adversária à altura, amigo — brinca Suna.
— Sem dúvida! Mas ela devia saber que com a comida não se brinca.
Rimos todos com entusiasmo. Nunca conheci ninguém com tanto apetite.
Apesar do cheiro divinal da comida que está na mesa, eu não janto, só debico. Ver Kai ali, sentado tão perto de mim e todo sorridente, não ajuda. Há treze dias que sofro em silêncio, tentando imaginar onde ele estaria, e ninguém me deu nenhuma informação. Se estava ferido ou morto. Mas afinal ele está bem-disposto e bem de saúde.
Imbecil. Lindo, mas imbecil!
Hora e meia depois, continuo a olhar para o prato com comida à minha frente e pouco participo na conversa.
— Rosialt, posso acompanhar-te a casa? — ouço em voz baixa.
Olho sobre o ombro e Kai sorri-me.
O meu coração esquece-se de bater. Continuo a olhar para o seu rosto, com ar de maluca, de forma a perceber se ele disse mesmo aquilo ou se foi novamente um truque da minha imaginação.
— Pronta para ir? Já comeste tudo? — continua, ainda num sussurro. Mete as mãos nos bolsos.
Não. Não estou, seu energúmeno!, penso.
— Sim. — É o que me sai da boca. Porcaria de cérebro estúpido que não faz o que lhe mando.
Petra foca-se na conversa:
— Não precisas de a levar, Shore. Eu levo-a, não te preocupes.
Continuo à espera de que o meu sistema operativo reinicie.
— Ela não precisa que a levem, Conrad. — Olha para mim e sorri gentilmente. — Mas como vou falar com a Raina, aproveito a companhia — conclui Kai, com um sorriso travesso para a amiga.
— Acho que ela prefere a minha companhia, mas se fazes questão, desta vez eu permito. — Petra deita-lhe a língua de fora e ele vira-lhe as costas.
Levanto-me, com a mão apoiada na mesa, e lanço um sorriso apatetado para os restantes, sem que nenhuma palavra me passe pelas cordas vocais.
— Boas, Ara — dizem alguns dos meus colegas, em harmonia. Eles são tão porreiros comigo. Se ao menos soubessem usar corretamente o cumprimento «boas». Faço uma nota mental para me lembrar de os corrigir quando for oportuno, mas apago-a de imediato. Vou deixá-los continuar e, quiçá, juntar-me a eles.
Pelo canto do olho, vejo Petra fazer-me um fixe com o polegar. E, recorrendo ainda à visão periférica, vejo Umi prestes a descabelar-se.
— Não vamos de barco? — pergunto, notando que ele não parou nas cordas que descem até à doca.
— Não.
Oh… Queria agarrá-lo outra vez. Cheirar-lhe o pescoço. E talvez dar uma lambidela, quando ele estivesse distraído. Tarada!
— Tu é que sabes.
— O Boris diz-me que tens um jeito natural para tiro com arpão. E que também não és nada má na luta corpo a corpo. — A voz dele é calma, como se pesasse todas as palavras.
— A sério? Vais mesmo fazer conversa de cerimónia? — Não sei o que me dá. Simplesmente, estou farta de fazer de conta que não se está a passar algo muitíssimo estranho; para além do óbvio, claro.
— De que queres falar, então? — responde, pacientemente, com a voz grave.
E que tal sobre o facto de eu conseguir ouvir os teus pensamentos?, guincha o meu cérebro irritado.
Ele olha-me nos olhos e esboça um sorriso.
— Não entendo, Kai, a sério. Parece que tens dupla personalidade. Resolveste falar comigo como uma pessoa normal? — Continuo chateada e não há forma de conseguir controlar o meu temperamento.
— Tens razão, não fui correto contigo. E estou cansado de lutar contra o inevitável. — Suspira e as suas palavras desarmam-me.
— O quê? — A voz sai-me num sopro.
— Peço desculpa pelo meu comportamento.
Fico de boca aberta com estas palavras.
Lutar contra o inevitável? O que quererá ele dizer?
— Podemos recomeçar? — Os olhos brilham e ele mostra-me um sorriso de dentes brancos. Um dos caninos sobrepõe-se um pouco no outro dente, e isso dá-lhe um certo charme.
As minhas defesas derretem-se e transformam-se em fondue de chocolate.
— Porque é que desapareceste estes dias? — pergunto com um fio de voz, não querendo parecer carente. Acho que falho redondamente.
— Tive uns assuntos para tratar.
— Não consegues dar uma resposta direta?
Ele olha para mim e esfrega a nuca.
— Estive a fazer o meu trabalho. A verificar e reforçar as entradas e as barreiras de segurança. Eu tive de ir… — Suspira.
— Ah… — O meu ar é de espanto e, simultaneamente, de desilusão, acho.
— Pareces surpreendida.
— Pois, talvez. Pensei que tivesses… — Paro por uns segundos, para ponderar se acabo a frase ou se mudo de assunto.
— Sim? — Insiste, de sobrolho franzido e ar sério.
— Que tivesses ido embora — desabafo, por fim.
— Embora?
— É que ouvi dizer que alguns de vocês conseguem ir à Superfície. Pelo tempo que consegues ficar debaixo de água, não seria de surpreender.
— Pois, não sei. Mesmo que conseguisse… — Não termina a frase. Por algum motivo que eu não consigo imaginar, noto desapontamento no seu tom de voz.
— E por acaso sabes como poderei fazer para me ir embora daqui?
— Queres ir embora? — A pergunta dele é quase uma afirmação, mas dita num tom praticamente inaudível.
— Não posso ficar aqui para sempre. Tenho a minha família. Os meus pais, a minha irmã, o Colt. Não os posso fazer passar por esta provação.
— Colt? — Olha-me rapidamente e, sem ponta de surpresa, fúria relampeja-lhe nos olhos.
— Sim. O meu melhor amigo.
— Só amigo? — pergunta, com a voz nitidamente carregada de falsa simpatia.
— Até ver. — Encolho os ombros. Estará com ciúmes? A minha mente sorri.
Decido aproveitar para tirar uns quantos nabos da púcara.
— E a Umi, é tua namorada?
— Não. É minha aprendiza.
— De aprendiza não tem nada.
— Isso são ciúmes, Rosialt? — Ele tem coragem para dizer em voz alta o que eu não consigo.
Os seus olhos rasgados reluzem, claríssimos. Mesmo aqui, à meia-luz, consigo ver o brilho da sua pele lisa. Tem a barba feita, o que realça as suas maçãs do rosto, fortes como o queixo.
— Não — balbucio. — Só queria saber o porquê das tentativas de homicídio.
— Foi sem querer — afirma ele. — Bem, da primeira vez, pelo menos — conclui com uma gargalhada que me contagia.
— Ahã — rezingo. — E a Sofia?
Mas será que perdi totalmente a vergonha na cara?
— Não.
— Ahã — repito.
— Há alguma coisa que me queiras perguntar? — questiona ele, de sobrolho franzido e curioso. — Não te quero entalada. — E sorri, divertido.
— Não é o que dizem.
— Não sei o que dizem nem que ideias ela acalenta, mas são somente na cabeça dela. — Parece que se quer explicar ao ver que eu não engulo aquela resposta curta e decididamente falsa.
Leva as mãos nos bolsos e o seu ar é totalmente descontraído. À medida que conversamos, também eu fico mais relaxada. Afinal, ele é um rapaz normal. As rastas, com quase impercetíveis reflexos cor de mogno, estão presas na nuca. Dá-lhe um ar radical, a contrastar com o seu rosto. Não me canso de o observar. Parece estar mais moreno. Será?
— Ela é gira. E tem uma paixoneta por ti.
— Sim. Ela é bonita, muito bonita — confirma, pensativo.
Fito-o com alguma dureza, enquanto o meu rosto se transfigura com a raiva que me cresce no peito.
— As outras, do teu pelotão de apaixonadas, também são bonitas.
— Pelotão?
— Sim, aquele pelotão que parece idolatrar-te de cada vez que sais à rua. — Reviro os olhos, de modo crítico.
— São só as minhas leais fãs, como tu bem disseste há algumas semanas — admite, com ar astuto.
— Aquelas que costumas pescar, hã?
— É… Estás decididamente com ciúmes. E parece que também não consegues resistir à tentação de me observar — atira, com um sorriso lascivo.
Então é esta a sua estratégia. Parece… (engulo em seco) funcionar.
— Querias! — Irrefletidamente, mostro-lhe o dedo do meio. Ele tenta apanhá-lo, mas eu sou mais rápida a fugir com a mão.
— Queria falar contigo acerca disso. Tenho andado a pensar, e…
Paro de andar. Um segundo depois, ele também para, olha para trás e vem ter comigo.
— O quê? Queres que me junte ao teu pelotão? Era só o que faltava! Meu amigo, não tenho nenhum interesse em tornar-me uma das tuas miúdas. Como tu já deste bem a entender, não faço o teu género. E isto — gesticulo, ferozmente, na direção dele, com o dedo no ar em círculos —, obviamente não faz o meu — explico, furiosa, e depois descanso os punhos fechados nas ancas.
Ele não diz nada, mas está demasiado divertido para o meu gosto. Semicerro os olhos, à espera de uma resposta.
— Ia apenas dizer-te que… — Para e ri-se consigo próprio. — Na verdade, era precisamente o que ia sugerir. Que te juntasses ao meu pelotão, ao único que tenho. Já que estás cá, devias começar a treinar a sério. — Olha para mim com o rosto impassível.
— Ah… — digo apenas. Que vergonha! O meu reino por uma gruta onde me esconder, rapidamente.
Ele recomeça a andar.
— Mas, pensando melhor, talvez não tenhas estaleca. Não vou investir o meu tempo em alguém que…
— Não, Kai. Espera — chio e prendo-lhe o pulso. Ele para e vira-se novamente para mim. — Espera — repito para arranjar tempo e pensar no que lhe dizer.
— Sim? — Ele cruza os braços sobre o peito e vejo-lhe um ar jovial nos olhos.
— Já que insistes, aceito o teu convite.
— És terrível. — Abana a cabeça. — Anda.
Sigo-o.
— E tu és um idiota. Já te disse?
— Não. Só me chamaste de imbecil. — Aquele sorriso matreiro surge novamente.
— Isso pensas tu. Nas tuas costas já te chamei idiota.
— Ka patua ahau e koe — sibila.
— É maori! — Sorrio. — O que é que isso quer dizer? Acho que já me disseste uma coisa parecida, uma vez.
— Tu matas-me.
Encolho os ombros e desvalorizo. Ele também me mata a mim!
— Então, o que tens para falar com a minha avó? — A ponte de Salt Lake espreita ao fundo e não quero que a conversa acabe.
— Nada. Apenas quis aproveitar esta oportunidade para conversarmos, visto que pareço ser o único que ainda não sabe nada sobre ti.
Este comentário surpreende-me e sinto o já conhecido formigueiro crescer-me nas entranhas. O estômago contorce-se e dá lugar ao nervosismo de novo. Porque quer ele conhecer-me? E porque acho que as suas palavras não são, de todo, verdade?
— Fizeste vinte anos, certo? — pergunto, só para confirmar.
— Vinte. — Valida a minha pergunta. — Tu tens dezassete.
Abano a cabeça em sinal afirmativo. Afinal, parece saber umas coisas acerca de mim.
— Quase dezoito. Faço em novembro. — A frase sai-me sem quê nem para quê.
Ele sorri.
A ponte está debaixo de nós e o barulho da cascata da lagoa de sal é agora ensurdecedor. Julgava que ele me deixaria aqui e voltaria para trás, mas como ele não para, descemos as escadas que dão para o passadiço. Aproveito para atacar com tudo o que tenho, no intuito de descobrir a verdade.
— E quando é que vamos conversar acerca do que se passou naquele dia? — pergunto, achando que ele sabe que me refiro ao facto de ter ouvido o seu aviso quando Umi me lançou o arpão.
— Rosialt, não entres por aí — diz, impaciente. O seu rosto passa de calmo a apreensivo.
— Tenho de saber que não estou louca nem a alucinar — gemo, com o desespero que me envolve. — Já me chega andar a sonhar contigo há meses e ser trazida à força para um mundo que só existe em filmes de ficção, Kai. Tenho de saber que não estou maluca — repito, com os decibéis demasiado altos.
— Tu sonhas comigo? — Está boquiaberto e para de andar.
Eu disse isso? Porra! Tenho de controlar a verborreia. Agora não há volta a dar. Viro-me e encaro-o.
— Não… Sim… Não é bem contigo, mas com os teus olhos. Percebi que eras tu quando te vi pela primeira vez — assumo. — Mas já não sonho — minto descaradamente, retomando o curto caminho que falta. Ele segue-me.
Parados em frente à casa dos meus avós, Kai examina-me demoradamente e os seus olhos parecem querer dizer algo.
— A partir de amanhã, treinas comigo — diz, por fim.
— A sério? É isso que me respondes?
— O que queres que diga?
— A verdade. É pedir demais? Se for pedir muito, acho que não podemos ser amigos.
Fecha os olhos com força, inspira e um trejeito nervoso atravessa-lhe os lábios.
— Esperava que tivesses o bom senso de não querer ser minha amiga, Rosialt — diz com a voz incrivelmente baixa, aproximando-se de mim. A forma como ele usa o meu sobrenome sempre que quer impor a sua vontade é intimidante e excitante.
— Porquê, és perigoso? — sussurro, com os joelhos a tremer.
— Só se me pedires.
O seu odor fresco faz-me vibrar. Enfraqueço e os meus ouvidos zunem. Levanta a mão lentamente e desliza o polegar pelo meu rosto.
— Eu também sonho contigo — diz, por fim, com a testa encostada à minha. Nariz contra nariz.
Estamos incrivelmente perto. O seu sopro diretamente na minha boca. Não tenho palavras e não sei o que fazer. A minha respiração está descompassada, as mãos transpiram e tenho a sensação de ter comido borboletas frenéticas em vez de ervilhas.
— Se tiveres bom senso, irás afastar-te de mim — insiste. — Porque eu… já não consigo.
— Eu… eu… — Não sei o que dizer. — Não quero — desabafo.
Ele pega-me na mão e esta perde-se no meio dos seus enormes dedos. Levanta-a e passa-a pelo monitor. A cortina de vidro abre-se.
— Até amanhã, Rosialt. E não, não és maluca.
Fico a vê-lo partir.