21

Com amigos assim…

No regresso à dependência dos Protetores, pensativa e inquieta, reflito sobre onde poderei ouvir sossegada as restantes mensagens de voz. Tenho ainda algumas horas pela frente até ao jantar e ocorre-me a floresta, os campos e até a praia secreta; mas não irei para nenhum desses lugares. Não posso arriscar ir para um local onde corro o risco de ser encontrada ou vigiada.

Escutarei as mensagens em casa de Kai e ele terá de estar de acordo, caso contrário, irei embora. E terei de encontrar rapidamente uma outra solução, pois por muito tentador que seja, não posso ficar em casa dele. Talvez fique nas camaratas com os meus colegas ou tente arranjar um apartamento, se me for permitido. Também terei de lhe revelar o que os meus avós disseram sobre Fredek e Alita. E não sei como lhe dizer o que ouvi do seu pai e de Adro. Serão todos eles possíveis traidores? A ser verdade, este será, provavelmente, o maior desgosto que ele sofrerá. E, uma vez mais, serei eu a sujeitá-lo a essa dor.

Absorta nos meus pensamentos, dou um salto quando escuto o som agudo de uma sirene similar à de um quartel de bombeiros.

— Corram! — berra alguém. — Corram!

Observo por instantes o fluxo de pessoas agitadas à minha volta. Os pais pegam nas crianças ao colo e correm na direção das casas. Ainda sem perceber o que se passa, penso que poderá ser um ataque.

— O que se passa? — pergunto a uma rapariga que vem a correr com uma menina de cabelo louro encaracolado ao colo.

— Os Albas — responde, sem fôlego. — Esconde-te. Anda comigo — continua, sem parar de correr.

Fico a vê-la afastar-se enquanto se junta a outras pessoas nas ruas estreitas.

Não me posso esconder. Tenho de ajudar as pessoas e combater os intrusos. Espero que os meus avós estejam em segurança. Corro para a beira-rio, onde ainda estão algumas pessoas mais velhas que não se deslocam com tanta rapidez. Pego num homem com mobilidade reduzida pelo braço e ordeno a um grupo que se mantenha perto de mim. Arrasto o homem, quando ouço gritos mais fortes e receosos dos que nos rodeavam.

— Onde vive? — pergunto ao idoso por cima do barulho.

O homem é bastante mais velho que o meu avô e tem um ar debilitado. Está atemorizado e, ao observar melhor, reparo que foi ele a fazer o gesto de cuspir para o chão quando passei mais cedo. Sem falar, aponta para uma rua estreita para onde se dirigem algumas pessoas, que desaparecem em seguida. Os Albas aproximam-se a grande velocidade, quer pela estrada, quer pelas paredes, com uma destreza assustadora. Onde estão os Protetores numa hora destas? Sei que Kai está no mar com Wull e agradeço por isso, pelo menos está em segurança. Mas penso em todas as pessoas que ele podia ajudar a salvar se estivesse a combater e a liderar. Resolvo, por isso, enviar-lhe um pedido de ajuda através da mente, esperando que desta vez ele o receba sem outros pensamentos confusos associados.

Estamos a ser atacados. Precisamos de ti.

— Não se preocupe, vou ajudá-lo. Vai ficar em segurança — prometo ao velhote.

Estranho a forma como ele me olha. Como se não acreditasse que eu o vá ajudar. Parece estar com mais medo de mim do que dos atacantes. Está em choque, só pode.

Consigo ver que os Albas estão cada vez mais próximos. Não são muitos, uns cinco, mas este número conseguirá fazer muitos estragos na população.

— Não se afastem de mim — grito para trás para os que nos seguem. Entretanto, alguém vai para o outro lado e começa a ajudar-me a puxar o homem. É Beau. Fico contente por ver um rosto amigo.

— Para ali. — Beau aponta para uma rua estreita ladeada de casas baixas e sem saída.

— Ali não. Não tem saída.

— Confia em mim.

— Não sei se será boa ideia ir para as casas, são fáceis de penetrar.

— Não! — grita alguém atrás de nós.

Paro abruptamente e olho para trás. Um Alba ataca violentamente uma mulher. Ela voa uns metros em direção ao rio novamente.

— Leva-o. Já vou ter convosco — grito a Beau.

— Não vás, ela já não se salva. Tens de vir connosco. Anda, Ara — suplica Beau.

— Não posso, tenho de ir. Leva-os para segurança — berro, enquanto corro em direção à água.

Nos passadiços, os Protetores correm e disparam as suas armas. Alguns já se encontram cá em baixo também a lutar e a ajudar os habitantes.

Corro o mais que posso, a lamentar não trazer comigo a minha pistola de arpões. Esbracejo e grito para que o Alba desvie a atenção da mulher que ele agride. Já vejo sangue e sei que Beau provavelmente tem razão. Mas tenho de tentar salvá-la.

Assobio alto e corro na direção deles. O Alba vira a sua atenção para mim e salta nas duas pernas como se fosse um canguru. O corpo fedorento aterra em cima de mim e sinto todo o seu peso esmagar-me. Com as unhas compridas e afiadas, arranha-me o rosto e o abdómen, na tentativa de espetar, mutilar e matar. Mas eu defendo-me. Dou socos, com toda a força que consigo, nos seus braços, e com os joelhos tento chegar-lhe às partes íntimas para o magoar. Ele espeta uma mão no meu braço e sinto as garras entrarem-me na pele como facas afiadas. Tenta agora morder-me. O ar dele é vitorioso.

Com a mão, prende-me o braço magoado no alto da cabeça e continua a tentar morder-me. Eu esperneio e luto como posso. A boca dele aproxima-se. Num ato de proteção, ponho a mão esquerda, que tenho livre, em frente ao meu rosto. Neste movimento de milésimos de segundo vislumbro o relógio que foi presente da minha irmã e sinto o aroma do trovesco preso nele. O Alba continua a aproximar a boca e de repente estanca, brada um uivo esganiçado em sinal de descontentamento. De um salto, sai de cima de mim e começa a trepar uma parede em direção aos passadiços.

Atordoada, levanto-me e olho em volta. Os Protetores lutam em maioria, mas eu não consigo ouvi-los por causa do sangue que me pulsa nos ouvidos. Já não se veem as pessoas deambularem ou fugirem. A mulher que foi atacada tenta rastejar e corro para ajudá-la.

— Como está? — pergunto. Ela não responde. Tem os olhos fechados e apenas murmura baixinho.

Ajoelho-me e puxo-a pelos braços até a conseguir ter de pé. Felizmente, é mais leve que o outro homem, mas está em muito mau estado. As roupas rasgadas e ensanguentadas e o rosto gravemente marcado não me dão certeza de que viverá.

— Vai ficar bem, tenha força. — Ela traz um vestido verde-alface cheio de folhos que atrapalham um pouco, mas lá consigo carregá-la.

Vou para a rua onde Beau se dirigiu com o grupo de pessoas resgatadas e reparo que as casas estão todas com as cortinas de água abertas e permanecem vazias. Onde estão eles? Olho para a mulher, que está agora inconsciente e cujo corpo eu, literalmente, arrasto. Sinto cada vez mais dor no meu braço direito e o sangue quente que escorre em bica faz-me ter a cabeça à roda.

Sigo até ao final da rua, mas dou com o nariz numa parede de rocha branca rugosa. Pouso a mulher no chão de forma a descansar e pensar no que fazer a seguir. O som da sirene já não se ouve e os gritos agora são de luta. Gritos de guerra, não de pavor. Pondero chamar por Beau, mas não quero atrair sobre nós atenções. Tenho de ser cuidadosa. Penso em Kai e desejo que ele esteja bem. Quero deixá-la em segurança e voltar para ajudar os meus colegas. Mas não posso simplesmente abandoná-la aqui. Não neste estado.

Ouço passos de corrida atrás de nós e viro-me pronta para combater. O vulto é enorme, do tamanho de um Alba e igualmente bem constituído. Quando a luz bate no seu rosto, vejo Ghaelle. Gelo. O rosto dele está duro, impassível. Mas ao mesmo tempo parece seguro e fiável. Estou dividida por causa do sentimento forte que nutro pelo filho dele, mas não posso baixar a guarda e esquecer o que ouvi ainda há poucas horas.

— Estás bem?

— Sim. Ela é que não. — Indico a mulher inanimada aos meus pés. — Está assim há alguns minutos, foi brutalmente atacada. Está a perder muito sangue.

Ele baixa-se e toca-lhe com dois dedos no pescoço a verificar a pulsação. Faz um ligeiro aceno com a cabeça a confirmar que ela respira.

— Tu também. — Agarra-me no braço direito com força ao mesmo tempo que olha em volta a verificar o perímetro.

Quase deixo de respirar. Vai matar-me, penso. Aproveitar que ninguém está a ver e tratar do assunto. Pela primeira vez desde o início da luta, sinto medo. Será a sua oportunidade de fazer o que o ouvi combinar com o capataz de Llyr. Sem testemunhas, serei apenas mais uma vítima do ataque. Dou um passo atrás e bato na parede de rocha. O corpo dele, à minha frente, parece feito do mesmo material. Ele é enorme e sei que nunca terei hipótese de ganhar esta luta. Segura-me no braço com mais firmeza.

— Não… — digo, na defensiva, agitando o braço na tentativa de me libertar. Pondero implorar para que não me mate, mas acho melhor agir com dignidade nos últimos momentos que me restam. Não irei sem dar alguma luta. Quiçá, se gritar, alguém poderá ouvir-me e vir em meu auxílio.

— Mantém-te quieta. E calada.

Puxa por uma manga da sua T-shirt e rasga-a. As tatuagens ficam totalmente à mostra e vejo uns círculos bem desenhados dentro de outros maiores. Parecem mundos diferentes; uns dentro dos outros. Acompanhados por labirintos e pelo Sol. Algumas espirais fazem lembrar o turbilhão das ondas. Todas estas tatuagens significarão que ele é um dos que consegue ir à Superfície? Ou será apenas devoção pela Terra, na sua forma mais completa?

— São ta moko — diz.

Olho-o inexpressiva, por isso ele continua:

— As tatuagens. São maori, um tributo aos meus antepassados.

Com agilidade, enrola o pedaço de pano em volta do meu braço e aperta-o com força. A dor é intensa. Arrasta-me pelo braço para um canto escuro da parede e mete a mão dentro de um buraco pequeno.

— Eles ainda não descobriram este segredo — diz-me, em tom conspiratório.

Após um chiar quase silencioso, uma pequena mas espessa porta abre-se à nossa frente, dando visibilidade para dentro de uma sala onde estão umas trinta pessoas, claramente assustadas. Beau e o grupo que ele levou estão sentados no chão a um canto. Fico tão feliz por vê-los que o meu corpo relaxa. Beau tem o seu braço em volta dos ombros de uma rapariga de cabelos coloridos que chora copiosamente. Ele olha-me de relance, mas não sorri por me ver. Parece incomodado.

Ghaelle empurra-me para dentro e vira-me as costas. Volta segundos depois com a mulher nos braços, como se esta nada pesasse. Fecha a porta atrás de si. Fico perplexa. Como não sabia ainda da existência deste esconderijo? Provavelmente, já o terão usado algumas vezes nos últimos tempos. Como é que ninguém me falou dele?

— Ela precisa de ajuda. Vão buscar a caixa de instrumentos médicos — ordena. — Está aqui algum Curador?

Um homem passa rapidamente pelos outros, pega nela ao colo e pousa-a, com a ajuda de outras duas pessoas, numa cama que está encostada ao canto da sala.

— Poucos teriam feito o que tu fizeste — atira o velhote que eu praticamente tivera de arrastar antes da chegada de Beau.

— Fiz o que tinha de ser feito.

Pousa a mão dele no meu ombro e olha atentamente, como se estudasse a minhas feições.

— Nem todos são capazes de colocar a própria vida em risco por alguém que não conhecem. Muitas vezes até por alguém que conhecem. — Olha para Beau quando o diz.

Estará ele a referir-se ao facto de Beau não ter voltado para trás para ajudar a mulher que estava a ser atacada? Não é essa a função dele. Ele é um Mediador. Provavelmente, estava assustado como os outros e queria procurar abrigo. Reflito e continuo a achar que tomou a decisão certa.

— Estou a ser treinada para tal, cumpri a minha função — remato ao olhar para Ghaelle.

— Agradeço-te por teres parado para me ajudar quando mais ninguém o fez, e acho que falo em nome de todos os que aqui estão quando te peço desculpa por te termos julgado erradamente — lastima, de olhar envergonhado.

Olho-o confusa. Talvez se refira ao que andam a dizer: a eu trazer a desgraça associada. Mas não foi isso mesmo que acabou de acontecer uma vez mais? Posso ter ajudado, mas apenas ajudei a limpar uma situação que fui eu a causar, pelos vistos centenas de anos antes do meu nascimento.

— Estás confusa, eu sei, mas neste momento tens de nos deixar tratar dessa lesão e descansar. E eu tenho de ter uma conversa muito séria com a minha filha e os restantes Membros do Consílio, para que não te mandem embora. — A voz dele transborda afeição e agradecimento enquanto se encaminha para a beira da cama.

— A filha dele faz parte do Consílio? A Alita? — murmuro para o vazio.

— Afirmativo — diz Ghaelle, respondendo à minha pergunta. — Causaste boa impressão.

— Aparentemente.

— Tens de tratar disto. — Ghaelle desvia o assunto ao passar os dedos pelo meu ferimento para avaliar a sua gravidade. O seu timbre de voz é grave e profundo. — Não te mata, mas se queres evitar que infete e fique com cicatriz, tens de tratar já.

Eu simplesmente continuo muda e pensativa. Teve a oportunidade perfeita para se livrar de mim. Porque não o fez? Neste momento não interessa. Estou viva e posso continuar a fazer o que devo: proteger.

— Temos de ir — digo-lhe, com a mão a apertar o meu braço ferido, que lateja. — Temos de ajudar os outros.

— Tu ficas aqui. Não estás em condições de lutar. Trata desse ferimento — diz em voz baixa.

— Mas eu quero ir — reclamo.

— É uma ordem direta, Rosialt. Não me questiones. — Usa um tom autoritário, militar. — E quando puderes, faz uma visita à minha filha, ela tem saudades tuas. — Faz o pequeno aceno tão familiar.

Fico chateada por não poder ir, mas obedeço e vou ter com a mulher que alguns Curadores rodeiam. Limpam-lhe os ferimentos e estancam o sangue. Curvo-me ao lado dela na cama.

— Como é que ela está?

— Viva, graças a ti — responde um homem baixo e barrigudo que vinha também no grupo que tentei ajudar.

— Vai ficar bem? — Continuo angustiada ao ver que ela ainda permanece de olhos fechados.

— Sim. Logo que a situação lá fora estiver controlada, vai para a clínica. Lá temos o que é preciso para que recupere rapidamente.

— Tira isso. — Umas mãos delicadas ajudam-me a tirar as alças da mochila.

A roupa cola-se ao meu corpo com o suor e o sangue. E só agora sinto as dores nas costas. Levo uma mão atrás para massajar. Até este momento, não me lembrei de que tinha a mochila nas costas, nem me lembrei de a tirar. Lutar com ela não foi uma boa ideia e, provavelmente, devo estar com muitos hematomas, pela dor que me inunda o corpo.

A sala é claramente um abrigo. É toda em rocha escura, sem qualquer conforto; obviamente, não foi arquitetada para se passar muito tempo aqui dentro. No entanto, tem algumas cadeiras espalhadas; do meu lado direito, a todo o comprimento da parede, estantes carregadas com caixas e potes com água, mantimentos e medicamentos. Vejo também alguns cobertores e há uma única cama, onde a mulher está a ser tratada.

Beau está sentado em cima de um cobertor com a cabeça encostada à parede, de olhos fechados, e parece dormir tranquilamente. Como é que consegue? O silêncio é total, à exceção dos pequenos soluços de choro da rapariga que ele abraçava anteriormente, mas que agora está agarrada a outra da mesma idade.

Deixo que me façam o curativo, bebo um pouco de água e vou buscar um cobertor para ter algum conforto no chão frio. Encosto-me a um canto; não sei quanto tempo ficarei aqui e quero estar sozinha para pensar em tudo o que aconteceu hoje. O corpo começa a sentir os efeitos da descarga de adrenalina. Está moído. Resolvo vestir um hoodie limpo. Abro o fecho da mochila e no cimo da pilha de roupa está o meu telemóvel, uma vez mais, intacto. Aconchego-me ainda mais no canto e ligo-o. Abafo o som de boas-vindas com a roupa. Já sei como vou matar o tempo enquanto estiver neste buraco. Ouvirei as mensagens de Colt.

Fico contente por verificar que ainda tem a bateria no máximo. Tapo a cabeça com o capuz, marco rapidamente o número do centro de mensagens e obedeço a todas as indicações dadas pela voz da gravação. Tenho duas mensagens por ouvir.

«Nova mensagem de voz. Mensagem de Colt Patterson.» É a voz dele. Recebida no dia 19 de julho às 23h45:

«Estava a ouvir esta canção e lembrei-me de ti.»

A melodia de You are the Reason, de Calum Scott, ressoa como pano de fundo.

«Lembras-te de combinarmos que, se não tivéssemos par para o baile, iríamos juntos?» Um riso profundo. «Pois bem, não tenho par. Nunca planeei ter e esperava que tu também não, pois o meu desejo sempre foi ir contigo. Ganhava coragem para te abrir o meu coração nessa altura. Que totó, deves estar tu a pensar? Pois sou.»

Ele faz as perguntas e responde.

«Sempre que te pedia conselhos sobre as outras raparigas era para ver se tinhas alguma reação, se te fazia um pouco de… ciúme», assume. «Sempre te conheci, mas nunca soube bem o que pensavas. Por vezes sentia que me deixavas aproximar-me e tentava assumir tudo, mas quase no mesmo instante fechavas-te novamente. És diferente de todas as raparigas que conheço.» Um longo suspiro. «Como não estamos no baile e o meu tempo de gravação é limitado, concedes-me esta dança?»

O volume da música aumenta e é tudo o que ouço. O meu coração aquece. Fico aqui, de olhos fechados a apreciar este momento e a pensar como seria se tivéssemos ido ao baile. Um verso chama a minha atenção:

I’d climb every mountain

And swim every ocean

Just to be with you

And fix what I’ve broken

Oh, ’cause I need you to see

That you are the reason[5]

E não tenho dúvida de que ele está a fazer tudo ao seu alcance para me encontrar. Se ele tivesse tido a coragem de se declarar, o que lhe diria eu? Aceitaria o seu sentimento e retribuiria?

Imagino-me nos seus braços. Danço com ele ao som da música, quando, infelizmente, a gravação termina.

O sofrimento deles é incalculável. E aqui estou eu a causar a desgraça e a infelicidade dos que me amam e nunca desistirão de mim.

Olho em redor e quase todos descansam, encostados uns nos outros, ou na parede. Outros estão deitados no chão em cima dos cobertores finos. Mas Beau tem os olhos arregalados na minha direção e exibe um olhar reprovador e surpreendido por me ver agarrada ao dispositivo móvel. Desligo o telemóvel de imediato e ponho o braço para baixo com naturalidade. Sorrio-lhe e volto a encostar a cabeça na parede, na esperança vã de que ele não tenha visto.

Tenho muita curiosidade de ouvir a última mensagem, mas terá de esperar. Eu sei que eles estão a sofrer; no lugar deles sentiria o mesmo. Tenho de tomar uma decisão muito rapidamente; após ouvir isto não dá para adiar mais.

O meu corpo está todo dorido devido à posição e ao chão duro, mas acho que passei pelas brasas, porque acordo com alguém a chamar-me.

— Acorda, menina. Já podemos sair — diz em voz baixa uma mulher. Já saíram todos, restamos apenas nós as duas. Surpreende-me Beau não ter vindo chamar-me quando a porta se abriu.

O ar cá fora não me parece o mesmo. É doentio, rarefeito. Não se veem corpos, sangue, nem pessoas feridas, apenas a normalidade de qualquer outra noite, mas sinto-a diferente.

Vejo Hensel e apresso-me a ir ter com ela.

— Hensel… Está bem? Feriu-se? — pergunto quando, de cabeça baixa, enrola um xaile colorido em volta do corpo.

— Ara! Os teus avós devem estar tão preocupados contigo. — Não responde à minha pergunta, mas eu posso ver que fisicamente ela está sem um arranhão. — Vou avisá-los de que estás bem.

— Estou bem. E eles… — Até tenho medo de acabar de formular a pergunta.

— Sim, estão bem. Não te preocupes. Salt Lake tem um dos melhores esconderijos de Aquorea, uma vez que os que lá vivem são quase todos velhotes. — Sorri, com ar maroto, sem se incluir neste rol. — Vais ter com eles?

Não lhe quero dizer que vou ter com Kai, e mudar-me para lá de malas e bagagens, pelo que opto por dizer:

— Tenho de ir à dependência dos Protetores. Estive presa este tempo todo. Quero ver como posso ajudar.

— O Regente aconselhou o recolhimento em casa. Mas as pessoas querem saber se todos estão bem, se alguém foi levado ou morto e como estão os feridos.

— Claro, é compreensível. Por isso, vou ver se precisam de mim. Por favor, diga aos meus avós que estou bem e que, assim que possível, irei vê-los. — Num gesto irrefletido e surpreendente em mim, inclino-me e dou-lhe um beijo na face.

— Digo sim, querida. Fica descansada. E tu, diz ao meu neto que vos espero para jantar assim que possível. Trata de ti e dele. O Kai tem tendência para se esquecer de si mesmo em prol dos outros.

Faço um sinal de entendimento com a cabeça.

— Fica combinado.

Passo a Ponte-Mor com a rapidez. Quando chego à dependência dos Protetores, vou direta ao apartamento de Kai, apenas para verificar que está vazio.

Desço novamente as escadas estreitas do corredor que leva à cantina e à sala de treinos. Ouço barulho vindo da sala de treinos e corro para lá, mas paro abruptamente assim que chego à entrada. Está a abarrotar. Os alunos, tanto do Primeiro como do Segundo Estágio, estão sentados no chão. Os Protetores, encostados à parede esquerda da sala, mantêm uma posição descontraída, porém, escutam atentamente. Ghaelle, de pé, fala com autoridade, mas agradece-lhes pelo esforço e trabalho feito hoje. Kai está de um lado e Adro do outro.

— Rosialt? — O rosto de Kai é duro e os olhos estão vidrados de preocupação.

Ele percorre apressadamente a sala na minha direção, passando no meio das pessoas que estão sentadas no chão. Alguns reclamam enquanto são pisados acidentalmente e todos os rostos se viram para trás. O cabelo está despenteado e o seu uniforme rasgado e ensanguentado na zona do estômago e nas pernas. Lutou. Portanto, ouviu a minha mensagem.

Gelo perante o seu olhar ansioso. Aproxima-se de mim e agarra-me nos braços.

— Estás ferida.

A voz revela pânico quando passa os dedos na ligadura transparente do meu braço. As suas mãos envolvem o meu rosto e os olhos procuram os meus, suavizando-se assim que me encara. Por momentos julguei que me fosse beijar aqui mesmo.

— Nã…

Os seus braços envolvem-me com rapidez e puxa-me contra si com força, num abraço. Os meus rodeiam automaticamente a sua cintura. Não me consigo mexer. Ele suspira com força contra o meu cabelo. E depois inspira calmamente algumas vezes.

Ouvem-se assobios e risinhos. E ainda um: «Boa, Shore», vindo de Petra.

— Estou bem — digo, afastando-me um pouco. — Estão todos a olhar — aviso baixinho, com os olhos arregalados para a plateia que nos observa.

— Que se danem — refila com a testa encostada à minha. Este pequeno gesto que ele tem comigo tantas vezes deixa-me sempre de pernas bambas.

— Como é que tu estás? — sussurro e passo os dedos pelo corte que tem na barriga.

— Bem, melhor agora. Ouvi a tua mensagem. Voltei o mais rápido que consegui.

— Sabia que ouvirias.

— Vamos. — Tenta puxar-me para fora da sala, mas agora que sei que ele está bem, podemos esperar um pouco mais. Quero ficar e saber o que aconteceu e o que Ghaelle tem para dizer.

— Não. Quero ouvir — friso.

Ele larga-me a mão.

— Está bem. Senta-te, então. — Indica o chão.

Encaminha-se novamente para junto do pai. Boris, sentado na primeira fila a sorrir, faz-lhe um fixe com a mão. Kai olha-o com ar sério, o que faz o amigo tirar o ar apatetado do rosto.

Petra tem na cara sangue e lama e o cabelo emaranhado num rabo de cavalo parcialmente desfeito. Apetece-me ir ter com ela, procurar o seu ombro amigo, mas não quero importunar mais ainda, pelo que decido sentar-me no sítio onde estou.

— Bem-vinda, Arabela — entoa Ghaelle. — Folgamos todos em saber que estás bem, não só aqui o meu primeiro-comandante — acrescenta com uma piscadela de olho para o filho, que mantém o rosto impassível e prende os braços atrás das costas endurecendo ainda mais a sua postura.

Ponho-me a pensar porque será que Ghaelle não disse a Kai onde eu estava? Mas depois lembro-me de que ele não sabia que nós estamos juntos, ou que o filho se preocupa comigo. Agora já sabe. Bem como os restantes…

— Como estava a dizer: bom trabalho. Cada vez mais ataques, mas menos vítimas e desaparecidos. Estamos no bom caminho. Tenho a comunicar que não foram registadas mortes ou desaparecimentos. Estão seis pessoas na clínica, mas todas estáveis e com excelente prognóstico de recuperação.

Olha-me e assente com a cabeça. Aquele gesto informa-me que a mulher que ajudei irá sobreviver. Ótimo!

— Todos fizeram um excelente trabalho — continua. — Tanto os graduados como todos vocês. — Indica os que estão sentados no chão: os ainda aprendizes do Primeiro e Segundo Estágios. — Vamos continuar a trabalhar para que os tempos de reação sejam mais curtos e todas as possíveis entradas estejam fechadas e vigiadas. Também quero patrulhas asseguradas pela cidade durante todo o dia. Eles já não escolhem apenas as horas de descanso para atacar, estão a perder o medo e levam cada vez mais comida e cristais. Sei que estamos a exigir demasiado de vocês, mas este é o momento de mostrarmos do que somos feitos. Os destacados para o turno da noite: se estiverem feridos ou demasiado cansados, não vão. Quem não estiver em condições só tem de vir falar comigo ou com o Adro; arranjaremos uma solução. Hoje será uma noite tranquila, eles não voltarão tão cedo. De qualquer das maneiras, estarei toda a noite a fazer as rondas. Quero que a população durma descansada.

Será este o mesmo homem que ouvi conspirar com Adro? O que se apresenta agora diante de mim é um verdadeiro líder e parece legitimamente honesto e capaz de dar a própria vida em troca da segurança dos outros; não uma pessoa que conspira em cavernas.

— Ao trabalho. Quanto aos restantes: procurem tratar essas feridas. E tomem banho — graceja Adro, num tom autoritário. — Têm um banquete a ser preparado para vocês neste momento, portanto alimentem-se e descansem.

Os que estão sentados no chão levantam-se. Alguns com certa dificuldade devido às mazelas que apresentam. Petra vem ter comigo.

— Onde te enfiaste? — Abraça-me. Cheira a suor e a terra. — Estava preocupadíssima, e não era a única, pelos vistos… — Bate as longas pestanas do olho direito numa piscadela rápida.

Resolvo ignorar o comentário sarcástico. Kai e Ghaelle conversam, e Ghaelle sorri para o filho.

— Fui apanhada desprevenida. Vinha de Salt Lake, fui ver os meus avós. E aquele maldito alarme começou a apitar. Porque é que não me disseste que havia um sinal sonoro de aviso para os ataques? — indago, simulando fúria, mas estou feliz por estar aqui com ela e estarmos todos bem.

— Não me lembrei — admite. — Com que então, tu e o Shore, hein? Estava a ver que nunca mais se entendiam.

Ignoro-a totalmente.

— Fui apanhada no meio da confusão e lutei com um deles. Assim, neste estado. — Mostro a minha roupa muito pouco apropriada para uma luta. — Não tinha a minha arma, portanto, teve de ser mano a mano para ajudar uma mulher.

— A sério? Estás a ficar uma verdadeira Salvadora. Mas conta lá, tu e o Shore? Conta tudo. — Ela é persistente. — Eu também tenho novidades. — Cora com um sorriso que lhe preenche a cara toda.

Suspiro de novo, sentindo a derrota. Ela não vai desistir. Mas, nesta altura, só não vê quem não quer.

— Sim, é verdade. Entendemo-nos. Pelo menos já não nos apetece matar um ao outro a todo o instante. E tu, que novidades tens? — pergunto na tentativa de mudar de assunto.

— Eu sei muito bem o que vocês querem matar — garante, com os olhos a faiscarem de divertimento malicioso.

Esboço uma careta. Esta rapariga é impossível. E eu adoro-a. Nunca antes tive uma melhor amiga. Tenho Benny, mas uma irmã acho que não conta. E como é mais nova, há coisas que não lhe posso contar ou desabafar.

— Conta lá o que tens a dizer, porque precisas de ir tomar banho; estás a feder. E eu também — acrescento com um sorriso torto. — O Boris assim não te põe as mãos em cima.

— O quê? Como sabes? — pergunta numa gargalhada sufocada e de faces rosadas.

— Porque és tão subtil como um tsunami. Tenho andado mais ausente e distraída nos últimos tempos, mas não sou cega.

Ela faz beicinho. Abraça-me somente com um braço.

— Estou tão feliz. Pensei que ele nunca mais acordava para a vida. Tive de fazer das tripas coração para que ele reparasse em mim. — Exala com verdadeira impaciência.

— Imagino! Logo tu, coitadinha. Que ninguém cobiça e passas despercebida em qualquer lado.

— Oh! Quem eu queria que me cobiçasse estava a demorar muito tempo. Tu percebes o que eu quero dizer.

Reparo que Boris se abstraiu da conversa com um grupo de pessoas e observa Petra. O olhar é terno e apaixonado.

— Pois bem, agora tens toda a sua atenção — indico com a cabeça Boris e ela olha. Ele acorda daquele transe e vem ter connosco. Kai também se dirige para nós.

— Não digas nada, senão vais envergonhá-lo — pede Petra.

— E tu não me envergonhes a mim — exijo.

— Estás bem, Ara? — pergunta Boris. — Desapareceste.

— Pois desapareci. Queres saber porquê? Porque parece que ninguém se lembra de partilhar comigo as coisas importantes — refilo, com o peito cheio.

— O que foi? — pergunta Kai, colocando-se ao meu lado.

— Primeiro apanho um susto de morte com o raio do alarme, parece o Departamento dos Bombeiros. Só que pior. E depois sou escondida numa divisão secreta. Aparentemente, há uma data destes esconderijos pela cidade.

Entreolham-se e desatam a rir nervosamente.

— Tu não lhe disseste? — pergunta Boris ao Kai.

O rosto dele empalidece.

— Não. Pensei que alguém já o tivesse feito e estava mais interessado em mostrar-lhe as partes agradáveis de Aquorea… — Coça a cabeça, envergonhado.

— Eu não te disse nada porque nunca se proporcionou. E também pensei que o Kai já te teria informado — acrescenta Petra.

— Bem, com amigos assim, estou tramada. Não sabia, e se não fosse o Ghaelle, talvez não vivesse para saber.

Kai estremece ao meu lado. Eles ficam sérios repentinamente com a possibilidade de me acontecer alguma coisa por negligência da parte deles.

— Há mais alguma coisa que deva saber, que seja importante para a nossa proteção?

— Não — assegura Kai.

— Muito bem. Vamos lá. Algum de vocês está de vigilância hoje? — pergunto, na tentativa de aligeirar o ambiente.

— Nós não — responde Boris. — E o Kai também não.

— Então vamos limpar-nos e comer. Estou esfaimada.

— Assim é que se fala — declara Petra, entusiasticamente.

— Estiveste muito calada esta tarde. — Kai segura a minha mão enquanto caminhamos para sua casa.

— Sim? — pergunto, com uma pitada de ansiedade na voz.

— Já te sabes esconder melhor.

— Ou tu já não és tão curioso!

— Também pode ser.

Não vou contar-lhe ainda o que vi. Até porque não sei ao certo o que ouvi e estou confusa relativamente às verdadeiras intenções de Ghaelle. Terei de fazer um esforço enorme para não deixar que ele ouça sem querer os meus pensamentos. Por isso conto-lhe que enquanto estive enclausurada ouvi uma mensagem do meu telemóvel.

— Ainda falta ouvir uma, não consegui acabar de ouvir porque o Beau me apanhou e tive receio. Mas preciso de a escutar para saber se há mais alguma informação. Pode ser determinante para a minha decisão.

O seu rosto empalidece.

Depois de tomar banho, sento-me no chão e espero que ele saia do duche. Tiro para o lado as roupas da mochila — que estão agora amarrotadas devido à luta — e espalho as restantes coisas em cima do sofá. O telemóvel, a lanterna, o livro, a minha carteira com os documentos e a barra de chocolate preto. Pego no chocolate, giro nos calcanhares e encosto-me ao sofá. Kai sai da casa de banho e senta-se à minha frente.

— Alguma vez provaste chocolate? — Quero ganhar algum tempo antes de passar à parte da mensagem.

— Não. É bom?

— Se é bom?!… É simplesmente o melhor alimento do mundo! — gracejo. — Tens de provar.

Pelo sim, pelo não, olho para a data de validade. Ainda está dentro do prazo, mas já passou por muito, não sei se estará bom. Rasgo e cheiro o conteúdo. A minha boca enche-se de água com o aroma.

— Vou provar primeiro para não te envenenar.

— Gulosa.

Parto um pedaço. Sinto o chocolate derreter na boca e as papilas gustativas saboreiam este sabor tão familiar. Parto mais um pouco e simulo que vou comer. Ele ri-se. Ponho-lhe o chocolate na boca e ele nem hesita. Trinca como um pedaço de carne.

— Não faças assim! Deixa derreter-se na boca para saboreares.

Ele estende a mão a pedir mais um bocadinho.

— Tenho de experimentar de novo. Tens razão, não fiz bem da primeira vez.

— Espertinho! — Dou-lhe mais um pedaço. — Que tal, gostas?

Vejo-o degustar o quadrado de chocolate. Os olhos dele estão ainda mais doces, repletos de promessas.

— É delicioso.

— É, não é?

— Sim, mas não tanto como tu. De ti sei que nunca vou enjoar. — Olho para as minhas mãos pousadas nas pernas e coro. — Queres que saia para escutares sozinha a mensagem?

Acho muito cavalheiresco da parte dele propor-me isso, uma vez que estamos em sua casa. Mas como frisou, e bem, quero acabar com os segredos entre nós.

— Não. Fica, por favor.

Ligo o telemóvel e faço todo o processo para escutar a mensagem em falta. Para minha surpresa, a voz feminina diz que tenho duas novas mensagens por ouvir. Empalideço.

Kai acomoda-se no chão ao meu lado, mas nada deixa transparecer.

Esta é de 15 de agosto, às quatro da manhã. Ele não consegue dormir. A última que ouvi era de 19 de julho. Colt esteve um mês sem me enviar nada. O que se teria passado? Que egoísta sou. Eles é que estão a sofrer com o meu desaparecimento e ainda me acho no direito de exigir mensagens com mais frequência.

«Ara, preciso da tua ajuda. A Benny não anda bem. Está… revoltada. Eu tento chegar até ela, mas não consigo. Nenhum de nós consegue. Não sei o que fazer e os teus pais sentem que estão em vias de perder outra filha. Acho que eles estão tão focados em ti que não veem o que se está a passar. Há uns tempos conheceu um jornalista mais velho. Tem vinte e um anos… Não gosto dele, não é boa influência. Acho que se aproveita da Benny para obter todas as informações das buscas e poder ter as notícias mais frescas. Tu saberias o que fazer. O que lhe dirias?» Um longo suspiro.

— Para ela ganhar juízo. E puxava-lhe as orelhas — digo para mim, quase impercetivelmente, sem reparar que Kai me olha atentamente e com rugas vincadas. Passa os dedos pelo meu rosto e limpa-me as lágrimas que eu derramo sem sentir.

Colt continua:

«As buscas foram canceladas. Não, não te preocupes. As buscas formais, claro. Começámos as buscas por nossa conta. Um amigo da juventude de Anadir, que conhece o rio como a palma da mão, é o nosso capitão agora.» Dá uma gargalhada como que a rir de uma piada que só ele entende. «Nunca desistiríamos de ti. Os teus pais são fantásticos e incansáveis. Portanto, quando estiveres pronta… Esperamos-te.»

Gravo a mensagem e passo rapidamente à seguinte.

«Nova mensagem de voz de Colt Patterson recebida hoje, 18 de setembro, às 19h49.»

Hoje?

Olho para Kai, atordoada.

— Será hoje, hoje? — pergunto, confusa.

Ele faz que sim com a cabeça. Incentiva-me a continuar.

«Parabéns a mim», diz Colt, num tom engraçado. «Lembras-te do ano passado? Demos o nosso primeiro beijo neste dia.»

Não tenho coragem de encarar Kai, que se levanta para ir à cozinha.

«Desde esse dia que tento beijar-te de novo, mas tu foges-me sempre.»

Desejo que Kai tenha escutado esta parte.

«Já deves estar farta de me ouvir, eu sei…» Um longo suspiro com um riso baixo. A sua voz arrasta-se e é rouca, diferente da voz mais jovial que lhe conheço. «Mas conforme combinado no dia em que desapareceste, é para te pôr a par de tudo por aqui. Já passaram três meses… E continuamos sem saber nada de ti. Os teus pais estão bem. Eu aprendi a gostar do rio, de o navegar. O avô Anadir ficaria orgulhoso de mim. Sinto-me mais próximo de ti, lá. O capitão Luiz conta muitas histórias da sua juventude com o Anadir neste rio, e outras aventuras que o teu avô nunca nos contou. Eram uns safados!» Dá uma gargalhada alta. «O capitão diz ter a certeza de que, daquela vez que o Anadir desapareceu, foi parar a um reino mágico com criaturas fantásticas que o salvaram e acolheram, mas que o Anadir nunca revelou a verdade. É só rir com ele, coitado. São muitos anos perdido na água. E por causa das histórias estúpidas do velho, tenho uns sonhos estranhos com pessoas de cabelos coloridos.»

Kai, que enche um jarro com água, espreita pela porta com o mesmo olhar desorientado que eu.

«Era tão bom que fosse verdade. Dava a minha vida para saber que estás realmente bem. Mas sei que, um dia, de uma forma ou de outra, nos vamos reencontrar.»

De uma forma ou de outra? O que quer ele dizer com isto? O meu coração aperta-se ainda mais.

Fico inquieta. Ele só falou nos meus pais. Disse que eles estão bem. Mas não falou de Benny. Não consigo deixar de ficar ainda mais preocupada e todo o meu corpo treme como se tivesse consumido cafeína em excesso. Colt sempre foi a pessoa mais honesta que conheço, se aconteceu alguma coisa com a minha irmã, ele prefere não falar no assunto a ter de mentir.

Enrosco-me no chão a soluçar. Não consigo respirar.

Apercebo-me dos passos suaves de Kai, enquanto se deita ao meu lado e me abraça sem apertar demasiado. Passa-me a mão pelo cabelo na tentativa de me acalmar. Mantém o silêncio nos vinte minutos seguintes, enquanto eu choro e soluço baixinho. O calor dele nas minhas costas é reconfortante. A sua respiração é lenta e compassada, de alguém que dorme. O meu corpo acalma e relaxa, estou sem força. Se me pedissem para abrir um frasco de salsichas, não conseguiria, pois a minha energia foi sugada. Quando me sinto em condições, viro-me de frente para Kai. Para minha surpresa, ele está de olhos abertos e olha-me com um ar terno.

— Desculpa.

Ele passa a mão para me limpar o rosto molhado e tira-me os cabelos da frente dos olhos.

— Queres ir embora? — A voz dele é calma e, se sente, não deixa transparecer nenhuma insegurança.

Não estava à espera desta pergunta tão direta. Pensei nisso muitas vezes desde que aqui cheguei. Devido única e exclusivamente às saudades que sinto da minha família e ao sofrimento deles. Se sair, posso acabar com isso. Mas também sei que perderei o único sítio onde sou eu própria, e por muito grande que seja o mundo lá fora, não é Aquorea. E ainda há Kai… Mas agora que sei que o meu «mergulho» tem uma explicação muito mais poderosa do que imaginava, não acho correto deitar tudo a perder.

— Não irei sem terminar o que me trouxe cá. Sem saber qual o meu papel nesta dita Profecia, prometo. Mas também não posso continuar com este peso no meu coração, sabendo que os que eu mais amo estão em tanto sofrimento.

— Compreendo. — A voz dele é baixa e suave, bastante controlada até.

— Se ao menos houvesse alguma forma de eu os avisar que estou viva e bem…

Ele beija-me como que a ponderar o que dizer.

— Sempre soube que não eras minha — desabafa. — Não totalmente… E que, mesmo que viesses, tinhas sempre a escolha de partir. Peço-te só que penses no que queres, realmente. Pensa por ti. Sei que é difícil; eu próprio não conseguiria… Não será fácil para mim, se quiseres ir, mas respeito a tua decisão.

O meu coração esmorece um pouco mais. Esperava, talvez, que ele desse luta, que me dissesse que não aguentaria viver sem mim. Que fosse o Shore autoritário e decidido. Mas a outra parte de mim admira-o mais ainda por ser tão compreensivo e respeitador. Abraço-o apenas e deixo que ouça os meus pensamentos.

Kai, tenho de ir. Não já, não agora; mas assim que descobrirmos o que me trouxe cá e o que tenho de fazer. Não conseguiria viver comigo própria se não o fizesse, digo-lhe, telepaticamente.

Sinto o seu rosto sorrir contra o meu e sorrio também.

O que importa é que agora estás aqui, nos meus braços, responde-me da mesma forma.

Estamos vivos e juntos. Para já, isso chega.