17

Traição

As minhas mãos ensanguentadas, carne podre e uma cabeça perfurada por arpões, do Alba que matei, ao meu colo. Abro os olhos, incomodada com a luz forte que entra pela janela, o corpo encharcado em suor. A dor pelo que aconteceu com Isla e a culpa pela morte de Umi e pela vida que roubei a um ser vivo, começam a consumir-me a alma. Já é de manhã. Levanto-me com a cabeça confusa e reparo que ainda tenho vestida a roupa de ontem.

Faço um esforço para ordenar as ideias e lembro-me de que, por me doerem as costelas ao respirar, decidi deitar-me a descansar antes de tomar banho e parece que dormi o sono dos justos.

Sinto-me melhor fisicamente, mas o coração continua estrangulado e só penso em água para me refrescar.

Na casa de banho, dispo-me e formo um carrapito para prender o cabelo no alto da cabeça, mas quando vou a colocar o elástico, este rebenta. Procuro nos armários embutidos na parede, mas como não encontro nenhum, volto ao quarto e procuro no armário da roupa, junto das joias que a minha avó escolheu para mim e que eu ainda não tive coragem de usar. Tenho de arranjar uma forma de prender o cabelo; está demasiado comprido, e como o lavei ontem, não me apetece ter de o lavar outra vez.

Enrolo uma toalha no peito e saio do quarto para pedir à minha avó um elástico emprestado. Na sala, chamo por eles em voz alta.

Silêncio. E deles nem sinal.

Já na cozinha, encontro um bilhete sobre o balcão:

Estamos no CC. Come e descansa.

Até logo.

Avô

Subo as escadas para o piso superior e dirijo-me ao quarto dos meus avós, na esperança de aí encontrar um elástico. Afinal de contas, ela também tem o cabelo comprido e usa várias vezes o cabelo preso. Paro ao chegar à porta do quarto deles e chamo, pelo sim, pelo não. Não obtenho resposta e dirijo-me à casa de banho, que é onde julgo que irei encontrar o elástico. Abro, cautelosa, os armários e pesquiso cuidadosamente. Nada encontro. Começo a ficar impaciente, e decido que darei uma vista de olhos rápida no armário do quarto e se também aí nada encontrar, tomarei banho assim mesmo. Não quero sentir que estou a invadir a privacidade deles. Abro uma das portas do armário onde há um tabuleiro grande, idêntico ao meu, com colares, brincos e acessórios de todo o género para o cabelo. Sorrio e pego no mais prático. A porta está quase fechada quando, pelo canto do olho, vejo parte de algo que reconheço. A minha mochila! Está escondida na parte de baixo do armário, tapada com algumas peças de roupa.

Enterro a mão entre a roupa e arranco a mochila à força. O porta-chaves de uma baleiazinha, que Colt me deu e que eu prendi na presilha da parte de fora, já não está lá, mas o meu nome escrito com marcador permanente, no bolso externo, continua ali. Desbotado mas percetível. Não posso acreditar. Porque é que a avó tem as minhas coisas escondidas? Tenho de conversar com o meu avô sobre isto.

Apresso-me a verificar se está tudo intacto. Encontro lá dentro a carteira dos documentos, o livro Jane Eyre, a tablete de chocolate preto que não cheguei a abrir, uma lanterna e o meu telemóvel.

Levo a mochila para o meu quarto e espalho as coisas em cima da cama para observar melhor todos os objetos que me identificam. Pego no telemóvel e tento ligá-lo. Nada acontece. Está sem bateria. Ou talvez estragado. Apesar de a mochila ser impermeável, deve ter entrado água. Estou furiosa e quero pedir de imediato explicações à minha avó. Visto-me à presa e volto a colocar os objetos dentro da mochila. Junto ao monte a minha pistola de arpões e saio em direção ao Colégio Central.

Subo as escadas magistrais e, assim que me acerco das portas do enorme edifício, a cortina de água é de imediato interrompida. Entro no espaçoso hall com um balcão corrido de pedra branca opaca e pergunto ao rapaz que lá está se pode chamar Raina e Anadir.

— De momento, não podem ser interrompidos. Estão em conferência — diz, num tom eficiente, o rapaz com olhos de falcão do lado de lá do balcão.

— Agradeço mesmo que lhes digas que a neta está aqui e tem urgência em falar com eles.

— Vou ver o que posso fazer — responde, serenamente, o meu interlocutor.

Limito-me a acenar com a cabeça.

— Venho já. Aguarda, por favor.

Levanta-se e sobe as escadas largas e imponentes.

Passados alguns minutos sem sinal dele ou dos meus avós, transponho a passagem ao lado do balcão para as escadas. Subo três andares até encontrar placas identificativas. Lado direito: sala virtual, de repouso e pensatório; lado esquerdo: salas de grupo, de leitura, de reuniões e Salão do Consílio. Arrisco ir para a esquerda.

As pessoas nos corredores olham para mim sem grande interesse, por isso continuo até encontrar uma porta com uma placa que diz «Salão do Consílio». Abro a porta com cuidado e espreito. É grande, com uma mesa de madeira brilhante e oval, onde está sentado um pequeno grupo de pessoas. Llyr encabeça a reunião. Do seu lado direito está Nwil. Do lado esquerdo, o casal Peacox.

A minha avó, Hensel e Arcas — que me olha intrigado assim que me vê — estão sentados na primeira de um conjunto de filas ordenadas e crescentes do anfiteatro. A sala é clara e bem iluminada, diferente do tom alaranjado que me acostumei a ver desde que aqui cheguei. Outras pessoas nas filas traseiras ouvem com atenção o que é discutido na mesa. O meu avô está sentado numa dessas cadeiras, numa fila na parte mais elevada da plateia. Entro e faço-lhe sinal com a mão.

Quando me vê, levanta-se rapidamente e vem ter comigo. Leva-me para fora da sala por um braço.

— Não devias estar… — diz.

— Sabes o que é isto? — interrompo-o. Tiro a mochila dos ombros e mostro-lha.

O rosto dele empalidece e endurece. Empurra-me a mão que segura a mochila para baixo com força.

— Falamos em casa — responde entre dentes.

Pela expressão que faz, tenho a certeza de que reconheceu a minha mochila. Nem posso crer que esteve sempre perto de mim.

— Tu sabias que a avó a tinha guardado?

— Não foi a Raina… — lastima-se.

— O quê, foste tu? Porquê?

— Ara, é mais complicado do que imaginas.

— E achas que não tenho capacidade para perceber, é isso? Por isso preferes mentir-me? — Sinto-me traída. Não esperava que, logo ele, me fizesse uma coisa destas.

— Tens, claro que tens.

— Acho que está na hora de me dizeres, de uma vez por todas, porque estou aqui. Sei que há algo maior a acontecer e tenho o direito de saber o que é.

— Falamos logo à noite. Vai para…

— Deixa, não te dês ao trabalho. Estou farta das tuas respostas evasivas e meias-verdades. Eu descubro por mim.

Não quero ouvir nenhuma das desculpas que ele possa ter para me dar desta vez. Só quero sair daqui. Desato a correr na tentativa de eliminar a cólera que sinto.

Esta é a altura perfeita para testar a teoria de encontrar um buraquinho na gruta onde me esconder. Passo a ponte larga em frente ao Colégio Central e, quando chego ao fundo, viro à esquerda em direção aos bazares. Percorro o caminho com ligeireza, mas pelo canto do olho vejo as bancadas coloridas com roupa, utensílios, joalharia e comida. Tropeço e bato com os pés em algumas pedras salientes, mas nem isso me impede de continuar.

Julgo ouvir o meu nome algumas vezes, mas limito-me a pôr um pé em frente ao outro, com velocidade.

Algumas centenas de metros depois, entro num túnel largo e pouco movimentado e ando sem olhar para trás. Quero estar sozinha, isolar-me. Preciso de pôr as ideias em ordem e tenho de encontrar um sítio onde ninguém me importune.

Vagueio pelos túneis até estar demasiado cansada e me sentir perdida. Preciso de descansar. De me sentar, refletir. Não quero voltar para a casa dos meus avós, não tenho coragem de enfrentá-los. Não depois do que o meu avô fez. Ele sabia que eu tentaria entrar em contacto com os meus pais. Mas porque é que mentiu relativamente aos meus pertences? Porque não confiou em mim?

Desde que cheguei a Aquorea estou, na maioria das vezes, como um peixe na água: feliz e enquadrada. Sinto-me aqui, neste sítio desconhecido, com pessoas igualmente desconhecidas, mais em casa do que alguma vez me senti noutro lugar. O facto de eu sonhar com Kai há tanto tempo também deve ser um fator determinante para a minha chegada. E a atração que eu sinto por ele é, sem dúvida, inexplicável, mas também importante. Afinal, será que vim cá parar por causa do meu avô ou do Kai? Estou encurralada, presa. Trouxeram-me para cá contra a minha vontade e, sem me aperceber, fui feita prisioneira.

Estou um farrapo. Gostava de ter vontade de chorar, pois as lágrimas poderiam trazer-me algum alívio. Queria poder avisar a minha família de que estou viva e bem de saúde. Mas sei que é impossível avisá-los sem pôr em causa a segurança de toda a população de Aquorea.

Penso no olhar terno de Colt. No seu rosto carinhoso sempre que me olhava. Nas palavras de conforto e na forma como me tranquilizou sempre que precisei; sinto saudades da sua voz e do seu riso. Da vida simples e sem dramas. Também desejo muito abraçar os meus pais e a minha irmã, tenho saudades deles. Por outro lado, não me imagino a voltar à vida que tinha…

Mas tem de ser. Não posso pôr em risco a vida dos que conheci, aprendi a respeitar e a amar, tentando comunicar com a Superfície. Tenho de me ir embora e só me ocorre uma forma de o fazer. Se é a água a decidir, então é com ela que me vou entender.

Sinto a cabeça pesada e os olhos doridos. O rosto de Kai preenche o meu pensamento. Parece tentar comunicar comigo, dizer-me algo. Forço-me a bloqueá-lo. Penso na praia. No sol forte e quente de verão; e em todas as coisas que gosto de fazer à Superfície nesta época. Depois do que me parecem horas a deambular, pouso a mochila no chão e deito a cabeça em cima dela. O chão húmido e duro faz-me estremecer, mas o cansaço leva a melhor. Os olhos ficam mais e mais pesados até sentir uma onda de calma invadir-me.

A água é límpida, fresca e brilhante. Desliza pela pedra e pinga suavemente para a quietude do pequeno lago. Dá-me pela cintura. Os seixos pretos, de diversos tamanhos, que o rodeiam parecem ter sido aqui estrategicamente colocados, um a um, de forma a trazer ainda maior perfeição a este fantástico cenário, mas há um azul-safira que me chama a atenção. Pego nele. Fecho os olhos, inspiro devagar e longamente e afundo-me na água. Quero sair daqui. Ir para casa. E esta água terá de me levar de volta. De uma forma ou de outra, irei embora. Abro os olhos e vejo uma grande mão aproximar-se do meu rosto. É Kai e pressiona-me para o fundo.

Com um salto, acordo sufocada e a transpirar. Está escuro, mas algo brilha ao meu lado. Ainda de olhos pouco abertos e confusa do pesadelo, vejo uma parede de água a poucos metros de mim. Não me lembro de a ter visto antes de adormecer.

Pestanejo várias vezes para focar a visão e perceber onde me encontro. Sob o meu corpo, uma cama com lençóis de branco puro e perfeitamente engomados convida-me a ficar mais um pouco. Levanto-me sem fazer barulho e vejo o meu arpão numa pequena mesa de apoio, ao lado da cama. Apresso-me a colocá-lo. É também nesta altura que reparo que visto uma T-shirt escura que me tapa quase até aos joelhos. Sinto-lhe a textura macia e o odor agradável. Apesar de um sentimento de segurança, não sei onde estou nem como vim cá parar. Uma mesa grande de madeira, ornamentada com livros empilhados, fica num canto. Encostado à mesa, um saxofone preto e brilhante. Um sofá com ar confortável, de costas viradas para a cama, tem à frente outra mesa baixa onde estão mais livros e um lindo relógio com duas sereias esculpidas, uma de cada lado dos ponteiros.

Uma vitrina mal iluminada expõe com requinte as peças mais bonitas e antigas que já vi. Parecem peças encontradas em navios abandonados, mas estão bem conservadas e parecem ser estimadas por quem aqui as colocou. Aproximo-me para observar a bússola dourada com incrustações de rubi, quando um barulho se aproxima do meu lado direito e eu viro-me, instintivamente.

— Vejo que já acordaste. Como te sentes? — pergunta Kai serenamente.

Eu continuo a olhar para ele com ar incrédulo. O que está ele aqui a fazer?

Onde estou?

— Dormir fez-te bem, estás menos refilona. — Continua a olhar para mim.

Já sei onde estou…

— Quanto tempo dormi? — questiono.

— Apenas algumas horas. Apesar de eu achar que te faria bem descansar mais um pouco.

Foi ele quem me despiu?

— Vá lá, Rosialt, pergunta o que queres saber. — O sorriso é comprometedor e divertido.

— O que estou aqui a fazer?

— O que tu queres realmente saber, formosa, é como vieste cá parar e quem te despiu. — Prende os polegares nos bolsos dos calções.

— Sim, também — digo assertivamente.

As minhas feições estão duras como a rocha das paredes. Os músculos do rosto latejam e doem. Desde o resgate de Isla e a morte de Umi, sei que temos muito que conversar. Não percebo o porquê de tanto secretismo e por que razão todos insistem em mentir-me ou contar-me meias-verdades. Sou uma prisioneira aqui. Um sítio que aprendi a amar, mas que não fui eu a escolher. Alguém escolheu por mim, o meu livre-arbítrio foi-me retirado.

As minhas mãos transpiram. Inspiro fundo e fecho os olhos por um instante na tentativa de me acalmar.

— Da mesma forma que foste ter aos cuidados médicos no dia em que cá chegaste: ao meu colo. Está a tornar-se num hábito. Quanto à roupa, ou era uma T-shirt velha, ou um encontro com a Dona Morte. Pelo bem da tua saúde, decidi por ti — termina de sorriso rasgado a ver quão sem jeito me deixa.

Fico envergonhada, sem saber o que dizer.

— Lamento, uma vez mais, todo o trabalho que te dei. Vou-me embora — grunho e começo a andar para ir buscar as minhas coisas.

Ignorando a minha total falta de agradecimento, ele apanha o meu braço e prende-o na sua mão forte. Eu paro e ele solta-me.

— Qual é a tua ideia de andares a esconder-te em sítios que não conheces? Sabes o perigo que correste? — Vira-me as costas e pega num copo que está em cima da mesa baixa. — Bebe, vai fazer-te bem — diz, oferecendo o copo que tem na mão.

— Não quero.

— Tens de ter cuidado por onde andas, Rosialt. — Passa os dedos agitados pelo cabelo e, de ar sério, insiste: — Bebe. — Deposita-me o copo na mão e vira-me as costas novamente. — Volto daqui a pouco. És bem-vinda, se quiseres ficar. Eu durmo no sofá.

Embora me pareça mais uma ordem do que um convite, fico com o copo na mão e de boca aberta, a pensar no que acabou de acontecer. Claro que me vou embora, não fico aqui. Mas para onde vou? Não quero ir ter com os meus avós, estou demasiado desiludida e chateada para os confrontar de novo. Não quero explicar a Petra e a Mira o que o meu avô fez, até porque ainda não sei os motivos reais e posso causar mal-entendidos. Falar com Isla e pedir asilo também não é uma opção, visto ser a família de Kai que me daria abrigo. E Isla ainda não está em condições de ter mais preocupações, pois precisa de recuperar do susto do rapto e da violência que sofreu. Voltarei para os túneis escuros. Lá ninguém me encontrará. Só Kai, possivelmente. Todos estes pensamentos esfaqueiam a minha mente.

Olho em volta e tento encontrar uma resposta para o meu dilema. Sento-me num cadeirão bojudo e olho o mar. Na água cardumes de pequenos peixes bioluminescente bailam sem parar.

A luz alaranjada das pedras de sal é convidativa. Levanto-me e percorro o espaço. É pequeno mas aconchegante. Simples e prático, típico de um homem. Uma casa de banho grande e clara, e uma pequena cozinha bem organizada e equipada. Um aroma a mar e perfume masculino invade as minhas narinas, seguindo-se um arrepio que eriça todos os pelos do meu corpo. Cheira a Kai. As peças únicas dos destroços dos barcos dão-lhe um ar de museu, e os livros espalhados fazem-me querer perder-me neles.

Acalmo a respiração, até me concentrar, e vou buscar a minha mochila, que está em cima do sofá. Tenho de ligar o telemóvel, preciso de arranjar uma forma. E só me ocorre uma pessoa que pode ter os meios necessários; mais propriamente, a energia de que preciso. Visto a minha roupa, já seca, e, com ousadia, abro o armário de Kai para procurar uma peça de roupa com capuz.

Saio depressa. Dirijo-me às plantações. Tenho de encontrar Gensay e suplicar que ele deixe de lado o seu mau feitio para me ajudar. Recordo que quando Beau me levou a conhecer os cultivos indicou a Sala de Energia, perto dos campos onde Gensay estava. Tento passar despercebida para que não me interrompam ou interroguem. Não tenho tempo a perder. Apesar de saber que é um tiro no escuro, tenho de tentar. Só de pensar que há uma remota possibilidade de falar com os meus pais, sinto em mim uma energia renovada.

O colete de malha muito fino, com capuz, que «roubei» a Kai não está a surtir o efeito desejado de passar despercebida; algumas pessoas — bastantes, até — cumprimentam-me pelo nome. Cubro a cabeça com o capuz e penteio o cabelo para a frente de forma a tapar o máximo possível o rosto. Só espero não atrair ainda mais a atenção com este ar suspeito. As minhas pernas tremem com a expectativa, e eu acelero o passo. Algum tempo depois, o cheiro a terra molhada e estrume fazem-me perceber que estou muito próximo das plantações. O brilho dos cristais é tão intenso que me obriga a semicerrar os olhos o resto do caminho. Leva-me a pensar que, para estarem assim tão claros e brilhantes, estará um dia de sol fantástico à Superfície. Um sol que eu amo e receio não sentir mais na minha pele. Avisto os Cultivadores de volta das hortas e dos animais, numa organização perfeita. Corredores de legumes bem delimitados brotam da terra como se o sol estivesse realmente sobre eles. Um sistema de rega retira água do rio para irrigar as colheitas.

Pássaros multicolores, do tamanho de pombos, chilreiam e voam entre as plantações, debicando as sementes espalhadas pela terra. O aroma a solo, o som da água corrente e as cores vivas predominantes são a alma deste sítio.

Gensay corta uma planta com um caule alto e de grandes folhas verdes. Dispõe, com cautela, as verduras num carrinho de mão e passa rapidamente a foice no caule seguinte com uma destreza impressionante. Está embrenhado nas suas tarefas. Observo-o por uns segundos antes de o chamar. O seu rosto é sereno, com um ligeiro sorriso nos lábios. Apesar do ar carrancudo que costuma exibir, percebo que Gensay é, afinal, feliz.

Olha para mim e franze o cenho. Sorrio-lhe tristemente. Após colocar a planta que cortou no carrinho, ele caminha na minha direção.

— O que estás aqui a fazer? — pergunta, alarmado. — O Anadir anda à tua procura. O que se passa? Ele anda a perguntar em todo o lado se alguém te viu. Ainda emite um alerta se não te encontra.

— Discutimos. Não foi nada de especial — desvalorizo. — Preciso da tua ajuda. Não arriscaria vir aqui se não fosse realmente importante. És o único que me pode ajudar.

Ele cora ao mesmo tempo que um ar curioso lhe adorna o rosto.

— Podemos ir para um sítio mais privado? — pergunto ao ver que ele não fala.

— Segue-me.

Sigo os seus passos com rapidez por entre as altas plantações. Percorremos um labirinto de barbas de milho, compridas e douradas.

Paramos numa clareira pequena no fim dos terrenos de cultivo, já no início da floresta.

— Sabes o que é isto? — pergunto, ao mostrar-lhe o telemóvel.

— Claro, não sou ignorante — responde, um pouco irritado. — É um dispositivo eletrónico que usam na Superfície para comunicar.

— Telemóvel — digo, com um meio-sorriso. — É meu. Encontrei-o dentro da mochila que trazia quando me afoguei e vim aqui parar. O meu avô tinha-a escondido. — Finalizo de semblante triste, e vejo que ele percebe o porquê da minha discussão com o meu avô.

— E precisas de mim para…?

— Preciso que me ajudes a ligá-lo. Está sem energia. Consegues fazê-lo?

— Na remota hipótese de o conseguirmos ligar… Para que precisas dele?

— Quero tentar falar com os meus pais.

— Não podes. Não te posso ajudar. E se descobrem que te ajudei, castigam-me. Fico a limpar detritos de jagwes para o resto da vida.

Nem me preocupo em perguntar o que é um jagwes.

— Só preciso de lhes dizer que estou bem. Ajuda-me, Gensay, por favor — imploro, ao pousar a minha mão no seu antebraço nu. — Não vou fazer nada que vos possa prejudicar. Prometo. Vocês já são a minha família.

Estou a dizer a verdade, mas uso todo o meu encanto para o conseguir levar a fazer o que eu preciso. Sinto-me um encantador de serpentes e percebo o poder que as mulheres têm quando querem convencer um homem a fazer alguma coisa.

Ele olha para a minha mão e em seguida para o meu rosto. Suspira lentamente.

— Está bem, vamos tentar. Vou confiar em ti, Ara. E eu não confio em ninguém. — Tem os olhos muito esbugalhados.

— Não te irás arrepender — asseguro.

Subimos o caminho de terra batida da encosta onde as casas estão enterradas e os seus telhados parecem um jardim. Fileiras de casas todas semelhantes, com a parte da frente em madeira e os telhados verdes salpicados de flores. Chegamos ao ponto mais alto da estrada, onde está um portão baixo e pouco intimidatório, com um guarda de aspeto rude. Atrás dele está a parede de rocha — o limite de Aquorea — com um largo túnel que ele guarda.

O que haverá lá dentro?

— Não fales — diz Gensay, olhando para trás.

Anuo, ainda com o capuz enfiado até aos olhos.

— Muito trabalho, Ellem?

— Nem por isso — responde com poucos modos. — Que fazem aqui?

Viro as costas à conversa de forma a parecer descontraída e para que o guarda não me reconheça. A vista daqui de cima é fabulosa. Veem-se os telhados-jardim das casas em escada e os campos bem organizados — como é apanágio de Aquorea. Do outro lado dos campos estão as oficinas dos Tecelões onde Beau me levou. É ali que, com algas e fibras de plantas e árvores, os Tecelões fabricam os tecidos usados por toda a população. Sinto a cabeça quente e olho para cima. Estamos muito próximos dos gigantes cristais azuis e amarelos; se erguer o braço e me esticar bem, quase posso tocar num.

— Anda lá, é rápido — ouço Gensay dizer. — Tenho de impressionar a miúda, para ver se tenho sorte. Se é que me faço entender — diz, com uma gargalhada seca, em voz baixa.

Rio-me com a ideia de Gensay tentar impressionar alguma rapariga e com a história elaborada que ele conta ao guarda para nos deixar passar. Para onde, ainda se mantém um mistério para mim. Mas eu confio em Gensay. Afinal, foi o único que teve o cuidado de me calçar e levar a casa na minha primeira e única bebedeira.

— Vão lá. Mas não demorem — diz, passando-nos uns óculos pretos, semelhantes a óculos de sol. — E nada de se despirem aí dentro — continua, com voz áspera. Abre o portão e desvia-se para nos deixar passar.

Olho para o chão na tentativa de reprimir uma gargalhada e Gensay — vermelho como um tomate — simplesmente emite um grunhido, que eu calculo seja de pleno embaraço perante a suposição do guarda.

Percorremos a passos rápidos um túnel. E, no final…

— Uau!

Estou boquiaberta.

É uma gruta repleta de cristais gigantes do teto ao chão. Há apenas alguns caminhos largos, modelados para oferecer passagem. Os óculos escuros fazem agora sentido. Está tão claro que se alguém entrar aqui sem óculos certamente cegará.

— Tenho essa reação sempre que aqui venho.

— Com as tuas conquistas?

Ele mostra-me uns dentes brancos, com um dos incisivos encavalitado no outro.

— Sim, são tantas que até as confundo.

— Sabes, não és tão rezingão como dás a entender. No fundo, és um amor — afirmo, com toda a sinceridade. — E acho mesmo que este é um excelente sítio para impressionares uma rapariga. Portanto, se fosse a ti, começava a tratar disso.

— Vou ponderar. Vamos, não temos muito tempo. — Aponta para uma rampa que leva a umas máquinas com centenas de botões e emaranhados de fios. — Esta é uma das principais fontes de energia de Aquorea. Temos também as turbinas hidráulicas que a vão buscar às correntes.

— É impressionante. — Ajusto os óculos.

— Dá-me lá o telemóvel.

Vou à mochila e passo-lho para a mão. Ele observa-o, cuidadosamente, estudando com atenção as suas entradas, e toca no ecrã preto.

— Ele carrega-se com um fio que se liga aqui — mostro, indicando o local de encaixe do carregador — e depois liga-se a uma tomada. Só que não tenho o carregador… Nem sei se funcionará. Apesar de a mochila ser impermeável, pode ter entrado água…

— Vamos ver o que conseguimos fazer — anuncia entusiasmado. — Esta energia não é igual à que vocês têm na Superfície, é muito mais potente. Com um cristal deste tamanho — baixa-se e apanha uma pequena pedra de cristal amarelo que me coloca na mão — conseguimos ter energia para quase um mês. Portanto, temos de ter cuidado para não o fritarmos — diz, referindo-se ao telemóvel, agitando-o no ar.

— Faz o teu melhor. Fico-te agradecida, de qualquer das formas.

— Passa-me aquilo — indica um complexo monte de fios junto da colossal rede de quadros de distribuição de eletricidade.

O suor escorre-me costas abaixo e pela testa, em bica até às sobrancelhas. Passo-lhe o novelo de fios e dispo o colete — que atiro para o chão —, ficando somente com a singlete fina de alças. Com o telemóvel na mão, pega em múltiplos fios e começa a testar os que servem para o que pretende fazer.

— Qual o tempo médio até a bateria ter a carga completa? — pergunta-me.

— Mais ou menos duas horas, acho — respondo, sem grande certeza. — Onde vais ligar isso?

Gensay está com o mesmo ar furibundo como quando o conheci. Percebo que está extremamente concentrado, pois não obtenho resposta.

— Onde vais ligar isso? — repito.

— Hã?

— Vais ligar os fios ali? — Aponto para os grandes quadros de eletricidade carregados de botões e monitores.

— Sim, mas tenho de perceber qual o tempo máximo que posso ter os fios ligados. Pelos meus cálculos, penso que será entre três e três segundos e meio.

— Só?

— Sim, mais tempo e podemos estragar a bateria. Vamos jogar pelo seguro. — Termina de encaixar um fio verde na extremidade do telemóvel e dirige-se a um dos quadros, quando ouvimos um grito.

— Ei — grita Ellem. — Onde estão vocês, desgraçados? — reclama. — Já sabia que não vos devia ter deixado entrar. Namoradinhos dum raio.

— Temos de nos despachar. — Gensay soa preocupado. — Assim que eu encostar o fio aqui — aponta para um pequeno disjuntor —, contas até três. É o tempo máximo. Okay?

— Sim. — Começo a dançar com as pernas, sem sair do lugar.

O guarda já nos viu e começa a correr na nossa direção.

— O que estão a fazer aí? Parem!

— Agora — grita Gensay.

— Um — conto com a voz a tremer. — Dois — continuo. — Tira!

Ele foi rápido e eu fico grata por ver o telemóvel intacto. Pelo menos, aparentemente, não vejo sinais de queimado. Mas acho impossível em apenas três segundos o termos conseguido carregar. E ainda falta saber se não está estragado devido ao mergulho. Pego na mochila, mas não tenho tempo de apanhar o colete do chão. Corremos na direção oposta ao guarda, que continua a proferir palavras para mim desconhecidas, mas que suponho serem palavrões.

— Vai — ordena Gensay, deixando-me passar à frente dele num estreito buraco por entre os cristais.

Passo e estico o meu braço para ajudá-lo, mas o guarda agarra-o pelo colarinho da T-shirt.

— Larga-me — berra Gensay. Com as duas mãos, empurra o peito robusto do guarda, que se desequilibra, permitindo-lhe esgueirar-se para junto de mim.

— Boa — congratulo-o, mostrando-lhe um sorriso.

Corremos em direção à saída a rir como duas crianças pequenas depois de fazerem traquinices. Continuamos colina abaixo e ouvimos os gritos de Ellem até nos encontrarmos escondidos pelas plantações.

— Toma. — Ele passa-me o telemóvel para as mãos. — Agora é contigo, espero que resulte. Mas peço-te que não faltes com o prometido.

— Prometo — respondo.

— Segue por aqui, vais ter à estrada. Eu distraio o Ellem. Ele não é muito rápido. Nem muito inteligente. — Ri-se e indica-me um caminho estreito por entre as plantações.

— Obrigada por tudo. — Dou-lhe um beijo na bochecha.

Ele fica estático, sorri e começa a correr. Eu sigo o caminho que ele me indica e em pouco mais de cinco minutos já avisto de novo a estrada que me levará a casa. Mas que casa? Vou ter com os meus avós? Vou para a casa de Kai, que tem um comportamento que até hoje não consegui decifrar.

Sento-me para recuperar o fôlego e acalmar os nervos que intoxicam o meu corpo. De mãos trémulas, suspiro. Não estou preparada para lidar com a deceção de não funcionar. Fito o telemóvel.

Liga-te, por favor, peço para comigo.

Inspiro, carrego no botão de ligar/desligar e espero. O ar dentro dos meus pulmões é pesado e dói. Nada acontece. Expiro e os meus olhos ardem enquanto eu observo, expectante, o objeto inanimado nas minhas mãos. Pouso-o no chão, no meio das minhas pernas, e atiro-me para trás em desespero. Nada. Não tenho nada. Como acreditei que seria possível? Carregar um telemóvel com cristais. Que ridículo!

Desalentada, deixo-me ficar deitada, perdida nos meus pensamentos e fascinada com as luzes da cidade, que por esta altura são mais suaves — o que é típico do início da noite, quando as pessoas saem dos seus trabalhos e vão conviver para a praça, para as esplanadas ou simplesmente para as suas casas.

E, de súbito, um apito que me parece vir de muito longe.

Ergo o tronco e fito incrédula o visor do telemóvel, que ganha vida com a mensagem de boas-vindas. Pego nele e encosto-o ao meu rosto, inundada de alegria.

Lindo! Até lhe dou um beijo e permito que termine o processo de iniciar. Continuo a olhá-lo e espero que dê algum sinal de rede. Mas nada acontece; nem um tracinho. Mesmo assim, estou radiante, é uma vitória termos conseguido ligá-lo. Continuo a observá-lo. O sinal de bateria está cheio. Gensay é um génio. Conseguiu. Agora só tenho de arranjar um plano para poupar a bateria ao máximo até encontrar rede, porque será impossível chegar próximo da sala de energia novamente sem sermos apanhados.

Levanto-me e, por cima do topo das verduras que me camuflam, observo a estrada apinhada de pessoas. O meu avô já deve ter posto meia cidade à minha procura. A não ser que Kai lhe tenha dito que eu estou bem. É bem provável, responsável como é. O telemóvel vibra e ouço o toque de notificação de mensagem recebida. Encaro, pasmada, o telemóvel que continua a vibrar. Mas o sinal de rede permanece morto. Com a cabeça à roda e a respiração ofegante, desbloqueio-o e marco o número de correio de voz. Do outro lado ouço a mensagem padrão:

«Tem três novas mensagens e trinta e duas chamadas perdidas. Nova mensagem de voz recebida no dia 12 de junho às 6h20. Mensagem de…» A voz familiar que ouço do outro lado faz o meu coração saltar uma batida. «… Colt Patterson.»

Estou certa de que o meu coração não vai aguentar de tanta felicidade, quando ouço Kai:

Rosialt, se não apareces rápido, vou buscar-te. E, desta vez, não serei meigo.