27

Decisões

Sofia arranca-me a venda. Não posso acreditar. Pisco os olhos, que se adaptam à pouca luz. Ela está de pé à minha frente. Veste uma farda dos Protetores e umas botas com biqueira de aço. Botas! No cinto, um coldre com uma pistola.

— O dhihilo comeu-te a língua?

— Porquê? — questiono.

— Porquê? POR-QUÊ?! — grita.

— Por causa do Kai? — arrisco.

No canto direito, algumas velas de resina iluminam parcamente o sítio onde nos encontramos. É uma pequena sala com cerca de nove metros quadrados. Na sombra, os olhos de uma ratazana cintilam. Os pelos da minha nuca eriçam-se.

— Ah, ah, ah! O Kai? Achas que isto é uma vingançazinha ciumenta e doentia por causa de um homem? Nãaao. Os nossos planos são maiores, muito maiores do que tu e o teu príncipe.

— Tens alguém a ajudar-te!

A mão dela esfrega-me a cara com força contra a parede e esborrata-me ainda mais a maquilhagem.

— Estavas tão linda, tão perfeita. A perfeita Salvadora de Aquorea, nas minhas mãos. Ah, ah, ah, ah. — A voz é rude, áspera; e o riso é enlouquecido.

— Tu és doente! O que é assim tão importante que te faz trair a tua própria família?

— Afinal, és burra como uma porta! — Bate-me com a cabeça na parede com força e líquido quente escorre-me pela nuca até ao pescoço. — Quero mais. Os meus pais têm mentalidade de gentinha triste. Queriam que eu ficasse a servir naquela miséria de restaurante o resto da minha miserável vida, como eles. Mas os meus planos sempre foram outros, maiores. Mal sabem o que está para lhes acontecer.

— Dinheiro? Poder? Tens tudo aqui.

— Devias compreender melhor que ninguém o que o dinheiro pode fazer por alguém. Quero sair deste buraco, e esta é a minha oportunidade.

Revivo o episódio da crise alérgica no restaurante dos seus pais e o olhar de surpresa nos olhos de Umi quando a acusei.

— Foste tu que puseste frutos secos na minha comida!

— Foi tão engraçado ver contorceres-te no chão. E culpares a Umi.

Debocha, sarcasticamente, antes de continuar:

— Tudo eu! O ataque do meu amigo Asul, no Underneath? Ao longo da noite fui-lhe dando dicas subtis de que gostavas da coisa à bruta. E, como ignóbil que é, acreditou. O rapto da Isla? Euzinha! Só tive de dar um chazinho ao pobre Jamal. A única coisa da qual a Umi teve culpa foi amar o Shore como um irmão. Coitada. E de não ir com a tua cara. As marés alinharam-se na perfeição. Quando a mataste, tive de…

— Não a matei, sua desgraçada — vocifero.

— Se é essa a mentira que tens de contar a ti própria para conseguires dormir, por mim tudo bem. — Encolhe os ombros maleficamente.

— Solta-me! — Estico as cordas que me prendem os pulsos, mas logo estas me fazem embater com as costelas na rocha.

— O teu timing foi admirável. Toda aquela treta da Profecia já metia nojo. As pessoas esperançosas aceitam tudo o que se lhes dá. Só tive de ser paciente. E, claro, fazer o meu trabalho de Mediadora. É nisso que sou boa. Aproveitei a tua chegada para instigar o medo e a esperança. É como acreditarem no Papão e no Pai Natal, percebes? Aumentar os ataques e arranjar alguém sobre quem recaíssem as culpas. Ao mesmo tempo que a Salvadora soluciona o maior problema que a Comunidade já enfrentou: os Albas.

— E escolheste-me a mim para arcar com as culpas?

Ela coça a cabeça e reparo que o penteado, alinhado numa trança, permanece sem um único fio de cabelo solto.

— Não podes saber tanto quanto eu. Enquanto todos estavam distraídos com os ataques, eu preparei-me. E tu és o meu bilhete de saída daqui para fora.

— Eu? Eu não sei ir embora. Não achas que, se soubesse, já teria ido?

— Uiii. Essa doeu. O Kai sabe disso?

Ignoro a provocação.

— Quem te está a ajudar? Diz-me!

— Hum… Isso já são contas de outro rosário. Digamos que não tenho grande afinidade com esta gente.

— Vou matar-te. — As mãos tremem-me e o suor banha-me o corpo.

— Não, minha cara A-ra-be-la. Quem te vai cortar às postas e dar como repasto aos peixinhos sou eu. — Puxa a perna atrás e com força dá-me um pontapé nas costelas. O som de algo a estalar e uma dor aguda quase me faz perder os sentidos. — Como já fiz a outras almas. Afinal de contas, a prática faz a perfeição. Mas antes disso, vais tirar-me daqui.

Lembro-me de imediato de Edgar, à porta do salão Ruby. O sangue desce-me drasticamente até aos pés e a cabeça anda à roda com estas palavras.

— Foste tu. Tu mataste o Edgar. Sua cabra! Quando te apanhar, mato-te — digo, com dificuldade.

— Vá lá, afinal não és assim tão divina quanto dizem. — Mostra um sorriso perverso.

— Achas que tenho medo de ti? Liberta-me e vais perceber que não tenho nada de perfeito.

— Chiu, Ara. Chiu… — Pousa-me um dedo sobre os lábios. — Eu não sou o teu pior pesadelo. Sou o teu inferno na Terra.

Volta a vendar-me os olhos.

— Agora tenho de ir a uma festa. — O tom de voz é divertido e despreocupado.

— O Kai não vai parar até me encontrar — digo, sentindo ainda a sua presença.

— Hum… Isso era se eu não tivesse pensado em tudo. Não faço as coisas pela metade. Para todos os efeitos, amiga, tiveste a tua oportunidade de sair para a Superfície e aproveitaste-a.

— Nunca! Ele nunca acreditará nisso.

— Não te preocupes, eu trato bem dele e estarei lá para o consolar nos próximos tempos. — Um riso colérico ecoa na pequena gruta.

Ouço os passos dela afastarem-se até deixar de os ouvir. Respiro fundo pelo nariz para baixar o ritmo cardíaco e é aí que sinto algo subir-me pelas pernas, devagar.

Uma ratazana!

Esperneio, grito, mas a coisa não sai. Agarra-se ao meu vestido destruído com as garras. Estrebucho e ela salta para o chão.

Sei que daqui a pouco tempo alguém dará pela minha falta. Kai, com certeza, virá à minha procura e não parará até me encontrar. O que tenho a fazer neste momento é acalmar-me e tentar comunicar com ele. Ele vai escutar-me.

Ele vai escutar-me.

Kai, estou em sarilhos. É a Sofia. Apanhou-me à saída de casa. Acho que estou nos pântanos. Tem sido sempre ela por detrás de tudo isto.

Não parece resultar…

— Kai, se me ouves, por favor, ajuda-me. Fui atacada, estou no pântano, acho. É a Sofia. É a Sofia a culpada — murmuro.

Estou assim durante o que me parecem horas. Custa-me respirar e a dor nas costelas é agora constante. Sei que já apaguei diversas vezes quando a dor se torna mais aguda. Sinto um aperto no peito devido à garganta seca de tanta sede. O cheiro a terra é cada vez mais difícil de aguentar e estou demasiado fraca para continuar a comunicar com Kai. Não consigo nenhuma resposta da parte dele, vou morrer aqui. O sangue circula muito ténue nos meus braços e o peso do corpo, que eu não consigo manter direito, força mais ainda os pulsos presos. Estou num limbo entre o sono e a vigília, quando sinto várias mãos tocarem-me.

— Hã? O quê? Não!

— Chiu. Não fales, vou desamarrar-te. — Uma voz masculina.

Encontraram-me.

— Kai?

— Chiu — repete.

Alguém me solta as mãos enquanto outra pessoa trata dos pés. E, por fim, tiram-me a venda. Pisco os olhos várias vezes. Ardem e doem. Quando vejo estes dois rostos à minha frente, a primeira reação é agredi-los. Pontapeio, com dificuldade, para me proteger ainda antes de me conseguir pôr em pé.

— Para. Não gastes as tuas forças. Não somos nós o inimigo — diz Alita.

— Como me encontraram?

— Vou buscar-lhe um pouco de água — diz Fredek à esposa.

Quando ele se afasta, pouco mais de dois metros, reparo que se move com dificuldade, como se fosse um velhinho de cem anos com muito reumatismo. O chocalhar de metal chama-me a atenção. Olho para os pés de Alita e vejo que ambos estão presos com correntes grossas. As correntes estão fixas na parede de rocha. Recordo Isla presa com correntes semelhantes.

Eles não me encontraram. Estão aqui presos. Enclausurados. Como eu.

— Vocês… Vocês não fugiram?

Alita ajoelha-se ao meu lado e dá-me um pouco de água numa pequena taça de madeira. As minhas mãos tremem, por isso ela ajuda-me e encosta-ma aos lábios, com cuidado.

— Porque fugiríamos? — pergunta, como se estivesse admirada. — Desencosta-te. Tenho de te limpar essas feridas antes que infetem. — Passa-me um pano húmido pelas feridas, que ardem ao toque. Mas, ao mesmo tempo, a sensação de fresco é agradável.

— Nós encontrámos os vossos planos… — digo, percebendo agora que foi tudo uma armadilha. — De venderem oricalco e jeremejevite para a Superfície.

— O quê?! — grita Fredek, exasperado.

Alita coloca uma das suas mãos sobre a dele e ele olha-a com ternura. Isso basta para que as próximas palavras saiam mais controladas.

— Nós nunca faríamos isso! A única coisa que nos interessa é o bem-estar e o progresso da Comunidade.

— Foi tudo orquestrado pela Sofia para parecer que foram vocês — digo.

— Conta-nos tudo o que sabes. — Alita continua a tarefa de me limpar. Lava-me agora cuidadosamente os braços. Rasga um pouco mais o meu vestido na zona da barriga, do qual espreita um grande hematoma. Franze a testa e sei que posso estar com uma hemorragia interna.

Estamos os três sentados no chão. As roupas deles estão gastas e encardidas, os rostos magros e sujos, mas Alita, muito ciosa da sua imagem, tenta manter o penteado com volume. Estão aqui há tantas semanas e nunca nos ocorreu que pudessem ter sido tramados. Simplesmente, juntámos dois mais dois perante as provas e julgámo-los de imediato. Tenho de arranjar forma de sairmos daqui.

Contei-lhes dos comportamentos estranhos que Nwil detetou neles e da conversa que escutou com Llyr, de eu ser um perigo para a Comunidade. Das provas que Ghaelle encontrou de que estariam em negociações com empresas nos Estados Unidos. E, finalmente, que, quando fomos a casa deles para os determos, encontrámos os armários vazios.

— Que vergonha. — Alita tapa o rosto com as mãos e começa a chorar.

— Pedimos desculpa. Não nos orgulhamos do nosso comportamento para contigo, Arabela. Hoje vemos quão errados estávamos — admite Fredek.

— É verdade. Não fomos a favor da tua chegada, porque todos sabemos o que significa. Conversámos algumas vezes com o Llyr para que te mandasse embora. Tivemos medo. E muita da população andava receosa e inquieta, daí a nossa atitude, mas, afinal, o perigo nunca foste tu.

— Mas há mais… O Ghaelle não conseguiu abrir a cortina de água da vossa casa. Nenhum deles conseguiu. Só eu — explico.

— Como assim? — Fredek fala num tom esganiçado.

— O registo dos logs indicou que eu fui a última pessoa a entrar em vossa casa, para me incriminarem no vosso desaparecimento. Estão a usar-nos como bodes expiatórios.

— Como conseguiu ela fazer isso sem que ninguém reparasse? — pergunta Alita.

— Ela há bocado falou no plural. Tem ajuda de alguém que percebe o que faz.

— Ah… Ela quer incriminar-nos aos três. — A voz de Alita é um fio fino. Levanta-se lentamente e, quando regressa, traz um pedaço de pão seco. — Come.

Não é só pelo aspeto ressesso e bolorento do pão, é mesmo porque não me vai passar nada na garganta.

— Não tenho fome. Obrigada.

Ela parte metade e dá ao marido, que começa a mordiscar.

— Ela disse que eu era o bilhete de saída dela para a Superfície. Calculo que não saiba como sair e para isso precisa de vocês.

— Se ela te tem aqui, é porque o plano já está concluído. Temos muito pouco tempo.

— Vocês sabem onde estamos? — questiono.

— Não reconhecemos o sítio. Vem cá só deixar comida e água, que passa por aquele buraco. — Olho para onde ela aponta. Um buraco na porta gradeada de metal. — Hoje, pela primeira vez, tirou-nos daqui, mas fomos vendados. E quando nos trouxe outra vez, já cá estavas.

— Ela vem cá todos os dias?

— Sim. Nunca fica muito tempo sem vir cá. Deve estar a aparecer por aí, de novo.

— Então devemos estar perto da cidade — concluo.

Eles assentem como se fosse uma ideia que ainda não lhes havia cruzado o pensamento.

— Desapareceu mais alguém depois de nós? — pergunta Alita.

— Não. Encontrámos uma forma de manter os Albas à distância. Mas já não sei se será verdade…

— Sim? Como? — Ela esboça um breve sorriso.

— O trovesco. A flor. Tem uma enzima à qual nós pensamos que eles são alérgicos, e os Curadores fizeram um elixir que espalharam por toda a cidade.

— Mas que boa notícia.

— Depois do que a Sofia disse, já não acredito que seja verdade. Acho que tudo não passou de uma manobra de diversão para me trazer para aqui.

Alita recomeça a chorar e eu pouso a minha mão na dela para a consolar.

— Calma. Respire… Vamos sair daqui. Prometo.

— Tens algum plano? — pergunta Fredek, esperançoso.

— Terei.

Com muito custo, ponho-me em pé e bato com a cabeça no teto.

— Ai — reclamo.

— Mas que raio é que tu tens vestido? Costumas andar sempre tão pindérica e hoje estás assim!

— Fredek! — Alita ralha com o marido.

— Estava a caminho de uma festa…

Festa… Esta festa foi a distração perfeita para eu desaparecer!

— Uma festa? — A voz de Alita está carregada de desapontamento. — Nós aqui a apodrecer e eles continuam a festejar. Já nos esqueceram…

— Pudera, meu amor, pensam que os traímos. — Fredek até deita faíscas pelos olhos.

— Nada disso. O Regente fez questão de não dar essa informação à Comunidade. Para todos os efeitos, foram raptados pelos Albas. E todos estão a sofrer imenso.

As feições do casal amenizam-se.

Vou à porta e forço-a a abrir. Nem se mexe. Dou um pontapé.

— Ai! — protesto, outra vez. Não é um bom dia para estar descalça.

Espreito entre as barras e só vejo um corredor que se estende para um lado e o outro da cela. Um molho de chaves pendurado na parede, dois metros à frente, chama a minha atenção. Será?

— Sabem que naquela parede do lado de fora está a chave desta porta, não sabem?

Eles entreolham-se, surpreendidos.

— Nós não conseguimos chegar até aí. As correntes… — Alita aponta para o tornozelo.

Tenho de arranjar algum objeto para alcançar as chaves ou abrir a porta, por isso vou até à parte mais escura da caverna ver o que encontro.

— Ai! — Dou um salto e grito de susto. — Flyer? És tu? Afinal não era uma ratazana. — Rio-me.

O pequeno dhihilo enrola-se num canto e está tão assustado quanto eu. Aninho-me e estendo-lhe o braço. Ele reconhece-me e vem até mim.

— O que foi? — grita Alita, assustada.

— Quem raio é o Flyer?! — grita Fredek.

— É ele. — Saio da penumbra com o Aviador ao colo.

— Oh, que queridinho. — Alita faz-lhe festas.

— Foste tu que me seguiste. Foram as tuas patinhas que eu ouvi.

— Ele é muito bonito, realmente. Mas consegue ir buscar a chave? — O tom de Fredek faz-me perceber que têm alguma esperança de sair daqui.

Encaro-o, pensativa.

— Não sei. Consegues, Flyer? — Levo-o até à porta e pouso-o no chão, perto do buraco onde Sofia passa a água e a escassa comida. Consegues ir buscar aquilo, ali? — Aponto para a parede.

Flyer faz de conta que não percebe e põe as quatro patas para cima à espera de mimos.

— Estamos perdidos. — Fredek suspira, exasperado.

— Calma. Ele só precisa de se concentrar. Não é, bichinho?

Ponho-o de pé novamente e com o braço indico a chave que está pendurada na parede, mais ou menos a metro e meio do chão.

— Ele mede vinte centímetros. Como esperas que ele consiga lá chegar? — A voz de Fredek é um misto de descrença e desilusão pelo meu fraco plano.

— Devia ter-te chamado Jumper, não é verdade? Ele gosta de correr e saltar. Ele consegue.

Passo-o para fora da cela e incentivo-o a trazer a chave.

— Anda. Vai lá. — Fredek agora também incentiva o pequeno animal.

Passos pesados de botas ecoam na escuridão. O meu coração dispara e o Flyer dá uma corrida para se esconder num buraco pequeno.

— Vem alguém aí — sussurro. Penso rápido. Não tenho onde me esconder para a apanhar desprevenida. Opto por me sentar outra vez e ato a corda nos pés. — Prendam-me as mãos. Rápido. Mas de forma que me consiga soltar.

— Cuidado, ela vem armada.

Alita amarra-me as mãos e prende a corda no espigão da parede. O som da porta a bater faz-nos estremecer. Alita deita-se no chão.

Observo-a a entrar tranquilamente, como se fosse um dia normal no seu quotidiano. E é. Apesar de envergar o vestido de festa, traz as botas calçadas.

— Ora, ora. Como se estão a dar os meus reféns?

— Solta-nos — murmura Alita.

Sofia, ao ver a mulher cadavérica que lhe pede desesperadamente a vida de volta, cospe-lhe em cima e dá um pontapé em Fredek. Debruça-se um pouco sobre o corpo derrubado e indefeso e sorri, como se observasse troféus.

Apesar da onda de dor dominante, uma ainda mais forte de fúria explode das partes mais obscuras do meu ser. Não aguento mais, é o momento de agir. Desato facilmente as mãos e afrouxo a corda dos pés num segundo. Levanto-me e arremesso-a contra a parede de rocha irregular em frente.

— Aiiiii.

Prendo o meu antebraço no seu pescoço de forma a imobilizá-la e evitar que riposte. As nossas caras estão próximas e eu vejo-lhe uma determinação no rosto que me assusta.

— Está na altura de resolvermos isto de uma vez por todas. — A minha voz sai fria, distante de mim.

— Podes crer. — Tenta sacar a arma, mas eu agarro-lhe no braço e ela dá-me uma cabeçada na cara.

O sangue quente mistura-se com os resquícios do batom doce que ela me colocou algumas horas antes nos lábios; não é dos meus sabores favoritos.

Cambaleio, mas não caio. Tantos anos de prática de dança deram-me equilíbrio. Ela lança uma perna no ar. Ainda tento bloquear, mas a bota dura encontra o meu estômago novamente.

Bac!

O ar foge-me dos pulmões e caio prostrada no chão. Grito e choro enquanto o pé dela bate repetidamente nas minhas costelas partidas. Uma e outra vez. E de novo.

Ara! Ara!, ouço finalmente a voz de Kai chamar-me, mas não consigo responder. Não tenho força…

— Olha para ti. Não vales nada — diz Sofia, irritada. — Por muito que me apeteça, não te posso matar já.

Ela afasta-se e os meus braços dobram-se enquanto me agarro à parede e luto para me erguer.

Alita e Fredek assistem ansiosamente, como se estudassem cada movimento com o coração nas mãos.

Rosialt, luta! Kai grita aos meus ouvidos, ou assim me parece, como se desse ordens.

Não sei de onde vem, mas uma vaga de energia e força ajuda-me a levantar os braços. Desfiro um golpe, atingindo Sofia num flanco. Outro murro e abro-lhe um lenho na sobrancelha. Continuo a bombardeá-la com socos. O cabelo dela, outrora aprumado, está molhado e o penteado desfeito. O corpo dela começa a ficar mole, está a ficar sem força e eu tenho de aproveitar. Sofia consegue sacar da arma. Eu dou um chuto na sua mão e só depois percebo que fiz um attitude devant, uma das posições de ballet. Resulta, porque a pistola é atirada para longe de nós, perto da porta da cela.

— Peguem na arma — grito.

Fredek e Alita correm em direção à arma, mas o chocalhar das correntes faz-me perceber que estas não têm comprimento suficiente para eles lá chegarem.

— Achas que nos podes parar? — Sofia arfa.

— Quem te está a ajudar?

Ela ri-se enquanto recupera o fôlego e eu não lhe dou tréguas. Bato-lhe repetidamente, atingindo-a em cheio na boca, no nariz, no queixo. Ela cai de joelhos, mas o sorriso doentio mantém-se no rosto.

O som de patinhas distrai-me por momentos e olho de relance para ver o pequeno Flyer arrastar a arma, com imensa dificuldade, para Fredek, que está já de joelhos, com uma côdea de pão na mão, a motivá-lo para lhe dar a arma. Volto a concentrar toda a minha atenção no nosso principal problema.

— Diz-me, quem? — exijo.

— Nunca saberás até ser tarde demais — vangloria-se Sofia com um sorriso tinhoso.

— Nem que seja a última coisa que faça, vais dizer-me quem é o teu cúmplice. Mas não agora. E não aqui.

— Podes matar-me, mas o nosso legado vai continuar.

O sangue que lhe cai do nariz é espesso e escuro e o que ela cospe para o chão é brilhante e vibrante.

— O teu pseudolegado acaba aqui. Não magoas mais ninguém.

Nunca fui uma pessoa violenta, mas não permitirei que esta pessoa, que eu considerava minha amiga, traia a confiança de mais alguém.

Um último golpe atira-a de costas para o chão.

Ponho-me em cima dela e imobilizo-a com o peso do meu corpo, apesar de ela ainda continuar a contorcer-se.

— Passem-me a corda.

Alita, que já se tinha antecipado, atira-me a corda sem se aproximar de nós. Descalço-a e amarro-lhe as mãos e os pés com imensas voltas de corda. Não quero que ela pense sequer em se mexer.

— Vamos sair daqui — digo, com um meio-sorriso que logo se desfaz.

Fredek empunha a arma e está com um olhar feroz a apontá-la à cabeça de Sofia.

— Fredek, não. — O meu grito é simultaneamente uma súplica e uma ordem.

— Esta desgraçada acabou com a nossa vida, a nossa reputação.

— Não é verdade, Fredek. A vossa reputação está intacta. Mas se a matar, aí, sim, terá de conviver com essa decisão. E prometo-lhe que nunca mais será o mesmo. Você é um homem bom, não quer este fardo no seu caminho. — Aproximo-me dele, vagarosamente, com o braço esticado. Ele treme.

— Não. Não. Ela tem de pagar pelo que nos fez passar. Pelo que fez à minha mulher — insiste Fredek, quase falando consigo mesmo.

Olho para Alita, que está abalada, e vejo-lhe incerteza no olhar. Como se ponderasse se deve dizer ao marido para avançar ou não.

Não posso permitir que a matem. Ao ver a dúvida no seu rosto, continuo.

— A reputação dela é que ficará manchada, e vocês, como Mestres do Consílio, poderão aplicar-lhe a pena que acharem conveniente. Alita! Ajude-me aqui. É um erro e vocês sabem disso.

Ela sai daquele torpor.

— Querido. — A voz de Alita saí trémula e baixa. — Querido — repete, ao verificar que o marido continua de olhos cravados em Sofia. — Não. Não faças isso. A Ara tem razão. Ela não vale a pena. E acredita que já sei o castigo que lhe vamos dar. — O sorriso que esboça é cúmplice.

Ele passa-me a arma para a mão.

— Eu sabia que não tinhas tomates — diz Sofia. E eu instintivamente dou-lhe mais um pontapé que a faz desmaiar.

— Vamos sair daqui — digo.

Alita mostra-me o tornozelo algemado, como que a explicar que não conseguem ir a lado nenhum.

Okay. Vamos tratar disso.

Saio a arrastar-me e vou buscar o molho de chaves. Pelo caminho, pego no Flyer e dou-lhe um beijinho no topo da cabeça. Meto-o no meu ombro e ele fica empoleirado como um papagaio.

Fixe!

— Obrigada — digo-lhe. — Eu sabia que ele era corajoso.

Pisco um olho ao casal, que está agora abraçado.

Baixo-me perto da perna de Alita e peço licença para mexer. Ela assente. A corrente é da grossura do meu pulso. Mexo e remexo durante alguns segundos até que finalmente ouço um click.

— Boa! — Fredek comemora com mais um abraço à mulher. Vejo-lhe lágrimas caírem-lhe pelas faces.

— Agora a sua — digo.

Ele põe a perna a jeito e eu tento fazer o mesmo. Demoro menos tempo do que demorei com Alita.

— Obrigado, Ara. Julgámos-te tão mal. Pedimos desculpa. Tu realmente vieste para ajudar — diz Fredek, emocionado.

— Sem problema. Agora só precisamos de mais um pequeno esforço conjunto para a arrastarmos até à cidade.

— Isso eu consigo fazer. — Fredek baixa-se e começa a puxar Sofia pela corda que lhe amarra os pés, determinado. Ainda bem que o faz, porque eu não sei quantos passos mais conseguirei dar.

Saímos da cela e vamos para o lado esquerdo, de onde Sofia veio. Andamos devagar. Alita vai à frente com uma vela em cada mão a alumiar o caminho estreito e desnivelado. Após uns quinze minutos, Sofia começa a dar sinal de estar a reganhar consciência.

— Assim que ela acordar, desamarro-lhe os pés para ir pelo próprio pé.

— Achas boas ideia? — pergunta Fredek.

— Sim, porque chegaremos mais rápido.

Neste momento só consigo pensar em chegar perto de Kai. Porque não tentou comunicar comigo mais cedo? O que será que Sofia lhe disse? Será que ela lhe fez mal? Não percebo o porquê da dificuldade na nossa comunicação, mas sei que foi a força que ele me transmitiu que me fez derrotar Sofia.

— Chiu! Ouçam — diz Alita.

Calamo-nos e escutámos barulho indistinto e longínquo de vozes.

— Estamos perto — digo. E um sorriso abrange todos os nossos rostos.

— Desamarra-me!

— Olha, acordou — diz Fredek.

Baixo-me e tiro-lhe as cordas dos pés.

— Levanta-te, desgraçada — ordeno-lhe com a arma apontada. — Se tentares alguma coisa, não vou ser benevolente como o Fredek.

Ele olha-me e eu encolho os ombros. Neste momento, tenho de ser forte. Tenho de ser Arabela, a Salvadora.

Sofia anda ao lado de Fredek e eu vou atrás para me certificar de que não foge. O estreito caminho leva-nos mesmo até à porta do Salão Ruby. Está tudo calmo, nem um som. Mesmo assim, abro as portas para verificar.

— Está vazio — concluo. Os vestígios de uma festa estão aqui. Pratos, copos e comida em cima das mesas, mas não se vê vivalma.

Onde andas, Kai?…

Ara, onde estás? Vou buscar-te, ouço, por fim.

Estou a chegar…

E assim tão simples; o meu coração tranquiliza-se.

— O som das vozes vem do Centro — esclarece Fredek.

— Vamos então.

Pego na ponta da corda que segura as mãos de Sofia. Enquanto atravessamos a Ponte-Mor, que está deserta, avistamos um grande aglomerado de gente em frente ao Colégio Central. Parecem em polvorosa a debater algo importante. Llyr está no topo da escadaria da entrada principal do Colégio Central e escuta o que a população diz, energicamente. Beau está ao seu lado e é ele que responde a uma questão:

— Não se preocupem, não vamos permitir — diz, exasperado.

Alita, para meu espanto, reúne forças e começa a correr e a esbracejar.

— É a Alita! — grita alguém.

— São os Mestres Peacox. E a Ara.

As pessoas gritam vivas e hurras e correm na nossa direção. Assim que alguém alcança Alita, ela deixa-se cair nos seus braços. Acho que não aguenta mais a emoção e a exaustão.

A multidão rapidamente nos cerca e eu tento encontrar caras conhecidas, mas não vejo nenhuma que o meu coração mais procure. Com o rebuliço, o Flyer assusta-se, salta para o chão e desaparece no meio de tantos pés. Onde está Kai? Petra, Mira, os meus avós? Boris? A cabeça de Wull aparece atrás de algumas pessoas, reconheço o seu penteado.

— Wull — grito e aceno-lhe. Ele rapidamente se esconde no meio da multidão e desaparece.

— Fredek! Alita! — A voz de Llyr sai entrecortada e descrente. — Porque é que a menina Ravnak está amarrada? Soltem-na — exige.

— Ara? — Beau fica transtornado com o meu estado, mas mantém-se junto do pai. Talvez por saber que Kai pode aparecer a qualquer instante.

— Regente, os Mestres Peacox foram raptados pela Sofia, e não pelos Albas. — A população não sabe que encobrimos o seu desaparecimento porque tínhamos provas incriminatórias, portanto, limito-me a dizer apenas o essencial. — Antes da festa, raptou-me a mim também.

— O quê? — Llyr está desconcertado.

— Filha, o que foste tu fazer? — Os pais de Sofia aparecem no meio da multidão. A mãe num pranto.

— O que nenhum de vocês, gentalha, teve coragem de fazer. — A sua voz amarga corta como facas afiadas. — Luto pelo que é meu por direito. Quero sair deste buraco.

Puxo-lhe a corda que lhe prende as mãos para a refrear. Ela olha-me e sei que, se pudesse, me matava já aqui.

— A Sofia manteve-nos este tempo todo em cativeiro, numa gruta a leste, nos túneis subterrâneos do Salão Ruby — explica Fredek.

Beau olha para Sofia e os olhos dele faíscam raios.

— Llyr, eles não são culpados. De nada — confidencio, largando a corda e afastando-me um pouco. Ele olha-me, ainda desconfiado. — A Sofia afirma ter um cúmplice, mas não diz quem é. Diz que tudo não passou de manobras de diversão para me isolar e eu a levar para a Superfície. Mas não sei se será verdade. Ou toda a verdade.

— Está bem, está bem. Vamos tirar esta história a limpo. Será tudo muito bem analisado, mas agora têm de ir para a Clínica, para serem tratados.

— O que se passa aqui, Regente? Porque estão todos aqui em Assembleia? — pergunto.

— Muita coisa se passou em pouco tempo, Ara. O povo convocou uma reunião de emergência.

O que se pode ter passado de tão grave e em tão poucas horas para o tranquilo povo de Aquorea exigir conclave?

— Não! — Um grito de temor coletivo chama-me a atenção.

Sofia tem uma faca encostada ao pescoço de Fredek. Oh, não! Como é que conseguiu libertar-se? E onde é que tinha a faca?

Aponto-lhe a arma.

— Deixa-o, Sofia — grito.

Mais gritos coletivos e súplicas vindas dos pais de Sofia para eu não lhe fazer mal. Não olho para ninguém.

— Não o farás. — Ela sorri, desconfiada.

— Não quero, mas se tiver de te matar, mato.

Dou um passo em frente.

— Não, para. Acabaste com o meu sonho. Vais ficar para sempre com o peso da morte dele na tua consciência.

Agora o silêncio da multidão é absoluto, à exceção de Fredek, que solta um gemido. A ponta da faca enterra-se no pescoço dele. Sei que, se não reagir prontamente, ela o matará. Mas será que consigo tirar-lhe a vida e viver bem com isso? Já tenho de viver com a culpa da morte de Umi na minha consciência. Esse peso nunca sairá do meu peito.

— Eu não vi quem tu realmente és, Sofia, mas tu nem sequer te deste ao trabalho de me conhecer. Senão, terias percebido que faço tudo pelas pessoas que amo. E eu amo estas pessoas, são as minhas pessoas. Não vais magoar mais ninguém.

A faca enterra-se mais um pouco e eu congelo, não tenho o que é preciso. Alguém me tira a arma da mão e dispara três tiros estridentes e ensurdecedores no corpo de Sofia, que cai no chão. Fredek leva a mão ao pescoço, mas os seus pés não se movem. Está em choque. Assim como eu. Os pais de Sofia correm e ajoelham-se ao lado do corpo da filha.