-Colt — chama Mary. Ouço a sua voz doce ao longe e abro os olhos. Os dela estão vermelhos e brilhantes e as olheiras são agora ainda mais carregadas e fundas. — Estás acordado? — pergunta, a esfregar o nariz enquanto espreita pela pequena abertura da porta.
— Sim.
— Vamos agora sair. Vens?
Tenho-me deitado todos os dias bastante tarde, pelo que, sempre que se me apresenta a possibilidade, durmo uma sesta. O rapaz que me ajudou no bar é porreiro. Tirou umas semanas de férias para fazer uma viagem de mochila às costas pela América do Sul. A seguir àquele episódio, encontrámo-nos nas noites seguintes no bar e eu contei-lhe tudo sobre Ara. Acabei sempre a noite com uma rapariga diferente e reparei que isso não era a onda dele, porque saía de fininho sempre que lhe tentava apresentar uma miúda. Era um bom ouvinte e fiquei com pena de que se tenha ido embora. Agora, vou ao bar sozinho, bebo uns copos e tento deitar a mão a uma rapariga qualquer para curtir um bocado.
— Claro — digo, já bem desperto da minha curta sesta. De um salto, saio da cama e calço as sapatilhas.
— Então anda. Preparei-te uma sanduíche — diz ao descermos as escadas para a sala.
O hálito dela cheira a álcool, mas eu nada digo. Há uns dias encontrei mais uma garrafa de vodca vazia no lixo; e pelas minhas contas, são sensivelmente duas por semana. Em cima da mesa está um pão tostado com alface, tomate, queijo e ovo cozido.
— Obrigado, Mary. — Pego na sanduíche e dou-lhe uma trinca.
Ela sorri. Esfrega a mão nas minhas costas e diz-me baixinho:
— Obrigada eu.
O seu rosto transtornado parece amenizar-se quando me olha, assim como eu sinto conforto no seu.
Também em cima da mesa, ao lado de uma taça com bananas e maracujás, está um bilhete para Benny, a dizer que vamos sair e que chegamos dentro de algumas horas. Ela está a dormir pacificamente no sofá. A pele sedosa brilha com os raios de sol, que encontram passagem pelo fino cortinado. Ela sempre foi magrinha, mas emagreceu uns sete quilos, transformando-se num saco de ossos ambulante. Alimenta-se a gelatina, chá, uma mão-cheia de bolachas e pouco mais. Desde o dia em que a apanhei a pedrar-se com o jornalista, ela nunca mais foi connosco nas buscas. Diz aos pais que prefere ficar por casa a ler e a descansar, mas eu sei que ela aproveita para se esgueirar e ir ter com ele. Não é a primeira vez que a vejo dormir durante o dia nas últimas semanas.
Depois do episódio no MEXI-NÃO, falei com Caspian acerca do comportamento perigoso e irracional da filha, mas ele desvalorizou a situação. Contei-lhe que sai às escondidas depois de eles irem para a cama e, com muita dificuldade, contei-lhe também que a vi consumir droga. Uma vez mais, ele não deu muito importância, dizendo que é apenas a revolta típica da adolescência conjugada com o desaparecimento da irmã. Diz ter a certeza de que a filha tem a cabeça no sítio e não a quer pressionar ainda mais, pois isso poderá afastá-la irremediavelmente. Pediu-me para não contar a Mary, e eu assim fiz.
Por diversas vezes desde então, andei pela cidade à procura dela, depois de receber mensagens sem sentido do seu telefone, e por três dessas vezes tive de arrastá-la de bares duvidosos, completamente pedrada. O jornalista arranjou sempre maneira de desaparecer antes de eu chegar.
Numa das situações, estava tão desesperado que liguei a Ara para lhe pedir ajuda. Este ritual absurdo que criei ajuda-me a senti-la mais próxima. Como se, de alguma forma, fosse obter uma resposta sua à minha mensagem de voz.
— Vamos?
Sou o último a sair e fecho a porta devagar.
Caspian já está sentado no jipe, ao telefone. Este carro foi uma excelente opção. Sempre que podemos, vasculhamos as áreas ao longo do rio a que temos acesso, e Mary tem ajudado algumas pessoas de zonas mais remotas com medicação, curativos e conselhos médicos. Acho que ajudar os outros mitiga a sua dor e serve em parte para preencher o vazio que sente.
Luiz espera-nos dentro do barco. Temos percorrido o rio em todos os sentidos. Pondero, uma vez mais, se ele conhecia tão bem Anadir, como diz, pois acho que um verdadeiro amigo não se aproveitaria assim de uma situação tão delicada e difícil para sacar o máximo de dinheiro nestas circunstâncias. Cerro os punhos e sinto os nós dos dedos doerem da força que só agora me apercebo de que estou a fazer. Sempre que este pensamento me vem à cabeça, acabo por refrear as minhas suspeitas: é porque precisa do dinheiro e sabe que podemos pagar. Percebi que a vida aqui não é fácil e qualquer dinheiro extra é uma bênção. E ele realmente está a ajudar, portanto, afasto os pensamentos negativos.
— Boa tarde — diz ele.
Ora aí estão duas palavras que aprendi a dizer bem. As saudações de bom dia, boa tarde e boa noite. E mais algumas que me ajudam a desenrascar quando não tenho ninguém comigo para traduzir. Ele tem um sorriso no rosto, como se escondesse algum segredo ou tivesse descoberto algo de novo. O meu coração dispara na esperança de que seja uma pista relacionada com Ara, mas esmorece quando ele começa a falar.
— Este vento é bom para nos ajudar a subir o rio — comenta, de forma natural, enquanto desamarra a corda fina de um tronco velho de uma árvore.
— Olá — respondo secamente num sotaque que penso estar já perto da perfeição. Raios o partam por me dar falsas esperanças.
Mary nada diz e Caspian apenas faz um curto aceno com a cabeça quando entram para o barco. Eles estão desgastados e, apesar de não admitirem, sabemos que, mais cedo ou mais tarde, temos de começar a pensar em voltar à realidade. Ambos têm o seu trabalho, e Benny há de voltar para a escola, que começará em breve. Eu ainda não decidi o que fazer se eles regressarem a casa.
— Então — diz Luiz no seu inglês péssimo. — Onde vamos hoje? — Como se perguntasse a um grupo de turistas qual das maravilhosas atrações que a terra tem para mostrar querem visitar.
Puta que o pariu!
A expressão de Caspian é dura quando o encara, e limita-se a tirar o mapa do bolso das calças largas. Pousa-o em cima da proa e, com o dedo hirto, bate no ponto exato do mapa para onde vamos hoje. Sabemos que, uma vez mais, a nossa busca não dará em nada. Caspian e Mary sentam-se abraçados. Ela de olhos fechados, e ele a contemplar a água que lhe roubou o pai e a filha. Portanto, sim, acho que estes passeios nos ajudam a perceber e a aceitar a realidade.
— Luiz, achas que ainda há alguma hipótese de encontrarmos a Ara? — pergunto baixinho e fico admirado comigo mesmo.
— Sinceramente? — Ele encara-me com receio.
Faço que sim com a cabeça.
— A probabilidade já é pequena. — Fecho os olhos e suspiro. — Mas não impossível. A floresta é grande. Ela pode estar por aí. Ou então… — Cala-se.
— Então? — pergunto.
— Pode estar no mesmo sítio para onde foi o Anadir.
Será que ele se refere ao Céu?
— Que sítio?
— Quando éramos jovens… assim putos, como tu, mas mais fortes, claro… e já sabíamos navegar… — Ele começa a divagar e eu interrompo-o.
— Luiz, diz logo, caraças.
— Sofremos um naufrágio e ele esteve desaparecido muito tempo.
— Quanto tempo?
Observo as margens por onde passamos e noto que nas últimas semanas percorremos este trajeto dezenas de vezes. Já conheço determinados pontos e marcas, como um tronco mais retorcido ou uma curva mais apertada. O leito mais arenoso a formar uma pequena praia…
— Mais ou menos três anos.
— E depois?
— Depois, apareceu e trazia o filho. — Aponta com os dedos nodosos para Caspian. Ele e Mary conversam em tom baixo mas intenso. Parecem discordar de algo. — A explicação dele foi que ficou tão traumatizado com o susto do naufrágio, que foi procurar trabalho em São Paulo, onde conheceu uma rapariga e se casou.
— E ela morreu — concluo.
— Sim, parece que sim.
É a mesma história que eu conheço, contada por Anadir.
— Mas tu achas que não é verdade?
— Sim, tenho as minhas dúvidas. Penso que foi tudo uma grande farsa. — Ele aumenta a velocidade e eu desequilibro-me um pouco.
— Então, onde achas que esteve? — pergunto.
— Ali. — Aponta para a água.
— No rio?
— Não. Lá em baixo… — Baixa o tom de voz e aproxima-se mais de mim numa atitude conspiratória.
— Hum… onde? — Agora estou confuso com a conversa do velho.
— Não sei. Nunca descobri.
— Está bem… E aquele sítio onde nos levaste no outro dia, onde encontrei o porta-chaves? Achas que pode ter alguma relação?
— Talvez…
— Como assim?
— Porque foi naquela zona que o barco do Anadir foi encontrado… Das duas vezes. Há quarenta e tal anos e agora.
Franzo a testa e sento-me em frente a Caspian a matutar nas probabilidades. Ele resgata-me dos meus devaneios.
— Como estás? — pergunta Caspian.
— Bem — minto.
— Colt, queremos agradecer-te por tudo o que tens feito. Todo o apoio que nos tens dado, a nós e à Benny. Sem ti, não teríamos conseguido ultrapassar isto.
Ultrapassar?
— E vocês são o meu apoio.
— Estivemos a conversar e decidimos parar.
— Parar?
— Sim, está na hora de encararmos a realidade, de fazermos o luto da nossa filha e retomarmos a nossa vida — explica Mary, com um fio finíssimo de voz.
Como é que eles pretendem fazer isso? Como é que conseguem sequer pensar em trabalho quando a filha deles está desaparecida algures por aí?
— Não podemos parar, não agora. A Ara ainda continua desaparecida, e nós temos…
— Ela não está desaparecida, Colt. A nossa filha morreu. Temos de encarar a realidade, por mais difícil que seja.
— Não. Não morreu — insisto.
— Sabes que sim. — Caspian inclina-se e põe-me a mão no joelho. — Quanto mais tempo nos agarrarmos a esta realidade fictícia, pior será. Para todos.
— Temos outra filha. Temos de pensar na Benny, dar-lhe estabilidade. Descurámos a nossa atenção por muito tempo já.
Sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles tomariam esta decisão, mas tinha esperança de que a adiassem.
— Claro, se é essa a vossa decisão, tenho de respeitar.
Respeito, mas não concordo.
— Estávamos a pensar em fazer uma cerimónia aqui no rio, como fizemos ao meu pai. O que achas?
— Como quiserem.
— E depois fazemos o funeral em casa — acrescenta Mary.
Só podem estar a brincar comigo.
— Queremos fazer a cerimónia daqui a dois dias. Ajudas-nos?
— Sim — respondo. Mas o que me apetece mesmo dizer é: «Nem pensar!»
— Então, no próximo fim de semana vamos para casa. — Caspian dá um beijo à esposa e, com mágoa estampada no rosto, levanta-se para ir falar com Luiz.
Mary desvia o olhar do meu para esconder as lágrimas que lhe rolam pelas bochechas.
Luiz não ficou contente com a notícia, mas depois de Caspian lhe dar um «merecido bónus», ele afirmou que estará sempre à disposição para o que precisássemos.
Estamos na estrada de terra batida, de regresso a casa. Vou no banco de trás e observo as minhas mãos. Estão enrugadas e morenas. Algumas manchas surgiram devido à falta de protetor solar, que Mary tanto me aconselha a pôr.
— Conheces? — pergunta Caspian.
— O quê? — Levanto a cabeça e sigo o seu dedo indicador. Aponta para um carro que vem de frente. Como aqui não há mais nenhuma casa, sei que vem da nossa. Mas nem precisava, porque conheço o carro desportivo vermelho.
— Cabrão!
— Que foi? — Mary está alarmada.
— É o jornalista. Eu sabia que eles andavam a encontrar-se. — Estou exasperado. — Eu disse-te, Caspian!
— Tu sabias? — Mary dirige a pergunta ao marido.
— Não te queria preocupar, querida.
Percorremos os dois quilómetros que faltam e, quando estamos a chegar, Caspian quebra o silêncio.
— Eu falo com ela.
— Não, falamos os dois — diz Mary.
Para mim, a tal conversa que se prestam a ter com a filha mais nova já devia ter acontecido há muito tempo.
— Benny — chama Caspian cá de baixo, do hall, enquanto se descalça e arruma as sapatilhas num banquinho baixo e comprido que Mary improvisou e pôs à entrada a servir de sapateira.
— Benny, querida. Chegámos — chama Mary em voz alta ao subir as escadas para os quartos.
Entro na cozinha. Penso em beber um copo de água e, depois, pedir a chave do carro a Caspian para ir dar uma volta. Tenho a cabeça em frangalhos e preciso de uma boa distração. Já estive mais duas vezes com a bartender. Foram as duas tão intensas como a primeira, mas ainda não sei o seu nome. Estamos em sintonia; ela não diz, eu não pergunto.
Benny não responde.
— Reparaste se ele ia sozinho? — pergunto, saindo da cozinha de copo na mão.
— Acho que sim.
Um som agudo de alarme, vindo do andar de cima, assusta-me.
— Caspian! Colt! — grita Mary.
Subo as escadas de dois em dois degraus ao lado de Caspian e entorno alguma água pelo caminho.
Quando entro no quarto de Benny, deparo-me com um cenário de terror. Ela está na cama, somente de T-shirt e cuecas, deitada de barriga para cima, com a cabeça ao lado de uma poça de vómito. Espuma branca rodeia-lhe a boca semiaberta.
Mary bate no rosto da filha com firmeza, mas ela não reage. Como não sei o que mais posso fazer, passo-lhe o copo de água para a mão, e ela entorna-a no rosto da filha.
— Ela vomitou, o que é bom, mas o pulso está muito fraco — constata Mary. — Tem de ir já para o hospital. Têm de lhe fazer uma lavagem ao estômago.
— Chama uma ambulância — pede Caspian.
Uma nota enrolada, comprimidos e filas desalinhadas de pó branco ornamentam a mesa de cabeceira. É uma overdose e o cabrão deixou-a aqui a morrer. Desgraçado!
— Isso demora muito — elucido.
Pego numa manta que está aos pés da cama, tapo Benny e pego nela ao colo. Desço as escadas em passo rápido e enfio-a no banco traseiro do jipe. Enquanto ligo o carro, Mary entra para o banco traseiro. Põe a cabeça da filha ao colo e Caspian senta-se no lugar de pendura com os sapatos na mão.
Levo menos de metade do tempo que era suposto a chegar ao hospital. Pelo caminho, Benny dá sinal de vida, murmura qualquer coisa e vomita nas calças da mãe. Depois volta a ficar inerte. Paro o carro às três pancadas em frente à porta das urgências do Hospital Privado. Caspian já tem Benny ao colo e corremos os três pela porta automática. O segurança põe-se à minha frente e diz-me que não posso deixar o carro ali. Eu passo-lhe as chaves para a mão. Acho que ele percebe o meu desespero, porque as devolve e me deixa passar.
— A minha filha teve uma overdose — grita Mary em inglês, para ninguém em particular.
Ela é enfermeira nas urgências no Emory University Hospital e acredito que esteja mais do que acostumada a lidar com este tipo de situações, mas ao vê-la assim, tão descontrolada, percebo que esta é uma outra Mary. A Mary destroçada.
Dois enfermeiros empurram uma maca e vêm ter connosco. Caspian deita a filha.
— Há quanto tempo foi? — pergunta um dos enfermeiros.
— Há uma hora, talvez nem tanto — respondo, uma vez que nenhum dos pais encontra a resposta.
— O que consumiu?
— Não sabemos. Cocaína, comprimidos… — Mary chora e agarra-se à minha mão. Eleva o tom de voz. — Que espécie de pais somos nós, que nem sabemos o que a nossa filha anda a fazer? Não a posso perder também. Não a posso perder.
— Vamos entrar. Esperem aqui — anuncia o enfermeiro.
Arrasto Mary para uma cadeira que encontro livre e sento-a. Caspian segue-nos até à sala de espera e encosta-se à parede. Está branco como a cal e não emite um som.
— A Benny vai ficar bem, Mary. — Ela olha para mim, mas acho que não me ouve.
Olho para eles. Fantasmas de uma família outrora bonita, outrora perfeita. Era de esperar que numa hora difícil se unissem, mas a verdade é que cada um de nós escolheu lidar com a morte de Ara à sua maneira: Mary com álcool e comprimidos, Caspian com o trabalho, Benny com as drogas e péssimas companhias, e eu com os meus comportamentos de risco, sem me importar se me prejudico a mim ou às raparigas com quem fiz sexo desprotegido. Cada um de nós encontrou uma forma de se punir, de se culpabilizar pelo que aconteceu a Ara, e de entorpecer essa culpa e esses sentimentos com o que estava mais à mão. Estávamos todos lá, a ver isto acontecer, como um carrossel que gira sempre no mesmo sentido, mas nenhum de nós teve coragem de apanhar esse carrossel para auxiliar o outro. De outro modo, não tínhamos chegado a este ponto. Achava que tinha feito tudo para os ajudar a lidar com o desaparecimento de Ara. Afinal, foi a mesma coisa do que não ter feito nada.
Mas isto tem de acabar. E vai acabar.
Hoje. Aqui.
Não vou perder mais nenhum membro desta família.
E agora? Como é que eu vou dizer à Ara que desistimos dela?