Estes últimos dias foram tranquilos. Tenho saudades dos meus pais e a cada momento que passa estou mais preocupada com eles. Voltei a falar com o meu avô acerca do assunto, mas ele arranja sempre forma de evitar ou banalizar a situação, tentando tranquilizar-me. Estive quase sempre por casa, a matutar. Exceto ontem, quando fomos jantar a casa de uns vizinhos. Os meus avós ficaram contentíssimos com a minha companhia, pelo que resolvi esforçar-me um pouco mais para os acompanhar e tentar sacar informações a Raina sobre os portais. O jantar foi muito agradável; o casal, mais ou menos da mesma idade dos meus avós, é vegetariano. A comida estava tão bem preparada e os alimentos tinham um sabor tão bom, tão natural, que eu comi tudo com a maior das satisfações. Tentei não pensar muito nos meus atritos com Kai, mas sem sucesso.
Comecei a ler Grandes Esperanças, de Charles Dickens, que o meu avô me emprestou. Mas nem isso surtiu o efeito desejado. E, para meu espanto, umas sapatilhas de ballet, bastante desgastadas, apareceram penduradas na porta do meu armário. Dancei até os pés sangrarem e senti-me menos sufocada, mais livre e eternamente agradecida aos meus avós.
Estou deitada em cima da cama a olhar para o teto. Tento encontrar-lhe algum defeito para me distrair, mas é tão liso e branco que nem isso me ajuda. Estamos no fim da tarde e penso no que os meus novos amigos estarão a fazer. Só os conheço há poucos dias; será que os posso considerar meus amigos? E será que eles me consideram sua amiga?
— Psiiiuuu. — Ouço um assobio baixo e alguém espreita antes de entrar no meu quarto.
— Então, Meia-Leca?
Ergo-me nos cotovelos e encaro três figuras que me sorriem. Petra, Isla e Mira.
— Olá, Cenourinha! — respondo a Petra. — O que estão aqui a fazer?
Tenho plena consciência de que o meu rosto se ilumina.
— Viemos ver-te — diz Isla.
Traz um macacão de calção azul-claro, a condizer com o seu cabelo, que está preso com dois carrapitos de cada lado. Senta-se em cima da cama, com as pernas à chinês, e as outras imitam-na. Eu sento-me e ponho-me na mesma posição. Estou encostada à cabeceira e elas estão as três à minha frente, Mira entre Isla e Petra. Isto nunca me aconteceu, nunca tive amigas que me viessem visitar. À exceção de Colt, claro. Mas ele está sempre metido lá em casa e conhece-me desde criança, portanto, acho que não conta. Como estará ele? A pensar que estou morta, claro!
— Sim. E arrastar esse rabo para fora da cama. Estás deprimida, ou quê? — pergunta Petra, sem cerimónias. Mira olha-a com um olhar de censura, e ela revira os olhos. — O que foi? Eu estudei isto. É mesmo uma doença que existe lá em cima e que afeta milhões de pessoas em todo o mundo.
— Eu sei o que é depressão, Petra. Mas a Ara não está deprimida, pois não? — Mira abana a cabeça, como quem já desistiu. — Só está triste e precisa de se divertir.
— Não, não estou. Estou apenas cansada… acho.
— Como podes estar cansada se não sais daqui há dias? — reclama Petra, no seu tom muito próprio. Não é indelicada, é apenas direta. E eu gosto disso. Gostava de ser mais como ela e não ter sempre tanto cuidado com o que os outros pensam.
— Como é que sabes?
— Aqui sabe-se tudo — responde Isla.
— Estou a ver…
— A Raina esteve com o meu avô e disse que não te sentias muito bem, que devias estar a ficar doente — clarifica Mira.
— Estou bem. Talvez seja o jet lag — brinco.
— Ótimo, porque hoje vamos sair — declara Petra.
— Hoje?! Onde?
— Vamos divertir-nos. — Isla sorri e olha para as amigas.
— Já está combinado há alguns dias, lembras-te? — pergunta Petra. Ao ver o meu olhar confuso, explica: — No dia em que nos conhecemos, o Beau disse que íamos levar-te a sair.
— Anda, vai ser giro. São só alguns amigos. Vamos jantar — revela Isla, juntando as mãos em frente ao rosto, em modo suplicante.
Apetece-me sair de casa, mas não quero arriscar outro encontro ou discussão com Kai. Aqui, ao menos, sei que ele não aparece. Ou aparece? Não. Não vou! Quero evitar qualquer confronto com ele, para não dizer ou fazer algo de que me arrependa.
— Agradeço o convite, mas…
— Não é um convite. — Isla corta-me a palavra.
— É um raio duma intimação! — exclama Petra, com um ar duro, em jeito teatral, para depois se escacar a rir.
— Anda, Ara. É divertido — incita Mira. Se Mira gosta, e ela é um rato de biblioteca, tal como eu, acho que não fará mal.
— Okay, okay, eu vou. — Dou-me por vencida. Deixo-me cair com as costas na cabeceira. — O que devo levar vestido? — Desencosto-me novamente para as fitar.
Isla levanta o rabo da cama e dá-me um abraço. Encosta a sua bochecha à minha e entoa um gritinho de entusiasmo.
— Fico tão feliz — guincha, demasiado alto, e eu afasto-a a rir-me. — Algo leve e fresco. É um jantar molhado.
— Molhado? Vamos jantar dentro de água?
— Sim — responde Petra, simplesmente.
— Vá, levanta-te! Refresca-te e veste-te. Eu vou indo para me arranjar — explica Isla, levantando-se da cama. Petra pula da cama e Mira deixa-se ficar à minha frente.
— Okay, okay — digo. — Vou só avisar os meus avós de que não janto. Onde vou ter?
— Já avisei a Raina que não jantas — esclarece Petra, num tom solene. Eu semicerro os olhos, claro sinal de perigo, mas ela limita-se a atirar-me um beijo sonoro pelo ar. — Ficas, Mira?
— Já vos apanho — responde Mira, sem olhar para trás.
— Claro que sim. — Petra ri num tom trocista. Mira revira os olhos, mas mantém a postura séria. Eu sorrio. Que feitiozinho aquela miúda tem. — Vem ter connosco à entrada do GarEden. Vou só trocar de roupa e encontramo-nos lá.
E sai, com Isla atrás dela.
Espetáculo. Só estou aqui há uma semana, e já me deixo arrastar para festas sem ter voto na matéria quanto a se quero ou não ir. Mas fico feliz por ter um grupo de pessoas que, apesar de conhecer pouco, considero amigas. E de elas parecerem gostar, genuinamente, da minha companhia.
— Ara, estás mesmo bem? — pergunta Mira mal as outras fecham a porta do quarto.
— Sim — minto. — Porquê?
O seu rosto demonstra preocupação.
— Sei como pode ser difícil a adaptação aqui. E como o choque pode provocar disfunções a nível físico e psicológico.
— Estou bem, Mira. — Esforço-me por tranquilizá-la e dizer a mim mesma que esta nova fase da minha vida não é nada de especial; que é perfeitamente natural ter sido convocada, por portais de água, para um mundo que só deveria existir em livros de ficção. — Não tens com que te preocupar, a sério — reforço.
— Sabes que, se precisares de alguma coisa, podes contar comigo.
Arrasta o rabo no colchão e aproxima-se um pouco mais de mim. Pousa a mão em cima da minha e aperta-a ligeiramente. O sorriso dela é tão bonito e meigo que me traz uma sensação reconfortante. Cubro a mão dela com a minha outra mão.
— Obrigada, fofinha — digo. Acho que é a primeira vez na minha vida que trato alguém assim.
— Relativamente à Umi… Ela é boa pessoa. — Mira fala a medo. — Ela é órfã, sabes. Isso não desculpa o que ela fez, se é que foi de propósito. Custa-me a crer que ela fosse capaz de uma coisa dessas.
— Pois, não sei. A verdade é que podia ter ficado com o cérebro em papa.
— Não a estou a desculpar ou justificar. Mas tudo tem um fundamento. Ela perdeu a mãe aos cinco anos. O pai não lidou bem com a morte da esposa e começou a descontar na pequena Umi. Ela sofreu muito às mãos do pai, antes de ele morrer de um ataque fulminante, quando ela tinha apenas doze anos. Ela cresceu perturbada e revoltada com a vida.
Levo a mão ao peito, a pensar no sofrimento daquela miúda.
— Oh, que horror!
— Os pais da Isla foram um grande suporte, ajudaram-na e orientaram-na enquanto crescia. Ela tem por eles muito amor, e Ghaelle, o pai da Isla, é o motivo por que Umi ingressou nos Protetores. E acho que encara o Kai como um irmão mais velho. Protege-o em demasia, mas por vezes ultrapassa todos os limites.
Não sei se será como um irmão que ela o vê, penso.
— De qualquer forma, não entendo porque é que ela fez o que fez. Mas também não tem importância. Estou bem. Não lhe guardo rancor.
— Acho que, no fundo, tem boa índole. Mas agora arrisca-se a ser destituída. Há testemunhas que dizem que ela queria acertar-te, e estão a ponderar afastá-la da Fraternidade dos Protetores. Isso vai ser um verdadeiro sofrimento para ela, visto que trabalhou sempre com esse objetivo.
Não conheço a rapariga. E se ela tentou mesmo matar-me, merece o castigo. Mas que motivos teria ela para o fazer? Com certeza foi um erro. E após o que Mira me relatou, espero que ela não seja considerada culpada.
— Acho que tens razão. Também não acredito que tenha sido propositado — concordo. — E espero que não a afastem da Fraternidade.
— Mudando de assunto. Posso, hum… fazer-te uma pergunta? — Mira retira a mão do meio das minhas, pousa-a nos seus pés e olha para eles.
— Sim, claro. — Reparo que está envergonhada com o que quer que tenha para me dizer, mas tento encorajá-la a ir em frente. — Diz-me: o que se passa?
— Naquele dia… — Ela gagueja. E eu assinto com a cabeça para incentivá-la a continuar. — No dia em que te vi em frente ao Colégio Central com o Beau e a Sofia, foste aos Campos de Cultivo. — A sua afirmação soa como uma pergunta. Ela continua a não me encarar. Pensei que ela não me tinha visto…
— Sim, fui — respondo sem cerimónias. — O Beau estava a ir para lá e perguntou se eu queria acompanhá-lo.
— A Sofia também foi?
— Não. Fomos só os dois. Porquê?
Será que ela gosta de Beau e pensa que eu tenho esse tipo de interesse nele?
— Por nada… Tu gostas dele, não gostas? — Sorri ao olhar-me nos olhos.
— O quê? — Já devia estar à espera desta. Ela gosta dele, obviamente, e pensa que sou sua rival ou coisa do género, mas não sou. Ela é tão linda e inteligente. E, de facto, gosto do Beau, mas não assim, como ela imagina. — Se gosto dele? Sim, Mira. Gosto. Mas apenas como amigo — explico. — Da mesma forma que gosto de ti, da Petra, da Isla, da Sofia… E até do Gensay — brinco.
O rosto dela suaviza-se, mas, ao mesmo tempo, os olhos parecem desanimados. Não lhe quero perguntar diretamente se ela gosta dele como mais do que um amigo, não a quero envergonhar. Mas é evidente que sim.
— Okay — responde. Um sorriso aflora os seus lábios bem desenhados. — Bem, tenho de ir. Vou deixar-te arranjares-te. — Escorrega da cama e levanta-se.
Eu pulo ao mesmo tempo e despeço-me dela com um abraço.
Tomo um duche rápido. Passo a lâmina novamente pelas pernas, axilas e virilhas. Seco-me e vou para a frente do espelho-fonte. Espalho pelo corpo o hidratante que Raina me colocou na casa de banho; tem um aroma a flor de laranjeira e rosas. Aplico-o também no rosto, porque gosto muito do toque aveludado que dá à minha pele. Apesar de não sair de casa há alguns dias, não estou assim com tão mau aspeto, fez-me bem descansar. Mas estou ainda mais pálida, passaria bem por uma nativa de Aquorea. Penso em colocar uma maquilhagem leve, visto Raina ter abastecido o meu armário com vários produtos, mas, como elas disseram que é na água, opto por não pôr nada para além de mais uma camada de creme. Mmm… É mesmo bom. Visto os calções verdes que usei há uns dias. São muito confortáveis e frescos, apesar de um pouco curtos. Ponho um top — da mesma cor — que só me tapa o peito e, por cima, uma T-shirt preta com um decote bastante largo, de pontas esfiapadas que mal me chega ao umbigo. Sinto-me confortável. Calço as minhas All Star e saio.
Quando chego à entrada do GarEden, já estão todos à minha espera.
— Desculpem o atraso — justifico-me, acelerando o passo.
— Boas, Ara — ouço do grupo que me aguarda.
Sorrio-lhes de volta. A moda pegou mesmo.
— Não faz mal — tranquiliza-me Beau com um sorriso.
— E a Mira? — pergunto, ao dar pela sua falta no grupo.
— Foi chamada à última hora para uma análise ao ADN celular de uma nova planta híbrida que clonaram — explica Isla, com um longo suspiro, visivelmente afetada pela ausência da amiga. Eu também fico triste. — Como estás? A situação da Umi já passou? — A pergunta dela é sincera; parece-me apreensiva. Ela pensa mesmo que eu estou assim por causa da Umi. E não deixa de ter um pouco de razão.
— Estou bem. — Não quero que saibam que o meu estômago se embrulha de cada vez que recordo os meus pais, nem das situações embaraçosas com Kai.
— Mas não te preocupes, a Umi já foi repreendida. Durante uma trezena, terá de limpar as instalações dos Protetores sozinha. E, enquanto isso, estou a tratar de expulsá-la da Fraternidade dos Protetores — esclarece Sofia, com um sorriso travesso.
Recordo que Beau me disse que Sofia é Mediadora há um ano e gosta de exibir poder. Nesta situação, fá-lo impondo a ordem e a lei.
— O meu irmão tratará do assunto. Certamente não será preciso nada tão drástico — remata Isla, olhando de lado para Sofia. Reparo que existe um faiscar naquele olhar, uma antipatia entre elas.
— Sim, foi sem querer, ela não me queria acertar. Por mim, não acho necessário fazer isso — comento, recordando o que Mira me contou.
— Da Umi já espero tudo! Tem uma paixão pelo Kai há anos e marca território.
— Mas também não acredito que fosse tão longe — retorque Isla. — Até porque não tem nada contra a Ara, que acabou de chegar. — Dito isto, olha de soslaio para Sofia, que tem os braços cruzados à frente do peito, à espera de retaliar.
Então, o motivo da discórdia entre elas é Kai, claro. Mas eu nem sequer estava perto dele… Bem, a rapariga é paranoica, já percebi. Nota mental: manter-me afastada de Kai. Ainda bem que ele não está aqui. Parece que me sai um peso de duzentas toneladas do peito.
— De qualquer das formas, está a ser averiguado. E, se calhar, também te será pedido que dês a tua versão dos acontecimentos. Terás de testemunhar, mas serás avisada com antecedência, se for o caso. Podes ter a certeza de que não voltará a acontecer, Ara. Fica descansada. — Sofia pisca-me o olho.
Ser ouvida? Eu? Estava de costas, não vi nada. E, sinceramente, custa-me mesmo crer que ela tenha feito de propósito, não tem motivos. Se me perguntarem, direi isso mesmo. O que me incomoda mais é achar que estou louca, pois sei que ouvi Kai avisar-me. Não entendo por que razão ele o negou. Preciso de ter a certeza de que os que estavam ao meu lado também o ouviram, e aproveito esta oportunidade para perguntar, sem nada revelar.
— Ainda bem que o teu irmão me gritou para ter cuidado, senão o desfecho teria sido outro. — Apresso-me a dizer, antes que Isla abra a boca com algum comentário para Sofia.
— O Kai gritou? Não, penso que não. Pelo menos, eu não ouvi, mas também estava concentrada na nossa conversa.
Estou maluca! Acho melhor escutar a voz interior que me diz para pôr este assunto de parte.
— Onde vamos? — Tento distraí-los da conversa que se está a gerar.
— É surpresa — responde Petra, num tom conspiratório. Olha para o grupo e começa a saltitar. Tem uma mão cheia de kerrysis, as cerejas de aspeto gelatinoso, e vai comendo descontraidamente.
— Essa roupa fica-te bem — elogia Sofia.
— Obrigada. Vocês estão lindas. Todas vocês. Tenho optado por roupa mais fresca e, como me disseram que ia ser um jantar molhado, achei melhor vestir isto — digo. Observo as raparigas, todas com calções curtíssimos e tops ainda mais curtos do que o meu. Apesar de achar que acertei na roupa, estranhamente, sinto-me demasiado vestida.
— Só te falta isto — diz Beau, estendendo-me a flor castanha e amarela que eu tive vontade de colher desde que cheguei. Ele olha-me com um sorriso, mas a torcer o nariz. — Eu não gosto, mas reparei que costumas demorar-te a olhar para elas.
Agradeço-lhe com um aceno de cabeça, prendendo-a debaixo do relógio. Sinto-me embaraçada e com receio de que eles — tal como Mira — pensem que eu tenho algum tipo de interesse no Beau para além da amizade. Mas ninguém parece importar-se, porque já estão todos a caminhar em amena cavaqueira.
— É linda. Como se chama? — indago, focando-me na flor que Beau me deu.
— São mhalgi-myrth. Ou trovescos, o seu nome corrente.
— Tenho vontade de colher uma desde a primeira vez que as vi.
Ele olha-me com um sorriso encantador.
— Ainda trazes isso calçado? — diz Gensay em tom desaprovador, quando atrasa o passo e se junta a nós.
Encolho os ombros.
— Porque andam descalços, afinal?
— Ainda ninguém te explicou? — Petra, sempre de orelhas aguçadas, olha para trás e parece chocada por eu ainda não saber algo tão importante.
— Não, ainda não.
— Bem, então vou deixar essa explicação para a Mira. Certamente, ela vai adorar explicar-te o motivo. Em termos científicos, óbvio. — A voz sai-lhe com uma faísca de divertimento.
— Mas hoje vais ter de te descalçar — frisa Gensay, entediado.
Avançamos em direção a norte, mas desta vez não seguimos junto ao rio, como quando fui com Beau, mas sim por ruas interiores. Passamos por ruelas sinuosas e inúmeras pontes: umas largas, outras com pouco mais de dois metros. Lembro-me das fotografias que vi da lua de mel dos pais de Colt. Fizeram uma viagem pela Europa e conheceram Veneza.
Durante o dia, Aquorea tem muita luz e todas as flores desabrocham. O colorido das plantas e das árvores contrasta com o branco das casas e a cor clara do pavimento das ruas, como numa tela. Mas, ao fim do dia, quando todos terminam o seu trabalho, tarefas ou estudos, ganha um brilho semelhante a uma noite muito estrelada, em tons de laranja e amarelo.
Na orla da floresta, paramos junto a uns elevadores de cadeiras, parecidos com os das estâncias de esqui, e sentamo-nos dois a dois. Sento-me ao lado de Petra e percebo — pela sua expressão — que Isla não está nada contente por se sentar com Sofia. Assim que nos instalamos, uma barra de segurança desce até às nossas pernas.
— Queres? — Petra abre a palma da mão e oferece-me fruta.
— Não tenho grande apetite. Quero guardar-me para o jantar.
— Come. — Ela pega numa e enfia-ma na boca. — Pelo sim, pelo não…
É docinho e tem a consistência da gelatina firme. É muito bom, parecem gomas.
Com a sua boa disposição contagiante, começa a cantar alto e bom som.
— Are you ready to fly-yyyy-yyy-yyyyy? Together we’ll reach for the sky-yyy-yyy-yyyy.
— Rozalla! — Olho-a com surpresa, ao ver o seu formoso sorriso branco contagiado de alegria. A minha mãe costumava ouvir isto num velho gira-discos que os seus pais lhe deixaram. — Como é que conheces?
— Conhecemos muito do mundo no exterior, das vossas tradições e cultura. A minha música preferida é a pop! Quem vem de «fora» traz sempre algo para partilhar. Mas quero saber mais, muito mais! E tu tornaste-te na minha fonte oficial de informações — revela, sorridente.
— Está bem…
— Gosto das estranhas letras das vossas canções! — exclama, com um encolher de ombros. — Principalmente, aquelas que falam de amor — troça, metendo o dedo indicador na boca aberta a imitar o vómito.
Sorrio-lhe, e ela devolve-me o sorriso com uma breve piscadela de olho. O seu rosto é imponente, uma oval bem delineada e simétrica, e os olhos verdes muito brilhantes. Aquela máscara de durona que ela quer ter sempre vestida cai-lhe de cada vez que sorri.
Subimos em direção à floresta, em grande velocidade. A adrenalina explode no meu sangue. A altitude é cada vez maior. Ao olhar para baixo, nesta parte do caminho, reparo que já não passamos por casas há algum tempo. Viajamos por entre as árvores altíssimas da floresta, que até agora só tinha observado ao longe. Onde me levarão? Sinto-me segura com eles, mas uma sensação de desconforto permanece algures no meu corpo e não me deixa relaxar. Apesar de já quase não haver luz, esta continua visível em pontos estratégicos, onde os Protetores de guarda com quem nos cruzamos nos cumprimentam com um «hey» entoado, quase cantado. Numa dessas vezes, reúno-me ao coro e saúdo-os também. O veículo continua, veloz, e eu desfruto do vento no rosto com um sorriso que me chega ao coração.
Como não me dizem para onde vamos, aproveito para perguntar a Petra o que se passou na outra tarde, depois de Kai os chamar.
— Porque abandonaram o treino tão repentinamente no outro dia?… — pergunto.
— Fomos informados de que estava a decorrer um ataque perto de Salt Lake — responde, de testa franzida, como se estivesse a revelar um segredo.
Salt Lake? Mas isso é onde vivem os meus avós.
— Ataque?
— Sim. Mas era somente um simulacro. Para testarem se somos rápidos a intervir.
— Que bom! Julguei que alguém se tinha magoado. E a simulação foi um ataque dos Albas?
— Ninguém se magoou — assegura. — Sim, os Albas.
— Qual o motivo dos ataques?
— Eles vêm à procura de alimento, mas têm-se tornado bastante agressivos.
— E não há forma de os impedir de entrar?
— Eles vêm dos pântanos a sul de Salt Lake e conhecem bem a zona. Nós mantemos os postos de vigia e mudamos diariamente as rotas de patrulhamento, mas eles são rápidos e fortes.
— Julguei que Aquorea terminasse em Salt Lake! Não se vê nenhuma estrada para lá da lagoa de sal.
— Nós vivemos numa gruta, Ara — diz, a sorrir. — Se olhares para cima e reparares bem, há trajetos e túneis nas rochas, que até a maioria dos habitantes desconhece.
— Estamos a chegar! — brada Beau.
— Por quanto tempo consegues suster a respiração, Ara? — acrescenta Sofia, num tom de voz trocista e animado, enquanto salta da cadeira.
Vim de tal forma absorta na conversa, que não reparei que subimos acima do topo das árvores. A vista aqui é de cortar a respiração. As pontas das árvores em bico compõem padrões ordenados e graciosos, a perder de vista, como o merengue de uma tarte de limão. Em baixo, à distância, as luzes dos candeeiros cor de fogo de Aquorea cintilam, como pequenos pontos dourados incandescentes, e as pontes brilham como se tivessem luz própria. O céu de cristal, agora mais escuro, torna a cor do Riwus num violeta profundo onde se derramam os barcos prateados. A cidade é gigante e pulsa vida, com todas as lojas, cafés e restaurantes abertos e repletos de gente. E, ao fundo, Salt Lake. Volto a achar que esta podia ser uma cidade de qualquer parte do mundo na Superfície… se eu não soubesse estar a milhares de metros abaixo da dita.
— Aqui é a nascente do rio — observa Petra — e nós temos de saltar para ali — graceja, apontando para o rio em baixo com o longo indicador.
Estamos em cima de uma rocha proeminente, suspensa sobre uma cascata. A queda-d’água é larga e descreve um U ao longo da montanha. Relembro a cascata da Garganta do Diabo, em Foz de Iguaçu, e a minha boca seca. As águas precipitam-se violentamente para dentro de uma lagoa colossal, com reflexos verde-claros, que dá início ao longo curso do Riwus.
— O quê? Estão a brincar. Quantos metros é que isto tem? — pergunto, assustada.
— Uns quarenta, mais coisa, menos coisa — funga Gensay.
— Não me digas que tens medo! — brinca Sofia com um sorriso nos olhos.
«Medo» é capaz de não chegar para o descrever. «Pavor» talvez explique melhor o que estou a sentir. É uma altura enorme. Ninguém pode sobreviver a um impacto destes. Ou será que pode?
— Estou um pouco nervosa — digo, para aligeirar.
— Não estejas, é seguro. Tu já me disseste que nadas bem — frisa Isla para me tranquilizar.
— Sim, mas nunca fiz nada deste género.
— Faz como eu. Não penses muito e atira-te — recomenda Beau. Dito isto, dá três passos largos e rápidos e salta.
Corro rapidamente para a frente para ver o mergulho, mas quando me inclino, já ele desapareceu. Deito-me no chão fresco e vejo a mancha de espuma causada pelo impacto do seu corpo. Fico petrificada e sou invadida por um misto de emoções. Um sabor a azedo enche-me a boca e a adrenalina inunda cada terminal nervoso do meu corpo. Quero muito experimentar. Afinal, até já morri!
— O segredo é mergulhar de cabeça e nadar sempre para baixo, até ao Underneath — explica Sofia. — Encontramo-nos lá, se tiveres coragem. — Algo muda no seu rosto enquanto se atira do precipício.
— Underneath? — inquiro.
Isla deita-se ao meu lado.
— O sítio onde vamos jantar. Porque julgavas que era molhado?
— Pensei que íamos comer dentro de água, e não debaixo de água.
— Eu mergulho contigo e indico-te o caminho — diz Isla. Coloca-se em pé e puxa-me pela mão para me ajudar a levantar.
Petra sorri e diz, antes de saltar, com uma imitação exagerada de medo, para o abismo:
— Até já!
Gensay resmunga algo que eu não entendo e lança-se como um pássaro do seu ninho.
Quantas vezes terão eles feito isto? Parece fácil, comento comigo mesma. Terei de usar toda a minha coordenação motora, toda a minha agilidade, para ganhar tanto balanço quanto possível e não me esborrachar contra a parede de pedra. Tenho apenas uma coisa a meu favor: não há vento que me possa desviar do trajeto.
— Tens de te descalçar. Nadas mais facilmente. Deixa-as ficar, depois vimos buscá-las — assevera-me Isla.
Sigo o seu conselho e descalço-me. Um formigueiro nasce na sola dos meus pés e uma vaga de energia circula-me pelos nervos, uma ligação com a terra e com a vida. É com esta calorosa sensação de bem-estar que volto a visualizar nitidamente o rosto de Kai, como se ele estivesse diante de mim.
— Vamos?
— Sim… — Aceno afirmativamente ao apertar a T-shirt com a mão esquerda, como se este gesto aliviasse, de alguma forma, a pressão que sinto dentro do peito.
Isla corre em direção ao precipício, e eu acompanho-a, impelindo-me para a frente no final, de forma a distanciar-me o mais possível da parede de rocha.
— Afinal, não queremos chegar atrasadas ao aniversário do meu irmão — grita Isla, já em voo.
O quê?!!!
Estico os braços em pânico, mas sinto-me livre. O ar envolve-me. A sensação de leveza é maravilhosa. Vejo a superfície do lago aproximar-se vertiginosamente e sinto o impacto da água fresca no meu corpo. Isla continua a nadar em direção ao fundo e eu sigo-a. A luz filtra-se através da água, por isso eu consigo vê-la sem grande dificuldade. Para diante de um tubo e mete os pés lá dentro.
Faz-me sinal com a mão para que a siga, deixando-se depois deslizar para o interior. Fico a vê-la escorregar pelo tubo até desaparecer, e faço o mesmo. A água suga-me e eu deslizo rapidamente, como nos tubos dos parques aquáticos onde ia em criança. A água começa a escassear, até quase desaparecer. Vou ainda com alguma velocidade quando alcanço o final do tubo e sinto o meu rabo embater no chão duro. Derrapo alguns metros, por estar com a roupa molhada, e, assim que o meu corpo para, deixo-me ficar imóvel no chão. De barriga para o ar, pernas e braços abertos, desfruto da calma depois da descarga de adrenalina. Apalpo o chão, e é macio. Felizmente!
Depois, ponho-me à escuta: há música em meu redor; pessoas a rir e a falar alto. Abro os olhos e sibilo, mortificada.
— Kai!
Ele está de pé, inclinado sobre mim, com uma expressão estranha e séria, a analisar-me, como se eu fosse de outro planeta. As feições são suaves e o sobrolho franzido, mas os olhos estão tão claros, de um azul-bebé, e brilham mesmo com a escassa luz.
— Vieste mesmo… Adorável.
— O quê? — pergunto, sem ter a certeza de ter percebido bem.
— Não disse nada. — Ele encolhe os ombros.
Levanto-me como se tivesse molas no rabo. E, ainda um pouco aturdida, fito-o com um ar avaliador, para perceber se ele disse mesmo aquilo ou se foi, mais uma vez, imaginação minha. Estamos a pouco mais de um metro de distância, como que hipnotizados, eu a tentar perceber o que ele está a pensar.
Olho atentamente em meu redor e verifico que o espaço é surpreendentemente belo. É uma gruta, e o teto é uma cúpula de cristal translúcido. No exterior, silhuetas de golfinhos e pequenos peixes ensaiam um ágil bailado na água clara. O chão é liso, muito brilhante e preto.
A iluminação é toda feita por velas. As chamas refletem-se no chão negro e tornam o espaço fascinante e acolhedor. A decoração consiste unicamente em alguns pufes e mesas espalhadas com aperitivos. Um balcão branco comprido, parecendo-me feito em madrepérola, onde são servidas bebidas coloridas. No teto, alinhados ao comprimento do bar, três grandes candelabros de velas. Atrás do balcão está uma parede, também branca, onde estão organizadas garrafas, frascos, copos e fruta de todas as cores e formatos.
A um canto do bar, um grupo entoa uma melodia simplesmente fabulosa. Tocam com uns tambores finos, que parecem acompanhar as batidas do meu coração. Um género de beatbox tribal surreal. Todos se divertem e dançam. Reparo, também, que há alguns casais aos beijos e amassos nas zonas mais escuras do salão.
Muitos deles estão secos. O que me leva a ter de escolher uma das três opções: 1) já estão cá há muito mais tempo e tiveram tempo de se secar; 2) atrás daquela parede branca existe algum stock de roupas secas e, se for este o caso, também quero algumas; 3) existe uma outra entrada que não inclui saltar de um precipício para o abismo, mas os meus ditos amigos quiseram ver se eu me acobardava ou morria. Tem de ser a terceira opção, certo? Senão, como saímos daqui?
— Grande entrada, miúda — diz Boris, arrancando-me aos meus pensamentos. Tem os olhos ligeiramente vidrados e o hálito a cheirar a álcool. Na mão traz dois pequenos copos com um líquido transparente. Dá-me um para a mão, pisca o olho a Kai e brinda com o copo dele no meu. — Bota abaixo!
Inspeciono, mas confio nele, por isso bebo de um trago. Não sabe a absolutamente nada. É água.
— Eu sabia que eras de confiança! — diz ele com um largo sorriso. De braços abertos, agarra-me em peso pela cintura, levantando-me no ar e pousando-me logo a seguir.
Kai ainda olha para mim, mas encara por instantes Boris com um olhar tão ameaçador que este se desvia de mim como se eu cheirasse mal. Acho este comportamento tão estranho. Será que Kai não gosta de que eles convivam comigo?
— Então, ’miguinha, o chão precisava de um abraço? — brinca Petra. Na mão tem um copo meio cheio com uma bebida verde-clara. Ela beberica descontraidamente enquanto, com a outra mão, torce a água das pontas dos calções.
— Estou bem — respondo, sem me rir, e uma nuvem de fumo saí da minha boca. Inspiro e expiro, o fumo continua a sair denso e branco como de uma chaminé.
À minha volta todos se riem. Eu começo a rir também e, quanto mais me rio, mais fumo sai.
— Pareces uma dragona! — diz Boris, entre gargalhadas fortes e roncos altos.
Deve querer dizer um dragão fêmea.
— Filho da mãe! — Bato-lhe no braço, rio-me e lá sai mais uma baforada de fumo.
— Tinha de ser, é praxe! — Pisca-me o olho e eu sopro-lhe para cima. — Isso passa já.
— Dói-te o rabo, Ara? — pergunta Isla, em tom de brincadeira, com um sorriso que lhe chega aos dentes do siso. Depois, dirige-se a Kai. — Maninho! Parabéns! Vinte! Estás a ficar velhote — grita, emocionada, e atira-se para ele.
— Obrigado, pequena. — Envolve-a num abraço, e a minúscula irmã praticamente desaparece nos seus braços. O sorriso dele é tão sincero, tão meigo, que me custa crer que seja a mesma criatura que me azucrina desde o dia em que cá cheguei. Com isto quase me derreto por completo.
Ela larga-o, e Boris dá-lhe um abraço apertado, com pancadas fortes nas costas, às quais Kai retribui.
Sofia junta-se a nós poucos segundos depois.
— Também quero — anuncia, com os seus lábios grossos e bem desenhados. — Parabéeens — canta, com um olhar lânguido e a voz melosa, quando lhe passa os braços pela cintura e o aperta contra as mamas.
Ele passa a mão pelas rastas, devolvendo-lhe o abraço apenas com um braço. Sofia deposita-lhe um beijo sonoro e demorado no rosto. Ele sorri-lhe, depois afasta-a, mas deixa o braço à volta da sua cintura. A roupa dele está seca, mas ele parece não se importar com o facto de ela estar a molhá-lo. Pudera!
Então é verdade, o aniversário do Kai! Para o qual nenhum dos meus amigos me disse que estava a ser arrastada. Para o qual não fui convidada e entrei de penetra. No qual a minha presença contraria totalmente a vontade do aniversariante. E para o qual não trouxe prenda.
Será que têm por hábito dar presentes? O que vou fazer?