-Segura o leme. — ordena Luiz na sua voz rouca. — E estabiliza.
Desde que Caspian, Mary e Benny voltaram para os Estados Unidos, muita coisa mudou.
Eles insistiram em que eu regressasse com eles. A minha mãe ameaçou deserdar-me se eu não fosse para a universidade e até fez o meu pai telefonar-me (coisa rara), mas com calma e muita paciência consegui convencê-los de que isto é o melhor para mim neste momento. Considero este tempo como o ano sabático que Ara tanto falava em tirar. Para conhecer o mundo e fazer coisas novas. E estou, de facto, a conhecer-me melhor.
— Sim, capitão — respondo ao seu comando. — Paro?
Ele acena afirmativamente, eu mato o motor e atiro ferro borda fora. Só estamos nós no pequeno barco, mas ele trata-me como se eu fosse toda uma tripulação.
— Passa-me a rede.
Eu assim faço.
Não pretendo viver às custas da minha mãe, por isso, quando o procurei, uns dias depois de ficar sozinho, e lhe pedi que me ensinasse a arte da pesca e de navegar, ele riu-se na minha cara. Implicou comigo durante quase uma semana, até perceber que eu falava a sério e me comprometeria a seguir as suas regras.
Saímos de terça a sexta-feira, quando a Lua começa a declinar. Por volta da hora de almoço — depois de levar o peixe ao mercado, lavar o barco e organizar o material —, vou para casa e descanso. O que ele me paga é uma ninharia, por isso procurei outro trabalho que me dê para as despesas. Percebi que não preciso de muito para viver. Até porque tenho casa de borla.
Quando Caspian me viu irredutível na minha decisão, pediu-me para eu me hospedar em casa de Anadir e tomar conta dela. Pedi-lhe para ao menos me deixar pagar uma renda, pois isso me faria estar mais à vontade, mas ele recusou. Pediu apenas para ter tudo arrumado e limpo. Portanto, passei de ter a minha mãe a fazer-me tudo, para tratar de uma casa com quatro quartos e um jardim. Sim, jardim. Comecei a plantar algumas flores e já se vê cor para além do verde e do castanho das árvores da floresta envolvente.
O meu telemóvel vibra e eu tiro-o do bolso. Não o tenho com som porque Luiz diz que espanta os peixes. É Mary. Lá são menos duas horas. Deve estar a fazer um intervalo no turno da noite e quer conversar um bocadinho. Há três semanas que não toca numa gota de álcool e eu não podia estar mais orgulhoso.
— Vamos lá, moleque. Nada de celular aqui, já te avisei.
Volto a guardá-lo no bolso. Ligarei mais tarde.
— Sim, Luiz.
Ele olha-me de esguelha.
— Sim, capitão — corrijo. E ele sorri por baixo da barba.
Ele tem-me ensinado imenso. Não só sobre pesca, mas sobre a vida. Perdeu um filho muito jovem, que também se afogou neste mesmo rio, com apenas onze anos. Já tem três netos de duas filhas; uma é professora numa grande cidade e a outra é peixeira, pelo que fica com uma parte da apanha. Por isso acho que ele também fica contente por me ter por perto. Não passam fome, mas não levam uma vida folgada. É uma vida de muito trabalho e o dinheiro que junta é para ajudar as filhas. Já me disse, por duas vezes, que gostava de encontrar o que Anadir encontrou. Assim talvez tivesse uma vida mais fácil, tal como o seu velho amigo. Está obcecado com isso e guarda rancor ao velhote por ter lutado por uma vida melhor, ao passo que ele ficou por aqui. Mas não fico indiferente às histórias nem aos comentários que ele meia-volta faz.
Hoje estou ansioso por chegar a casa e descansar. A bartender, que fiquei a descobrir se chama Thaís, é afinal a proprietária do MEXI-NÃO e arranjou-me um trabalho de apanha-copos. Tem somente duas regras: «Trabalhas todos os dias das dez da noite às duas da manhã, e não voltamos a transar», porque isso vai contra os seus princípios. Sem hesitar, selei o acordo com um aperto de mão.
O facto de trabalhar quinze horas por dia, entre a pesca e o bar, faz-me valorizar os pequenos momentos que tenho para mim. Penso em Ara todos os dias, mas já não penso nela todas as horas do meu dia. Ela quereria que seguíssemos com as nossas vidas e tenho a certeza de que aprovaria a minha decisão de ficar no Brasil. Muitas vezes, dou por mim a pensar que, se não fosse esta desgraça, eu nunca teria tido coragem de tomar as decisões que tomei, de mudar o rumo à minha vida de forma tão radical. Uma vez mais, devo-o a ela. Apesar de o vazio no meu peito ainda não estar selado, começo a sentir que tudo acontece por um motivo e a cor começa a regressar à minha vida. Sei que um dia a vou reencontrar. Um dia, quando for velhinho e morrer, voltarei a vê-la. Até lá, vou viver a vida de forma que também ela se orgulhe de mim.
O meu ombro trémulo acorda-me e percebo que é o telemóvel a vibrar debaixo dele. Lembro-me de que não devolvi a chamada a Mary. Repreendo-me mentalmente. Às apalpadelas, tateio a cama e nem olho para o visor quando atendo.
— Mary. Desculpa, esqueci-me…
— Olá, Colt. — Uma voz feminina, mais jovem, interrompe-me.
Pisco os olhos e olho para o telemóvel. A Benny?
— Benny? Tudo bem? O que se passa?
— Está tudo bem. Acordei-te? Parece que te acordei.
— Hum… Sim, estava a dormir.
— Desculpa.
— Não há problema, Benny, estás à vontade. Então, o que se passa? — Volto a perguntar.
— Nada. Estou a ligar só para te dar os parabéns, é isso… Parabéns!! — grita, animada, do outro lado da linha.
Oh, tinha-me esquecido completamente. Afasto o lençol e sento-me.
— Obrigado, Benny. Nem me lembrei de que era hoje, acreditas?
— Como não? Fazes dezanove anos! Tens de comemorar. — Ela ri-se. — Tenho pena de não estar aí contigo, mas é pelo melhor, sabes?
Se sei! Assim que chegaram a casa, Mary tratou de arranjar uma clínica para a filha começar a fazer uma desintoxicação. Não tem sido um processo fácil, principalmente porque vem associado ao luto da irmã. E ainda não tínhamos falado com ela desde então. Ela foi embora com muita raiva de mim, e a acusar-me de a denunciar aos pais. Disse inclusive nunca mais me perdoar por a afastar do amor da vida dela. Eu não liguei a nada disso. Desejei-lhe boa viagem e recordei que tem em mim um amigo para todas as situações.
— Sim, sem dúvida. Só quero é que estejas bem. Como te sentes?
— Bem. — Ouço-a suspirar. — Sabes, a minha dependência era mais emocional do que física…
Pois, pois…
— Acredito.
— Não sei o que me levou a fazer aquelas coisas.
— A tristeza. Todos cometemos erros. — E também eu suspiro.
— Este telefonema é também para te pedir desculpa… Fui uma perfeita estúpida contigo. Só me querias ajudar e eu fiz asneira. Parecia que estava possuída pelo demónio.
— Estavas consumida pela dor. Assim como nós.
— Não sei o que vi nele! Sinceramente, não fazia o meu género. Suponho que tenho de descobrir. — A gargalhada dela faz-me vibrar.
— Pior, ele usou-te como escudo humano. — Também me junto à brincadeira.
— Que horror! Pois foi. Voltaste a vê-lo?
— Benny…
— Oh, não, não é nada do que estás a pensar. Não tenho saudades nem nada disso. É só mesmo por curiosidade. A última vez que estive com ele e aconteceu… aquilo… ele contou-me que o tinham despedido do estágio. Parecia desesperado e por isso é que precisava de desanuviar.
— Se era estágio, não foi despedido — brinco.
— Oh, tu percebes.
— Não. Nunca mais o vi, Benny.
Nos dias seguintes procurei-o por todo lado, mas ninguém o viu. Por um lado, ainda bem, porque acho que o teria matado.
— Olha, e como está o teu pai? — pergunto, dando por terminado o assunto anterior.
Já não falo com Caspian há quase duas semanas. Passámos de ter a necessidade de falar todos os dias para retomarmos as nossas vidas e novas rotinas.
— Ele está bem. — E não deixo de reparar no seu tom alegre ao falar do pai.
— Que bom.
— Deixou o escritório, sabias?
— A sério? Não sabia.
— Sim, a semana passada. Oh, deve estar à procura do momento certo para te dar a novidade. Passa muito mais tempo em casa e a minha mãe diz que também vai pedir no hospital para fazer só o turno de dia. Acho que com isto da minha irmã e tudo o mais… Não lhe vão dizer que não.
Concordo.
A emoção na voz de Benny transporta-me para a nossa vida passada. A vida fácil e plena que levávamos quando ainda éramos inocentes. Há apenas três meses, mas numa outra vida. Uma vida onde Ara ainda existia.
— Que bom, Benny. Fico mesmo muito feliz por te ver assim, animada.
— E tu, como estás?
— Estou porreiro. Cansado.
— A minha mãe disse-me que viraste pescador! — Está cética.
— Mais ou menos. Aprendiz. — Rio-me. — O Luiz está a ensinar-me umas coisas.
— O capitão Santos? — Ela começa a tossir quando tenta conter o riso. — És cá uma peça.
— Sim… isso tudo — confirmo. — Obrigado por teres ligado, Benny. Foi uma boa surpresa.
— Já queria ter ligado mais cedo, mas…
— Sem problema. Vamos falando, pode ser?
— Combinado. Adeus, Colt.
São quase sete da tarde. Tenho seis chamadas da minha mãe, duas de Mary, uma de Caspian e muitas mensagens por ler de vários amigos. Tenho de pôr os telefonemas em dia, pelo menos os mais importantes. Ligo à minha mãe primeiro. Depois de quase trinta minutos a matar saudades e a escutar todos os conselhos que ela resolveu dar-me para os meus dezanove anos, decido tomar um duche rápido para sair de casa e jantar num sítio bom antes de iniciar o turno no bar.
Não como uma refeição que não seja enlatada ou pré-cozinhada desde que Mary foi embora, por isso hoje mereço mimar-me um pouco.
Faço a barba e visto uma camisa em vez de uma T-shirt desbotada e calço botas em vez de ténis. Olho-me ao espelho. Será que Ara ia gostar? Estou mais forte e acho que cresci. Os meus músculos desenvolveram-se e fisicamente nunca me senti tão bem. Agora compreendo a obsessão de Ara por desporto. Este ano tínhamos planeado fazer uma festa de aniversário conjunta. Agora isso nunca acontecerá. Tenho de lhe ligar.
Sei que este ritual não é bom e não quero trocar uma dependência por outra, mas lidarei com isso mais tarde. Hoje é dia de festejar. Uma vez mais, marco o seu número. Espero que a gravação com a sua voz termine e mal ouço o apito começo a falar:
— Parabéns a mim! — digo, bem-disposto.
Para não me atrasar, uma vez que o meu turno começa às dez da noite, resolvo ligar a Mary e a Caspian já do carro. A esta hora, eles devem estar juntos, assim mato dois coelhos de uma cajadada. Pego nas chaves do carro velho que comprei e abro a porta da entrada. Dou de caras com Caspian a subir os degraus do alpendre com um saco de viagem pequeno na mão.
— Caspian! — brado.
— Apanhei-te em casa! — Ele sorri, pousa o saco no chão e abraça-me. — Liguei-te, mas não atendeste.
— Pois não. Estava a dormir e quando acordei levei com a minha mãe até há bocado. — Rio-me e ele dá-me uma palmada amigável nas costas.
— Ainda nem liguei à Mary. Que boa surpresa! Podias ter-me dito que vinhas. Teria ido buscar-te ao aeroporto. — Baixo-me e agarro no saco. Faço um gesto para ele entrar na sua casa e sigo-o.
— Assim deixava de ser surpresa. Parabéns! Que tal o teu dia?
— Normal. Nem me lembrava de que fazia anos até a Benny me ligar.
— Ela ligou-te?
— Sim, foi outra boa surpresa. Pareceu-me bem. Como é que ela está?
— Está bem. E é precisamente isso que me traz cá. — Crispa os lábios.
— Então?
— Falamos depois. Para estares assim todo janota, deves ter planos com alguma miúda.
Se fosse há umas semanas, sem dúvida teria. Não com uma, mas várias. O ponto de viragem para eu acordar da porcaria que andava a fazer da minha vida foi quando vi Benny, em coma, coberta em vómito e seminua em cima da cama. Aquelas horas de espera no hospital fizeram-me perceber que eles tinham razão, tínhamos todos de fazer o luto por Ara, mas para isso teríamos também de assumir a nossa quota-parte de culpa dos comportamentos irracionais e perigosos que andávamos a ter. Foi uma conversa longa e dolorosa, em que cada um de nós expurgou os seus demónios. Uns dias depois, eles regressaram aos Estados Unidos, eu decidi ficar e mudar.
— Ia jantar. Sozinho. — Encolho os ombros. — Tens fome?
— Esfomeado.
— Então, vamos. — Volto a sair para o alpendre. — No teu carro. — Rio-me e aponto para o monte de sucata estacionado em frente à casa.
— O jardim está a ficar lindo. Buganvílias! O meu pai teria adorado.
— É, tenho-me mantido entretido…
— Aqui tem, senhor. — A rapariga sorri para Caspian. — E para si. — Pousa o prato à minha frente. — Bom proveito.
A funcionária do restaurante fino que escolhi é atenciosa, mas sem ser vulgar. Retira-se e o meu apetite faz uma festa ao ver o naco de carne bem preparado.
Pelo caminho, enviei uma mensagem a Thaís a dizer que Caspian apareceu de surpresa e que hoje não irei trabalhar. Ela respondeu: «Com empregados assim, vou à falência. Mas OK. Amanhã trabalhas a dobrar», e eu sorrio, porque sei que amanhã me vai fazer ficar lá a arrumar e a limpar até ao último cisco.
— E eu que pensei que ia jantar sozinho.
— Achavas mesmo que não aparecia para festejar contigo? A tua mãe ficou muito triste por não poder vir, mas não conseguiu trocar os turnos. A Mary e a Benny mandam um abraço. Também queriam vir, mas com o início das aulas e tudo…
— Claro.
Eu também não traria Benny para aqui tão cedo, penso.
— Mas estamos cá nós. — Ele sorri e começa a atacar a comida que tem no prato. O sorriso, no entanto, está mascarado, é indecifrável.
— Caspian, o que se passa? Disseste que o que te trouxe aqui foi a Benny. Está com problemas?
— Tens visto o Fabrici? — pergunta ele de chofre.
— Não. Porquê?
— Há uns dias recebi este email. — Caspian pega no telefone, mexe na tela e passa-mo para a mão.
Uma notícia de jornal. No título, com letras a bold, pode ler-se:
Nova desgraça na família Rosialt
Sexo e drogas deixam menor à beira da morte
Em baixo, fotografias de Benny. As fotografias que ele tirou depois de a encher de drogas e a abandonar. Como assunto do email, uma pergunta: «Quer que seja publicado?»
A comida está prestes a voltar ao ponto de partida. Com a mão livre, bebo um gole de refrigerante.
— Filho da puta! Quanto é que ele quer? — Falo demasiado alto e as mesas em nosso redor repreendem-me com o olhar pelos meus maus modos.
— Vinte mil dólares.
— Temos de o encontrar.
— Já lhe paguei. — Caspian suspira e cobre as mãos com o rosto.
— Sim? E então?
— Ele ameaça publicar se não lhe der mais vinte mil.
— Não lhe podes pagar. Ele vai continuar a extorquir-te.
— Esta notícia não pode vazar, Colt. Não percebes, isto ia destruir a Benny. Ela começou agora a recuperar, tem vontade de sair de casa, de comer… Está a voltar à normalidade. E a Mary não aguentaria tanto desgosto.
— Então, o que queres fazer?
— Encontrá-lo.
— Quando a Benny estava no hospital, procurei-o por toda a parte, mas não o encontrei. Já não deve estar aqui. Cobarde como é, deve ter fugido da cidade. Ou do país.
— Pedi a um amigo que rastreasse a origem do email. Ele está cá.
Benny, hoje ao telefone, disse-me que ele estava desesperado porque tinha sido despedido. Precisa de dinheiro e encontrou aqui uma galinha dos ovos de ouro.
— A sério? Então vamos encontrar o desgraçado.