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Superfície — Junho

Colt

Não é desculpa. É um facto. Não me consigo controlar. Posso culpar a idade, as hormonas, ou até mesmo dizer que este tipo de comportamento é inato em nós, machos. Mas a verdade é que não me consigo controlar quando estou perto de Ara. Ou melhor, até consigo, mas fazendo as figuras mais tristes e ridículas. Resumindo: de um verdadeiro anormal. Estou sempre a questionar-me se ela reparará. Ou se repara sequer em mim. Somos amigos desde crianças — desde que me lembro, aliás — e gosto da sua maneira de ser; sempre disposta a partilhar e a ajudar os outros. Está nos detalhes mais pequenos. Avisar uma colega que tem uma nódoa na roupa, devolver uma coisa que alguém deixou cair, ajudar um velhinho com as compras ou a atravessar a rua. Ela não se apercebe, é instintivo. E isso fez de mim uma pessoa melhor, também. Porque, com o tempo, percebi que estes pequenos gestos podem fazer toda a diferença no dia de alguém.

Comecei a perceber os meus sentimentos por ela por volta dos treze anos, na escola, quando a observava de longe, isolada, a ler um livro, com os olhos verdes penetrantes escondidos pelo cabelo, enquanto distraidamente enrolava uma mecha comprida no dedo. Fiquei absorto, como que transportado para um outro mundo, um universo paralelo onde só nós existíamos. Claro está que os que me rodeavam perceberam, e fui ridicularizado durante uma semana. Desde então, sou mais cuidadoso a esconder as minhas emoções, mas não deixo de tentar que ela repare em mim! E não apenas como amigo. Muitas vezes, peço-lhe uma opinião sobre raparigas que nem sequer fazem parte dos meus planos, só para ver se ela tem ciúmes. (Está decidido, sou mesmo um anormal.) Também faço questão de estar sempre presente em todas as ocasiões importantes. Não porque ache que isso poderá jogar a meu favor, mas porque gosto realmente e importo-me com ela. Ela e a sua família são também a minha família.

Certa vez, beijámo-nos. Estávamos num concerto e ela olhava-me com aqueles enormes olhos astutos, tomados de desejo, mesmo a pedir que eu a beijasse. E assim fiz. Quando regressei do bar, de onde a observava, nem hesitei, dei-lhe o que ela ansiava. Foi um beijo apaixonado e não percebo porque é que ela nunca mais aceitou nenhuma das minhas tentativas posteriores.

Ara dedica-se à escola e aos hobbies com o mesmo afinco. Muito disso deve-se a que a sua mãe seja enfermeira, com horários de trabalho rotativos, o que faz com que Ara tenha de ajudar o pai e a irmã em casa. Deve-se também a Anadir, que eu — com muito carinho — trato por «avô», apesar dos ciúmes que isso provoca nos meus avós biológicos. Era um homem fantástico, ficou viúvo ainda jovem e não voltou a casar. Eu achava que o nosso amor seria assim: excecional.

Por vezes, pergunto-me se isto será amor verdadeiro ou obsessão. E, também, como reagiria eu se lhe abrisse o meu coração e ela me rejeitasse.

Já passaram trinta e seis horas desde o seu desaparecimento, e ainda vivo aquele momento como se fosse agora. E de cada vez que penso nele, sou invadido por pânico e ansiedade.

O barco transporta-nos rio acima; enquanto tento tirar algumas fotografias com o telemóvel, observo Ara, que vai sentada ao meu lado esquerdo, na borda do barco. Sorri para os pais, tentando livrar-se dos cabelos que se agitam à frente do rosto. Benny chama-me a atenção com pancadinhas suaves na coxa e com o dedo indicador estendido em direção às colossais cataratas que emergem diante de nós. Quando dou por ela, já Ara está na água a esbracejar.

Não penso um segundo antes de me atirar atrás dela. A corrente é forte. Nado com força, desesperado para a alcançar, quando sou puxado para trás e bato com as costas no barco. Vocifero e contorço-me para me libertar e poder socorrê-la, mas dois pares de mãos puxam-me para dentro do barco, onde todos olham aterrorizados para a tragédia que decorre.

Um barco vazio depressa chega junto do nosso e os outros passageiros passam, um a um, em segurança, para serem levados para terra. Benny chora e Mary grita, desenfreada, de braços no ar, para alguém fazer alguma coisa. Atiram boias na direção dela, mas a corrente é tão forte que a leva mais ao fundo a cada segundo que passa. Caspian, o pai, tenta com outros dois tripulantes agarrar Ara da mesma forma que fizeram comigo. Preparo-me para saltar novamente, quando uma mão forte bate no meu peito e me segura com força pelo colete salva-vidas. Para tentar, de alguma forma, acalmar a sensação de pavor que me domina, empurro o homem violentamente, com os olhos presos nos dele.

Tira as patas de cima de mim — berro, a sacudir os braços freneticamente, pronto para lhe dar uma cabeçada se ele não me largar.

Os minutos que se seguem até chegar um barco com mergulhadores duram uma eternidade. Assim que se aproximam do local, dois homens-rãs atiram-se para a água. Nesse momento, olho para o meu relógio e começo a contar. Têm de encontrá-la rapidamente, porque temo que, com a força da água, ela possa ter sido levada para o fundo numa questão de segundos.

Agora, para onde quer que olhe, vejo a cabeça de Ara e o colete cor de laranja a boiar. O nosso mundo desaba vendo as horas passarem, e ela não há meio de aparecer.

Ainda não voltámos a casa, simplesmente estamos aqui, à espera. Desde a primeira hora das buscas, Caspian consegue convencer o comandante — o tenente-coronel Chernovic do Batalhão de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros — a deixar que um de nós, ele, Mary ou eu, vá no barco das buscas.

Benny revolta-se quando lhe dizemos que achamos melhor ela não sair com o barco, pelo que se recusa a falar connosco desde então.

Tento estar em cima do acontecimento, ver e perceber como eles organizam as operações de resgate. Recolho o máximo de informação que consigo e, quando o nosso tradutor chega, não paro de lhe perguntar o que eles dizem. Ele traduz todas as minhas questões e dúvidas.

Motos de água, lanchas rápidas, helicópteros, mergulhadores e equipas de salvamento são ativados e, neste momento, encontram-se no local quase trinta pessoas. Dividiram o rio em partes. Uma equipa de mergulhadores a montante e outra a jusante, a varrer a zona desde o Marco Zero. O acesso é muito difícil, devido às fortes correntes, o que dificulta muitíssimo o trabalho e coloca em risco a própria segurança dos mergulhadores.

A Lua já vai alta, e eu estou a chegar a terra com o último barco, que encerra por hoje as buscas. Já deviam ter terminado há largas horas, desde o pôr do Sol, mas por ali continuaram, com grandes holofotes a apoiá-los. Neste momento, contudo, devido à fraca visibilidade, por causa do nevoeiro que se levanta, e ao cansaço, até eu percebo que eles têm de parar.

— Não, não podem parar. A minha filha está aí algures. A minha filha, percebem? — grita Mary para o chefe que lidera as buscas assim que o ouve dar ordem de retirada e convocar todos para as seis e meia da manhã em ponto.

— Minha senhora — começa o homem moreno, de cabelo curto e escuro. Fala inglês com grande dificuldade, muito pausadamente. — É quase uma da manhã. Os meus homens estão cansados e não há visibilidade. Temos de descansar um pouco e regressaremos logo pela manhã. A senhora também devia descansar um…

— Não! — exclama Mary. — Vocês não podem parar agora. A minha filha é uma excelente nadadora. Ela foi com a corrente e deve estar inconsciente, agarrada a alguma coisa. Um tronco de árvore ou qualquer coisa. Tem filhos, comandante? — Mary fala apressadamente, sem fazer pausas para respirar.

— Sim, minha senhora — retorque o homem, pacientemente.

— Se fosse seu filho, o senhor parava para descansar? — pergunta, de olhos esbugalhados e raiados de sangue.

Caspian intervém.

— Mary, eles têm razão — diz. — Fazia-te bem descansar um pouco. E aos miúdos também. — Olha para Benny ao enfatizar a palavra «miúdos». Ela está sentada dentro do carro, no lugar do condutor, com a porta aberta para escutar o que se diz, e continua a chorar.

Ela fita o marido com um olhar hostil, e ele puxa-a para o seu peito e abraça-a. O som abafado do seu choro é de partir o coração.

— Mary, e se eu vos levar, a si e à Benny, a casa, para descansarem um pouco? Ela não vai descansar sem um de vocês por perto. — Pouso-lhe a mão nas costas, mas tenho os olhos postos em Benny, que entretanto se deita no banco de trás do carro. — Assim, nós poderemos ficar por aqui.

Não sinto cansaço, apenas medo. Apesar de saber que ficaremos aqui apenas à espera até às seis e meia da manhã, não me quero afastar. Mary levanta ligeiramente o rosto do peito do marido e a sua expressão está mais suave. Os olhos baços, sem vida.

— E vocês, quando descansam? — observa, preocupada.

— Tens razão — diz Caspian, cingindo o corpo delgado da mulher contra si. Cerra os olhos e dá-lhe um beijo no cabelo. — Regressamos todos. Vão andando para o carro. Volto já.

Passados uns minutos, encontro Caspian junto a uma das mesas de plástico brancas. Observa fixamente um papel.

— Elas estão à nossa espera — informo.

Acho que nem me ouve.

— Perdi os dois. — Passa uma mão pelo cabelo despenteado, e continua. — O meu pai e a minha menina — diz, agitando no ar o papel que tem nas mãos. É a carta que Anadir deixou. — Já li e reli esta carta e não consigo encontrar uma justificação para o que ele fez. Pus a hipótese de ele ter uma doença terminal, mas falei hoje de manhã com o médico, que me assegurou que ele estava saudável como um touro. Sempre me pareceu feliz — murmura.

— Ele foi feliz e teve uma vida preenchida — digo, numa tentativa inútil de lhe prestar algum conforto. Não sei mais o que dizer, limito-me a pôr a mão no seu ombro e a permanecer do seu lado.

— Gostas muito da minha filha, não gostas? — pergunta, num tom de voz monocórdico.

— Não gosto, apenas — sussurro. — Ela é a minha melhor amiga e confidente. Penso que é a minha alma gémea e que um dia ainda lhe vou conquistar o coração.

Mesmo com a pouca luz que nos rodeia, vejo a expressão no rosto de Caspian mudar. Percebo que eu falar de Ara como se ela estivesse aqui, connosco, e fazer planos com ela para o futuro o incomoda.

— Vamos encontrá-la, Caspian, tenho a certeza. A Ara é resistente, e se alguém consegue escapar a isto, é ela.

No fim da frase, a minha voz está já um fio. Não posso garantir que Ara tenha sobrevivido, mas até encontrarmos o seu corpo, para mim ela continua viva.

— Vamos — murmura, rendido, encolhendo os ombros. Levanta-se lentamente, como se tivesse envelhecido dez anos. — Tenho de confortá-las. — Algo se transforma nos seus olhos.

É mesmo dele, tentar confortar todos à sua volta quando o seu mundo está a ruir. Rodo o meu corpo de modo a passar o braço pelos seus ombros, numa tentativa de o confortar.

— Vamos. Eu conduzo — digo.

Chegamos a casa e Caspian vai direto à cozinha. A minha intenção é ir para o quarto, tomar um duche, beber um café e fazer tempo para sair mal batam as cinco. Mas Mary pede-me para esperar, enquanto prepara um lanche rápido para comermos. Presto-me a ajudá-la, mas Caspian já está — frenético — a preparar as sanduíches. Trabalha como se as sandes fossem solucionar todos os nossos problemas. Mary abre uma porta do armário alto, onde está uma garrafa de vodca. O seu olhar é vago e cheio de sofrimento; pega num copo. Fico admirado, porque nunca a vi beber, mas compreendo, porque até a mim me apetece. Mas baixa os braços, enche-o com água e bebe tudo de uma vez, como se saciar a sua sede lhe levasse a dor. Saio da cozinha com uma chávena de café e uma de chá. Sento-me na mesa de centro de madeira, posicionada em frente ao sofá, onde, com o olhar mortiço, está Benny. Pouso o meu café e estendo-lhe a chávena de chá.

— Como estás? — pergunto. O seu rosto oval está corado e os olhos, que costumam ser azuis, estão quase pretos.

— Porque fazes essa pergunta num momento destes? Como achas que estou?

— Desculpa. Só quero ter a certeza de que vais conseguir descansar um pouco. És como uma irmã para mim, Benny. Sabes disso, não sabes?

— Sei. E sei também que estás apaixonado pela minha irmã e que nunca tiveste coragem de te declarar. O que faz isso de ti? Cobarde! — A sua voz é rouca e agreste, carregada de ódio. Em tantos anos de convivência, nunca ouvi Benny falar assim com ninguém.

— Estás triste e cansada. Porque não tentas descansar um pouco? — aconselho, colocando a minha mão no seu joelho.

— Deixa-me. Já não te posso ouvir! — Cospe as palavras, de modo rude, levantando-se de rompante para subir as escadas que dão acesso aos quartos.

A voz de Mary impede-me de ir atrás dela. Esfrego as têmporas com o polegar e o indicador direitos e inspiro profundamente. A miúda está descontrolada e alguém tem de chamá-la à razão. Está a sofrer, compreendo, mas estamos todos.

— Deixa-a ir — pede Mary. — Está apenas confusa. Sabes o quanto ela te adora.

Levanto-me, pego num pão do prato que Mary segura, dou-lhe um beijo no rosto desolado e vou para o meu quarto.

Consigo descansar algumas horas, e às seis e um quarto estou a chegar, de novo, ao sítio onde está montado o acampamento. Anadir ensinou-me a conduzir quando eu tinha catorze anos, e lembro-me do orgulho que senti quando mostrei a Ara a minha mais recente aptidão. Obviamente que ela não parou de chatear o avô enquanto ele não a ensinou também. Passado um mês, já os dois estávamos ansiosos por fazer dezasseis anos para podermos tirar a carta de condução.

O percurso de trinta minutos até ao local onde está montado o acampamento de buscas é um acumular de ansiedade. E se nunca mais vir a Ara?, penso obsessivamente.

Combinamos que sou o primeiro a sair com o barco, e Caspian chamará um táxi para os trazer ao meio-dia, hora a que sai outra equipa. À minha frente apresentam-se três enormes tendas brancas, que protegem do sol intenso o equipamento, os instrumentos, as mesas e cadeiras que já cá estavam. Polícia, bombeiros e investigadores estão ocupados a trabalhar em computadores, mexem em documentos, papéis e mapas. Ao meu lado direito, a três metros de distância, vejo o comandante dos bombeiros prestar declarações. Na mão tem uma foto com a descrição de Ara e mostra-a ao grupo de jornalistas e curiosos que se juntam.

Atravesso a estrada em passo de corrida, para evitar ser visto pelos jornalistas. Quando me aproximo da cancela improvisada, ouço o meu nome.

— Colt, não é? Mário Fabrici, Record News. — Apresenta-se um jornalista moreno, da minha altura, embora sem a minha magreza. Traz atrelado um operador de câmara. Os seus olhos, cor de avelã, são vibrantes e astutos.

Eu nada digo.

— O senhor é que é o namorado? A Ara era boa nadadora? Pode falar-nos um bocadinho acerca dela? Uma fonte segura disse-nos que um dos seus hobbies era a natação. Confirma? — Ele não se detém sequer para respirar, e fala inglês com um sotaque perfeito.

Sinto o estômago às voltas e bílis amarga na garganta. A minha vontade é mandá-lo à merda, mas reprimo o insulto quando grito:

— Era, não. É — digo, sem olhar para ele ou para o câmara, enquanto o oficial me deixa passar.

Ouço-o continuar a falar, mas acelero o passo. Ouço a última pergunta ao longe:

— Acha possível que ela esteja viva? — Formula a pergunta em inglês e depois em português.

Sinto medo e não sei como reagir, por isso faço uma promessa a mim próprio: nem que demore a vida inteira, eu vou encontrá-la, ou morrerei a tentar.

Neste momento, nada mais há a fazer. Talvez apenas reunir forças para aguentar o que nos espera. Ou ainda uma outra coisa que irá fazer-me sentir, por breves instantes, novamente um ser vivo.

Afasto-me da confusão e, em vez de acompanhar o rio, embrenho-me na floresta, pouco densa nesta zona, de forma a procurar um local onde não possa ser visto, ouvido e incomodado. Preciso de ficar sozinho. Dou por mim a pegar no telemóvel e carrego na tecla um; o número de marcação rápida de Ara. A mensagem familiar faz-se escutar: «O número para o qual ligou não pode neste momento ser contactado. Deixe mensagem após o sinal». A seguir, o bip que antecede a mensagem gravada. A ideia de ouvir a sua voz dá-me um aperto no estômago: «Olá. Sou eu. Neste momento não posso ou não quero falar. Tens o direito de permanecer calado. Contudo, se quiseres, deixa mensagem, mas o que disseres será gravado e poderá ser usado contra ti».

Um calafrio percorre-me as costas, e a esperança que tenho de encontrá-la com vida some-se-me do corpo.