Ouço ao longe o som de passos sobre o cascalho. Um ruído oco e vazio. Tenho o corpo pesado e forço-me a acordar. Um cheiro muito suave e doce envolve-me.
Os meus braços e pernas baloiçam no ar, ao mesmo ritmo, mas o coração bate devagar. É um alívio perceber que alguém me transporta ao colo. Pisco os olhos com dificuldade, pois ardem como se tivessem sido salpicados com álcool. E começo a recuperar a consciência, alvoroçada pela memória amarga da sensação de afogamento. Apercebo-me de um ruído de água, semelhante ao som da cascata que deu origem a esta situação, e vou tendo vislumbres de pedras e seixos no caminho que o meu salvador percorre, numa passada larga e determinada.
Quero abrir os olhos e ver um rosto familiar. Quero sentir que tudo vai correr bem e não passou de um grande susto. Quero rir-me da situação ao olhar para trás, daqui a uns anos. Este pensamento dá-me energia para virar a cabeça e abrir os olhos.
Para meu espanto, dou de caras com uns enormes olhos azuis. De um azul-claro como água límpida, que eu tão bem conheço dos meus sonhos. Só que estes são reais. Demasiado. Atordoada, ergo lentamente o braço na direção do seu rosto. Preciso de ter a certeza de que é verdadeiro, e não a minha imaginação a pregar-me partidas. De olhos semicerrados, encaro um rosto que nada transmite.
Reúno a pouca energia que me resta, toco-lhe ao de leve no maxilar forte. A barba curta arranha-me a mão, provocando-me um formigueiro pelo corpo todo e um arrepio na espinha que me faz baixar bruscamente o braço.
— Quem és tu? — arranco à força de dentro de mim.
Ele olha para mim intensamente e, por breves segundos, vejo um lampejo de doçura nos seus olhos, até que ele desvia o olhar. Um aperto no peito e as palpitações e os suores frios voltam. Sei que vou voltar a perder os sentidos, mas já não o posso evitar.
Diante dos meus olhos está um teto branco, muito liso, com a sanca iluminada. Levanto ligeiramente a cabeça e vejo paredes igualmente lisas. A parede ao fundo da cama tem um armário. Ao meu lado está uma mesa transparente com o que me parecem ser instrumentos médicos e, do lado direito, uma cadeira de aspeto não muito confortável, em tons terra, com a minha roupa perfeitamente dobrada e empilhada. Vejo o meu relógio de pulso no topo da pilha. Levanto o lençol grosso e macio, de um tecido que eu não conheço, entre o algodão e o linho, e dou conta que tenho o pulso e as pernas envoltos em ligaduras transparentes e viscosas.
Devo estar no hospital. Olho, mas não há ninguém em redor, nem sequer uma campainha. Sento-me com alguma dificuldade. Estou tonta e nauseada. Os ouvidos estalam como que a descomprimir da pressão. Recosto-me na cabeceira da cama e torno a fechar os olhos por uns segundos, inspirando e expirando lentamente, várias vezes, para que o meu corpo volte a relaxar. Faço nova tentativa para abrir os olhos e fixo um ponto: o espelho ao lado do armário. Na posição em que estou não consigo ver o meu reflexo, mas isso não importa agora. Tudo o que quero é reunir forças para me levantar e procurar os meus pais.
Finalmente, consigo pôr um pé no chão e, logo de seguida, o outro. Os meus pés são percorridos por um fluxo de calafrios que se espalham por todo o corpo, eriçando-me os pelos dos braços. Estranhamente, o chão não está assim tão frio, pelo que deduzo que estou mesmo debilitada. Apoio-me com a mão na cama e levanto-me com cuidado, até sentir que consigo manter o equilíbrio. Vou até ao espelho e, para minha grande tristeza, pareço bem mais pálida e doente do que imaginei. Alguns hematomas muito roxos sobressaem na pele leitosa. Ao aproximar mais o rosto do espelho para inspecionar o corte por cima da sobrancelha e avaliar o seu estado, toco acidentalmente no espelho e dou um salto para trás.
— Mas que raio! É água! — exclamo, assustada.
Estico o dedo na direção do espelho e mergulho-o lentamente na parede de água. Faz-me comichão no dedo. É uma parede de água tão fina e silenciosa que parece mesmo um espelho. Uma ideia muito inteligente. Ainda incrédula, tiro a roupa e o meu relógio de cima do cadeirão, que, percebo então, é feito de pedra.
Este hospital é muito estranho, desabafo com os meus botões.
No momento em que volto a aproximar-me da cama para me sentar e vestir-me, ouço bater à porta.
— Entre — digo, com um sorriso. Penso imediatamente no meu pai. Viro-me com a intenção de correr para o abraçar quando vejo uns olhos familiares, que não os do meu pai, espreitarem pela porta quando esta se abre. Mal posso acreditar no que vejo. Ou melhor, em quem surge diante de mim.
— Avô?
Os últimos dias marcaram-me profundamente, mas hoje, sem sombra de dúvida, está a ser o mais estranho de todos.
— Ara, minha neta querida. — Ele sorri, de braços abertos.
Estou tão confusa, a cabeça lateja com inúmeras perguntas, mas a felicidade é tal, que me atiro simplesmente para os seus braços.
— Estás vivo, avô! — constato, levantando a cabeça do seu peito e fitando-o nos olhos.
— Sim. Estou aqui contigo — diz ele. — Estás bem? Como te sentes? — prossegue, com um ar mais sério e preocupado.
— Estou bem, avô. Mas como é possível? Nós recebemos uma carta, pensávamos que estavas morto.
Ele abre os braços e sorri, a assegurar-me de que está vivo e bem.
— Há quanto tempo estou a dormir?
— Há quarenta e oito horas. — Noto uma mudança de expressão no seu rosto.
— Já estiveste com o pai? — Continuo a bombardeá-lo com perguntas.
— Ainda não. Tem calma. Vamos sentar-nos aqui. — Puxa-me cuidadosamente e conduz-me para a cama.
Sentamo-nos lado a lado, com as pernas para fora da cama. Como ele não responde às minhas perguntas, fito-o, por instantes. Está mais moreno, com um ar saudável, e parece ter emagrecido uns quilos. Não lhe fica nada mal. A barba, perfeitamente aparada, mede uns dois centímetros e está cada vez mais branca. Usa umas calças castanho-escuras, do mesmo tecido dos lençóis da cama, e uma camisa branca fina e macia. Mas está descalço. Quando me concentro novamente no seu rosto, percebo nele sinais evidentes de preocupação.
— Estou morta, avô? Morri e vim ter contigo. É isso? — pergunto, sem pensar muito seriamente no que estou a dizer.
— Não, Ara, não estás morta. Mas eu percebo que estejas nervosa e confusa.
— Então o que se passa, porquê essa cara? Não estás contente por me ver?
Ele pega na minha mão e aperta-a.
— Estou felicíssimo por te ver e por estares bem. Mesmo muito feliz. Mas… há muitas coisas que tenho de te explicar.
— Que coisas, avô? E que sítio é este?
Ele suspira longamente e descai os ombros. Depois, levanta-se e começa a andar de um lado para o outro, de olhos no chão.
— Lembras-te das histórias sobre um mundo fantástico que eu vos contava quando eram pequenas?
— Sim.
— Lembras-te de uma sobre um pescador que quase se afogou, mas foi salvo por uma princesa que vivia no fundo do mar?
— Sim, claro que me lembro. Era a minha preferida; a do pescador rezingão e da princesa sereia.
— Bem, Ara, não eram histórias, e o mundo de que falava não é de fantasia — diz, por fim, num fio de voz.
Está visto: ou estou mesmo morta, ou o meu avô perdeu o juízo, penso.
Faz-se silêncio e ele observa atentamente a minha reação.
— Quer dizer então que vou poder conhecer uma sereia?
Esforço-me por parecer tão descontraída quanto possível, pois não quero que ele se preocupe demasiado com a minha reação ao seu comportamento louco.
Dá uma gargalhada de entusiasmo e puxa-me contra si com um braço. Eu reajo com um sorriso, sem saber o que dizer. O meu avô passou-se completamente. Será demência? Ele acredita mesmo nestas tretas!
— Tu surpreendes-me sempre. É melhor mostrar-te. — Dá-me a mão e ajuda-me a levantar.
— S… sim, claro. Onde vamos? — Quero saber.
— Veste-te que eu conto-te tudo. Tens aí roupa, penso que é do teu tamanho. — Com um sorriso rasgado, aponta na direção do armário embutido na parede. Sai e fecha a porta do quarto.
Relutante, mas não querendo contrariá-lo e poder, com isso, piorar o seu quadro de delírio, abro o armário. Lá dentro está pendurado um trapo. É verdade, não tem outro nome — tra-po. O toque é granuloso como areia e macio como seda. No entanto, adoro a cor: verde-água, a minha cor favorita. O avô não se esqueceu. Desconfiada, coloco-o à minha frente, diante do «espelho-fonte», dando voltas à cabeça para perceber como visto isto. É um vestido bastante decotado, sem costas, com a saia em bicos. Penduro-o novamente no armário e opto pela minha roupa, que está em cima da cama. Muito mais confortável, penso, com um sorriso.
Visto-me com alguma dificuldade, por causa da dor que se espalha por todas as terminações nervosas do meu corpo. Abro a porta do quarto, e o avô está à minha espera do lado de fora, com um ar ansioso. As sobrancelhas franzidas denunciam-no.
Ao seu lado está uma mulher um pouco mais baixa do que ele. O seu cabelo é cinzento, comprido, com canudos, e exibe um rosto oval e terno. Veste uma túnica clara, cor de coral, sem mangas. Mais uma maluquinha aqui do manicómio, penso de fugida, e acho que não consigo esconder a minha impaciência quando ensaio um sorriso amarelo.
Porra, no que é que me meteste agora, avô?, penso, chateada. Mas, ao olhar mais atentamente, reconheço nela alguns traços, e o seu olhar amistoso parece-me muito familiar.
O meu avô põe-se à minha frente e não me deixa avançar mais.
— Ara, quero apresentar-te a Raina Amos. — Parece um miúdo envergonhado. — A tua avó.
Ao terminar a frase, sai da minha frente, deixando-me cara a cara com ela. Eu fico atónita, sem saber o que dizer. What the fuck!
— A minha neta Ara. — A voz é melodiosa e agradável. — O Anadir falou-me tanto de ti. Que bom conhecer-te, finalmente.
A sua expressão é maternal; abraça-me com força.
Eu retribuo desajeitadamente o abraço, que, apesar de tudo, me transmite uma sensação consoladora.
Olho atordoada para o avô, que me dirige um sorriso com uma lágrima ao canto do olho. Só vi o meu avô chorar uma vez, na altura em que se despediu de nós para regressar ao Brasil, portanto, a coisa é séria. Mas que raio se passa aqui? A mulher não estava morta?
— Você é que é a Sereia? — gracejo, com toda a confiança, sem saber mais o que dizer perante esta situação. — Eu também já ouvi falar muito de si. As histórias que o avô nos contava à hora de dormir eram sobre a senhora, percebo isso agora.
— Trata-me por tu, Ara — pede Raina. Assinto com a cabeça.
— Sim, eu tentava recordá-la e dá-la a conhecer da melhor forma possível, sem vos assustar ou desvendar a verdade — prossegue o meu avô.
— Que verdade?
— Vamos dar uma volta. — Raina pega na minha mão e dá-me o braço.
Fico embaraçada e um pouco desconfortável. Começamos a andar e o avô põe-se ao meu lado. Percorremos agora, pausadamente, um corredor bem iluminado, de paredes muito brancas e lisas.
— Há milhares de anos que existimos e habitamos aqui. Até agora, conseguimos, com alguma dificuldade e com o sacrifício de todos, manter a nossa civilização em segredo — conta Raina. — Se nos descobrissem, nada de bom poderia daí advir.
Aqui onde?, penso. Mas neste momento tenho medo de perguntar e ouvir os disparates que possam ter para me contar. Aceno com a cabeça para saberem que estou a escutar. Só quero encontrar alguém lúcido e bazar daqui.
— Um dia, estava eu a pescar, tinha mais ou menos a tua idade, gerou-se uma tempestade. A embarcação virou-se e fui trazido cá para baixo. — Eles entreolham-se com o olhar mais terno que alguma vez vi o meu avô dirigir a uma pessoa. Até a nós, as suas netas queridas.
Quê? Para baixo? As minhas orelhas aguçam-se. Se calhar, esta conversa não é tão disparatada assim. A ver vamos…
— Para baixo?
O meu avô ignora a minha pergunta.
— De início, não fui bem aceite. Como todos os que cá chegam, tive de provar o meu valor e dar a conhecer as minhas verdadeiras intenções.
— Foi então que nos apaixonámos — retoma Raina. — Éramos jovens e pensávamos que podíamos alterar as leis do universo com o poder do nosso amor.
— És mesmo a minha avó? — pergunto, em surdina, ainda incrédula.
Raina para e roda o corpo, ficando de frente para mim, mas sem me largar o braço. Acena lenta e afirmativamente com a cabeça.
— Não vês as parecenças? — pergunta-me com um breve sorriso.
— Não entendo. Se te aceitaram aqui, porque tiveste de ir? Porque não escolheste ficar?
Raina responde por ele.
— Foram tempos conturbados e uma decisão muito difícil, mas tomada em conjunto. Foi extremamente doloroso para mim deixá-los partir, mas estávamos no início do que pensávamos que se iria tornar uma guerra e não queria sujeitá-los a qualquer tipo de violência. Sabia que, se eles saíssem, o Anadir faria tudo para que o nosso filho usufruísse de todas as oportunidades que a vida à Superfície teria para lhe oferecer. Nunca perdi a esperança de que ele um dia encontrasse o caminho de volta a casa. — O seu sorriso desvanece-se e os olhos tornam-se mais escuros.
— E porque não foste com eles? — É neste momento que reparo que estou a entrar no delírio coletivo deste casal tão fofo de velhinhos.
— Porque o meu dever era ficar.
E nada mais me diz. Vejo que é um assunto sensível e não quero tornar as coisas mais constrangedoras. O corredor que percorríamos desemboca num largo.
— Bem-vinda a Aquorea — diz Raina, com um gesto amplo do braço.
Oooh!… Tão lindo!
— E tu tens estado aqui, avô? — Encaro-o, incrédula.
— Sim, decidi que, uma vez que vocês já não precisavam de mim, estava na hora de voltar para casa.
— Nós fomos ao Brasil. Fizemos-te o funeral! — menciono, indignada.
Olho para os seus olhos, que escurecem e brilham.
— Sei que foi difícil para todos, mas tinha de tentar vir, estava na hora. Já sou velho. Se não viesse agora, poderia nunca mais regressar.
— E estás cá há oito dias? — pergunto, confusa.
— Dez. Quando tu aqui chegaste, ainda ficaste dois dias inconsciente. — Baixa o olhar. — Mas parece que nunca me fui embora. Não é, meu amor?
Olha para Raina com ternura; parece um miúdo apaixonado. Ela sorri e pega-lhe na mão.
— Do meu coração, nunca partiste. Assim como o nosso filho — diz ela, com lágrimas nos olhos. — A esperança que tenho de voltar a vê-lo só desaparecerá com o meu último suspiro.
— Voltaremos a vê-lo. — Limpa as lágrimas com as costas da mão e suspira longamente. — Vou buscar alguma coisa para comeres. Deves estar com fome. — Dá um beijo rápido no rosto de Raina e acelera o passo, como que fugindo de nós.
— Sim — respondo, já ele se está a afastar. Não tenho fome nenhuma, e parece-me que não voltarei a ter tão cedo.
Estamos perto de um prédio imponente, todo transparente e muito brilhante, que se destaca entre as construções mais pequenas e simples. É em forma de espiral, largo e altíssimo.
Diante de nós há uma estrada, que, deduzo, deve ser a estrada principal. O chão não é de alcatrão nem de terra batida, numa cor entre o cinza e o bege muito claro, e brilha como resina. Dou por mim a pensar que nunca vi este material. Ao longo da estrada corre um rio largo, que a acompanha até perder de vista. Uma série de pontes brilhantes, intrincadamente trabalhadas, com cornucópias desenhadas, atravessam o rio, que se divide em braços mais pequenos pelas artérias da cidade. Olho para ambos os lados e conto rapidamente seis pontes. O meu avô atravessa uma delas. Do lado de lá do rio vejo pessoas, aparentemente nos seus afazeres quotidianos. Observo-o, agora um ponto pequeno, quase irreconhecível, ao dirigir-se a uma bancada, e percebo que deve ser um mercado.
No alto, do meu lado esquerdo, de onde o rio desce, avisto um grande aglomerado de árvores em tons verde-esmeralda, que, apesar da distância, parecem altas e frondosas. No solo, mais perto de mim, pequenas flores azuis e vermelhas despontam de um manto verde de uma erva muito curta, semelhante a musgo. Uma flor castanha, apenas com quatro pétalas, salpicada de pontos amarelos, capta a minha atenção. As folhas parecem fortes e eu tenho vontade de colher uma, mas não sei se é permitido, por isso, coíbo-me de o fazer.
— Raina, não estou a entender uma coisa… Continuamos no Brasil?
— Não, aquele é só um dos vários portais para cá chegar. Estamos algures no oceano Atlântico, a milhares de metros de profundidade, debaixo de água, rocha, lava e sal.
Interrogo-me como é possível terem luz, árvores e ar, tantos quilómetros abaixo da Superfície.
— E como é que nunca ninguém vos encontrou? Com a tecnologia que há hoje em dia: sonares, mapeamento marítimo…
— É quase impossível encontrarem-nos, mas temos de nos proteger — observa Raina, compenetrada.
Nem mesmo nos meus sonhos mais belos vi algo semelhante. Encaminhamo-nos para o lado direito, onde há dezenas de árvores de fruto: umas muito semelhantes a cerejeiras, carregadas de fruta globosa, vermelha e com um aspeto de gelatina de morango.
— Que fruto é aquele? — pergunto, apontando para as cerejas.
Raina mostra-me um sorriso engraçado, de verdadeira surpresa.
— São kerrysis. E a árvore tem o mesmo nome. É deliciosa e serve também alguns propósitos medicinais.
Em meu redor, quedas-d’água estreitas e delicadas vertem das paredes — na sua maioria, brancas — no meio da vegetação verde-jade.
Ao fundo, num campo bem delimitado, junto da margem do rio, vejo um grupo de pessoas, não sei bem se a jogar ou a lutar. E, junto delas, um grande cais com embarcações prateadas brilhantes atracadas.
— Este é o Riwus. O nosso rio de água doce — refere Raina, como se me lesse o pensamento. — Dá-nos uma boa parte do que precisamos para viver, por isso respeitamo-lo muito. Foi também ele que te trouxe até nós. Só a quem tem uma ligação muito forte com o nosso mundo é concedido o privilégio de entrar — prossegue. — Essa triagem é feita pela água, que funciona como um portal para Aquorea. Existem vários pontos de entrada espalhados à Superfície, como aquele que te trouxe.
— Mas porquê? Porquê eu?
— Só a água sabe. Talvez pelo amor que tens ao teu avô e pelo facto de manterem uma ligação tão forte.
— Come alguma coisa, Ara — atalha o avô, esticando a mão para me dar as coisas que comprou.
Traz um cesto na mão com diferentes espécies de fruta, quase todas desconhecidas para mim, e uns bolinhos pequenos, muito escuros. Oferece-me um dos bolinhos, que eu aceito, relutante; cheiro-o e depois mordisco despreocupadamente.
— O rio? — Recordo, de repente, os olhos azuis. — Mas eu lembro-me de alguém me trazer ao colo — declaro.
— Sim, foi o Kai que te encontrou. Está ali a dar formação. Já lá vamos. — O meu avô aponta para um rapaz alto, no meio do grupo que avistei há bocado.
E é aqui que o vejo, por inteiro, pela primeira vez. Grita e dá ordens para que façam exercícios, tal qual como na tropa. Enquanto o observo à distância, ele ergue o rosto duro, maxilares contraídos, e olha-me fixamente, como se pressentisse a minha presença. Baixo os olhos e sinto-me estranhamente envergonhada e desconfortável com aquele olhar penetrante.
À medida que nos aproximamos do grupo, percebo melhor o que fazem. É um conjunto de jovens, subdividido em grupos mais pequenos, a treinar uma forma de luta. Eu gostaria, sem dúvida, de aprender isto. Dois rapazes corpulentos e bastante musculados, um deles com o cabelo encaracolado, muito preto, pelos ombros e despenteado, e o outro de cabeça rapada, lutam e rebolam agilmente pelo chão, com movimentos coordenados, como numa dança, socando violentamente a cara e o estômago um do outro. Um grupo de cerca de vinte jovens rodeia-os, assistindo em delírio à luta. O de cabeça rapada é derrubado e debate-se no chão. O outro prende-o sob o peso do corpo e ri, entusiasmado, dizendo-lhe que desista. «Boa, Monitor», e «muito bem, Wull», são frases ditas em tom elevado e convincente. Por isso, deduzo que Wull seja o cabeludo e, talvez, o professor deles. Apesar de ver pessoas de todas as raças e etnias, verifico que, tal como os meus avós quando se dirigiram a mim, também eles falam inglês.
Um casal mais ou menos da minha idade está junto do rapaz que me apanhou. Ele demonstra-lhes como usar um objeto que tem na mão. Parece um arpão de pesca, preto e brilhante, embora bastante mais pequeno. A ponta, em forma de lança, é terrivelmente aguçada. Reconheço o objeto, porque o meu avô tinha um para fazer pesca submarina. Sem hesitar, aponta para um alvo a grande distância e dispara, acertando no centro.
— Kai — chama Raina, serenamente. — Vem cá, por favor.
Neste instante, todos os outros olham para nós. Ou melhor, para mim, a «penetra». Sou invadida por uma sensação de angústia. Não gosto de dar nas vistas, procurando ser o mais discreta possível. Na escola, fico sempre no meu canto e falo apenas com quem se dirige a mim, embora prefira de longe a companhia dos livros. E agora, todos me olham com ar de espanto e de admiração, como se eu fosse um animal raro num jardim zoológico.
— Na wai i kii ki a koe Kai mutu? — grita Kai, num tom de voz rouco e vibrante, num dialeto que desconheço. Parece-me somente uma salgalhada de palavras.
Observo-o pelo canto do olho.
— O que disse ele? — pergunto a Raina.
— «Quem vos mandou parar?» — explica.
Vejo-o acenar afirmativamente a Raina. Dá as últimas instruções aos seus alunos e aproxima-se de nós numa passada firme. Não sei o que fazer com as mãos, portanto, decido enfiá-las rapidamente nos bolsos das calças.
Os meus olhos vagueiam, uma e outra vez, na sua direção. Usa bermudas pretas, uma T-shirt da mesma cor, e está descalço. Olho em redor e verifico que todos estão descalços, Raina inclusive. Mas o que é que se passa com esta gente?
— Posso ajudar, Raina? — pergunta Kai, num tom de voz suave, sem me dirigir uma palavra ou um olhar.
— Ara, apresento-te o Kai Shore — diz Raina.
Sinto um aperto na boca do estômago. As mãos suam dentro dos bolsos e sinto-me mais apatetada do que o habitual. Os maxilares fortes enaltecem-lhe o rosto simétrico. Deve ser um ou dois anos mais velho que eu.
— Kai — Raina fala pausadamente —, esta é a Arabela Rosialt. Tu trouxeste-a do lago e ela quer agradecer-te.
Ele contrai de novo os maxilares, como que a reprimir algo que queira dizer. Então, vira-se lenta e mecanicamente para mim, com as mãos atrás das costas. De perto, percebo que é muito mais alto do que eu. Pequenas gotículas de suor perlam-lhe a pele. A postura é rígida ao fixar os olhos em mim.
Porque reage assim? Nem sequer me conhece… Então porque me salvou? Sinto-me um pouco intimidada, mas faço um esforço para erguer a cabeça. Encaro-o com determinação, tiro a mão direita do bolso, passo-a rapidamente pela coxa para limpar o suor e estendo-a para o cumprimentar. Fico de braço estendido, à espera.
O seu rosto transmite agora hesitação, como se ponderasse seriamente se deve ou não tocar-me.
— Rosialt — balbucia. A voz baixa, controlada. Parece genuinamente surpreendido com a minha postura. Arqueia a sobrancelha esquerda e está de olhos arregalados. Ainda com uma das mãos atrás das costas, numa postura defensiva, estende-me a outra e cumprimenta-me com um aperto demasiado forte. O seu antebraço, do pulso até quase ao cotovelo, está coberto por uma manga de pele ou armadura negra delicadamente trabalhada. Perco-me uns segundos naqueles contornos e gravuras. O meu corpo é percorrido por uma corrente elétrica e os arrepios que se seguem chegam a locais que eu desconhecia existirem. É a primeira vez que aprecio o seu rosto em pleno uso dos meus sentidos, mas é como se o conhecesse desde sempre.
— Shore — respondo, no mesmo tom.
Faço um enorme esforço para parecer calma e olhá-lo nos olhos. É quase impossível não me distrair com os seus olhos tão claros e avassaladoramente profundos. Continuo a sentir o formigueiro elétrico, embora já não tão intenso. Kai está estático, como que em transe. Continua a apertar-me a mão e já me doem os ossos.
— Peço desculpa pela maçada que te dei. Tens, com certeza, coisas melhores para fazer do que salvar raparigas magicamente caídas de cascatas — prossigo, tentando parecer desinteressada.
No momento em que o digo, sinto uma satisfação de vingança pelo comportamento sombrio dele, e isso anima-me. Os seus olhos faíscam e ele aperta-me ainda mais a mão. Contraio os músculos e todo o meu corpo estremece, mas não quero de forma alguma dar a entender o quanto ele me afeta. Por fim, arranco a mão daquele casulo. Dói-me como o raio!
— Já pesquei muitas outras — diz ele, bruscamente, e eu julgo ver um sorriso escarninho muito subtil aflorar-lhe aos lábios. Dito isto, despede-se de mim com um quase impercetível aceno de cabeça. Vira-se depois para Raina e Anadir e faz o mesmo gesto. Dá meia-volta e regressa para junto dos outros, no mesmo passo obstinado.
Não posso acreditar que ele me disse uma coisa destas. Estúpido!
Sinto o rosto e o pescoço ferverem e as mãos tremem-me. Raina observa-me, com um sorriso rasgado, e dá-me uma palmadinha no ombro.
— Lamento. — Parece divertida e simultaneamente envergonhada pelo comportamento do tipo. O meu avô olha para Kai com um rosto predatório, como um tigre concentrado na sua presa.
— Ele é apenas… Bem, é complicado. Continuamos? — diz Raina, como que a desculpar o comportamento de Kai.
O meu eu interior pede um último olhar de soslaio para Kai. Embora já esteja longe, ele olha-me intensamente no mesmo instante em que me viro para o fitar. Desvio imediatamente o olhar, perguntando a mim mesma se ele sente o mesmo nervosismo. A julgar pela expressão séria e firme que exibe no rosto, não me parece.
Prosseguimos caminho pela mesma margem do rio. Centenas de pessoas andam na rua e todas elas me olham. Algumas acenam com a cabeça, sorrindo entusiasmadas, outras fitam-me com curiosidade, e há quem me olhe com desconfiança. O meu avô dirige olhares reprovadores às pessoas que tentam aproximar-se, pelo menos umas cinco vezes. Talvez seja a sua forma de me proteger para que eu possa assimilar calmamente toda esta informação.
Atravessamos algumas pequenas pontes nos braços mais estreitos do rio, dispersos pela cidade. Ao olhar mais atentamente para os edifícios, constato que são baixos, de dois ou três andares, e feitos quase inteiramente de vidro. Interrogo-me se será vidro ou água, como o espelho do hospital. São às centenas estas habitações, todas elas brancas, idênticas. É uma grande cidade, mas sem um único carro. Um ou outro edifício mais alto destaca-se, mas todos eles possuem a mesma estrutura arquitetónica reta, moderna e transparente.
Estreitas ruelas serpenteiam entre os edifícios. Ao fundo de uma delas, avisto um enorme jardim colorido.
Percorremos o que ainda me parece ser a rua principal. Raina e o meu avô caminham lado a lado, em silêncio, com um sorriso nos lábios e o rosto leve. Durante pelo menos uma hora, acompanhamos o vasto rio, onde, aqui e ali, flutuam pequenas embarcações. Passamos por zonas diferentes, umas mais iluminadas, outras mais escuras, com maior ou menor inclinação, com mais ou menos vegetação, umas mais urbanizadas do que outras, mas todas elas extremamente cuidadas e limpas. Se não soubesse onde vim parar, diria estar numa cidade qualquer das que conheço à Superfície, embora esta seja mais limpa e ordenada.
Inclino a cabeça para trás e vejo grandes luzes e cristais suspensos em pontos estratégicos, de forma a iluminar casas, ruas, jardins e algumas partes do rio.
Como é possível terem luz? Não me apetece debater o assunto neste momento e também não os quero inundar de perguntas. Deixo a questão para mais tarde. O ar está húmido e quente, e eu sinto o corpo todo pegajoso, por isso tiro a sweatshirt que trago vestida por cima do top de alças e ato-a à cintura.
A estrada torna-se mais estreita. Caminhamos agora junto ao leito do rio, a poucos metros da água. As paredes em redor também são brancas, mas parecem compostas de grandes grãos de areia sobrepostos, e o chão de resina brilhante dá lugar a um empedrado desalinhado, de cor clara. Após uma curva acentuada, atravessamos uma última ponte, onde o ruído é ensurdecedor. Há quatro barcos pequenos e prateados ali atracados, e dois rapazes, vestidos de preto, estão sentados na doca a conversar, com os pés de molho.
— Hey — dizem. Acenam com a cabeça na nossa direção.
Olho para baixo e vejo uma queda-d’água de dez metros de altura. Olho para longe e deparo-me com um cenário inesperado. Por esta altura já devia esperar tudo, eu sei… mas ainda não estou mentalmente apta a absorver uma tal enxurrada de novidades. Paredes cor de cal envolvem uma lagoa de água azul-celeste, com dezenas de bungalows perfeitamente alinhados. Vista daqui de cima, dir-se-ia uma imagem saída de uma revista de viagens de sonho.
— Salt Lake, a nossa casa — diz Raina.
— A vossa casa… — repito, num tom incrédulo.
— É uma lagoa de sal. O rio desagua aqui e, como o leito é poroso e permeável, a água mantém-se sempre ao mesmo nível.
Ela aponta para norte, de onde viemos, para o curso do rio.
Saímos da ponte e deparamos com uma ampla escadaria. Descemos e continuamos a andar por um passadiço de madeira que dá acesso às casas. Viramos à esquerda e percorremos outro semelhante, embora mais estreito, passando por alguns bungalows. São lindíssimos. Minimalistas. Alguns têm a porta aberta e eu vislumbro pufes e sofás espalhados pelo interior, com ar bem mais confortável do que a cadeira do hospital. As casas são todas idênticas, construídas em madeira clara. E o telhado, de tecido branco, é pontiagudo. Estou fascinada e o meu coração parece acompanhar o meu deslumbramento com uma batida irregular e acelerada, como um cavalo a galope. Viramos à direita e o meu avô passa a mão num pequeno visor, sem lhe tocar. A porta desaparece. São paredes de água, finas, silenciosas e opacas, que não permitem ver para o interior.
— Bem-vinda — diz ele. — Enquanto estavas a recuperar na clínica, recolheram-te as impressões digitais, bem como amostras de sangue, saliva, tecido. Faz parte da burocracia de ser um habitante de Aquorea. Tomei a liberdade de tratar disso por ti, pois queria agilizar a tua saída assim que acordasses.
— Como assim, habitante de Aquorea? Tenho de ficar aqui? — pergunto.
— Não te preocupes agora com isso. Quando passares a tua mão neste visor, as cortinas de água também se ativam e desativam. E dar-te-ão acesso a outras coisas na cidade, como os estabelecimentos públicos. Terás tempo para explorar mais tarde.
— E nunca, nunca passes por uma cortina de água ativa — aconselha Raina.
Nenhuma palavra me ocorre. Não consigo sequer esboçar um sorriso.
— Entra — convida Raina. — Espero que te sintas à vontade. Esta é também a tua casa.
Assim faço. Parece uma casa perfeitamente normal. Tem um enorme hall, com pufes redondos, e para todo o lado que olho só vejo branco. Desço um degrau para a sala, que também tem uma cozinha aberta e um corredor, que assumo — com alguma cautela — dar acesso aos quartos. Todos os móveis, porém, pairam no ar, a alguns centímetros do chão. Uma escadaria larga e totalmente transparente surge no canto direito. Há mais um andar.
— O teu quarto é ali — indica o avô, apontando para um vestíbulo ao fundo do corredor. É um corredor largo, com cerca de seis metros de comprimento e duas portas, uma em frente à outra.
Encaminho-me para o corredor e entro no quarto. Tem uma cama grande, suspensa no ar, e uns focos de luz que o iluminam muito bem. A parede do fundo, onde está encostada a cabeceira da cama, é bege, a do lado esquerdo é totalmente transparente, e as outras duas são brancas, tal como o teto.
— Aquela janela também é de água? — Aponto para a parede transparente.
— Sim, também — responde Raina com um sorriso largo, e sai do quarto.
Uma porta, do lado direito, dá acesso a uma casa de banho espaçosa. Fico satisfeita, pois sempre partilhei a casa de banho com a minha irmã. O avô explica-me rapidamente onde apagar e acender as luzes, e como ativar e desativar a janela de água.
— É também possível regular a opacidade da janela e escolher diferentes cores, que funcionam como um sistema de cromoterapia — explica. — O nosso quarto é no andar de cima. Aquele dali é o das visitas. — Sorri, apontando para o quarto da frente.
— Avô… tu sabias que eu viria?
O rosto dele fica muito sério.
— Não sabia, mas digamos que tinha esperança e que, se a minha intuição estivesse certa, a água arranjaria forma de te trazer.
— Mas porquê? E como é possível tudo isto?
— Como é que respiramos ou o coração bate, querida?
Ignoro-o.
— E os meus pais, avô? Tenho de avisá-los de que estou bem. Devem estar desesperados.
— Estás cansada. Amanhã falamos e tudo te parecerá menos confuso.
— Estou mais preocupada do que cansada. Tenho de os avisar. Como posso fazê-lo?
— Vamos resolver isso. Tudo a seu tempo. Agora tens mesmo de descansar. Tirei-te da clínica com o compromisso de que te ajudaríamos a recuperar em casa — diz ele, já à porta, deixando-me a sós com os meus pensamentos.
Toda esta situação me deixa angustiada e não consigo jantar. Após a insistência de Raina, como mais alguns daqueles bolinhos que o meu avô trouxe do mercado — que soube então serem à base de algas — e bebo um chá de ervas, doce, com aroma cítrico, antes de lhes pedir licença para me retirar. Preciso de ficar sozinha e refletir sobre o que me está a acontecer.
Quando me deito, sinto o corpo moído e a latejar. Quero descansar. Preciso de descansar. Tiro o relógio do pulso e pouso-o numa prateleira saída na base da cama. Olho para o mostrador: são 2h17. Não sei se está avariado ou se a hora aqui é diferente… Mais uma questão a colocar.
Encosto a cabeça à almofada, mas continuo a sentir-me frenética. Aqueles olhos azuis continuam a assombrar-me num canto não muito resguardado da minha mente. Cada vez que penso no nosso encontro, apenas há algumas horas, sinto o sangue ferver e a adrenalina borbulha-me no corpo. Apetece-me bater em alguma coisa.
E porque terão os avós um quarto para mim? O avô disse que estavam à minha espera. Tudo isto me parece suspeito. São demasiadas coincidências.
Das últimas vezes que conversámos ao telefone, ele falou-me por enigmas e disse-me que estaria à minha espera no mundo real dos sonhos. Ele sabia que eu viria ter com ele.
Há um mundo desconhecido, por baixo da superfície da Terra há milhares de anos, e eu vim cá parar sem saber porquê. Mas esta loucura tem de ter uma explicação lógica. São perguntas para as quais eu vou, com toda a certeza, obter respostas.