9

Não tão seguro assim

Isla senta-se entre Mira e Petra.

— Ficas aqui, Ara? — Wull indica o lugar vazio ao lado de Beau e em frente a Petra. — Eu vou para ali. — Aponta para o espaço desocupado entre Sofia e Umi. Pisca-me o olho e afasta-se.

Mira observa-nos atentamente. É mais do que evidente que tem um fraquinho por Beau. Não tive oportunidade de lhe contar acerca do beijo. Espero conseguir contar-lhe esta noite. E, acima de tudo, espero que ela me perdoe.

— Olá, Ara — diz Beau. Os seus olhos cintilam, alegres.

— ’Tá-se?

— «’Tá-se»? É mais um dos teus cumprimentos peculiares? Gostas de comer palavras — afirma Gensay, indignado.

— Boas. Gostas mais assim? — questiono, sarcasticamente, em tom de brincadeira, mas ele ignora.

— Ara, Ara. O que tenho na mão? — grita Boris por cima de Beau com o punho fechado a agitar no ar. Tem a boca cheia e dirige-me um grande sorriso, o que faz com que um bocado de comida lhe salte da boca sem querer. Aceno-lhe e não posso deixar de rir perante este cenário.

— Ai, Boris. Agora não — sopro com um sorriso.

Ao seu lado está Kai. Assim que os nossos olhares se cruzam, os maxilares dele cerram.

— Diz, diz! — insiste Boris.

— Hum… Nada? — Tento adivinhar.

— Perto — responde ele, entusiasmado, com o punho a abanar com força no ar. Pousou os talheres, portanto, é mesmo importante para ele a brincadeira, pelo que decido alinhar.

— Pão!

— Perto. Continua! — incentiva ele.

Pouso o cotovelo na mesa e o queixo na mão. Simulo pensar seriamente no assunto.

— Pele — tenta Sofia, e esboça-me o mais caloroso e cúmplice dos sorrisos.

— Uma harpa! — diz Umi, e eu sorrio porque acho a sua resposta tão caricata. Será que ela sabe o que é uma harpa?

— Uma aranha.

— O juízo que te falta.

Dizem, respetivamente, Isla e Kai em simultâneo — Isla empolgada por entrar no jogo, e Kai em tom juvenil.

— Perto. — Boris, de olhos arregalados, mostra o punho a cada um dos amigos.

— Perto — digo, por fim. E o rosto de Boris é um misto de desilusão com felicidade.

Abre a mão e mostra a todos. Escreveu na palma da mão «perto». Kai ri-se e dá-lhe um cachaço, Isla barafusta que não é justo e Umi chama-lhe «pateta brincalhão».

Sorrio à Umi, inconscientemente, porque nunca tinha visto este seu lado simpático e descontraído. Quando os nossos olhos se encontram, ela franze-me as sobrancelhas.

— Divertiste-te na saída ao Underneath? — pergunta Mira, desviando a atenção que eu estava a dedicar a Umi.

— Sim, tanto quanto me lembro — respondo, rezando para que não lhe tenham chegado rumores aos ouvidos.

— Pois. O jellyfish deixou-te bastante alegre. Dançaste que te fartaste — confirma Beau com uma cotovelada bem-humorada.

Jellyfish? — indago.

— Aquela bebida docinha que não paravas de beber — troça Sofia, do outro lado da mesa.

— Sim, tu és divertida! Do que mais gostei foi de ti a fazeres de dragona! — Boris solta uma gargalhada grave e abana a cabeça, enquanto com o pulso limpa uma lágrima do olho.

Semicerro os olhos e ele para de rir.

— Costumas dançar, Ara? — pergunta Isla.

— Sim, desde criança. Dançava até me doerem os pés. — A recordação faz-me sorrir e olho para Kai num agradecimento silencioso. — Quem me calçou?

Olho para Beau, que faz que não com a cabeça.

— Não sei. Eu não fui — diz Isla. — Foste tu, Petra? — pergunta, olhando para o lado, para uma Petra completamente absorta em pensamentos.

— Hã? Eu não. Nem me lembrei daquelas coisas dos pés. — Enxota com a mão no ar o pensamento e atira o cabelo comprido para trás do ombro. A conversa é tão surreal que dá vontade de rir.

Olho em redor para ver se algum deles me diz quem me calçou e levou a casa. Será que foi o Kai, novamente?

— Quase tive de te levar ao colo. Felizmente, pesas menos que um dhihilo — resmunga Gensay.

O que raio será um dhihilo?

— Foste tu que a levaste a casa? — Petra está tão surpreendida quanto os restantes. — Afinal, debaixo dessa carapaça dura, até és simpático — graceja.

— Obrigada — digo-lhe, com um aceno de cabeça e um sorriso sincero.

Quase posso jurar que lhe vejo um dente. Ele limita-se a encolher os ombros como se não percebesse o porquê do espanto coletivo.

— Podes aproveitar agora para explicar à Ara as maravilhosas vantagens de andarmos descalços, Mira — incita Beau.

— Ui, então temos palestra para a noite toda — intervém Boris, visivelmente desinteressado.

— Nem todos pensamos apenas em comer, Boris! Se continuas às voltas com essa posta de peixe, terás de a pedir em casamento! — exclama Mira, irritada. Petra engasga-se e tosse com a mão à frente da boca.

— Eu quero saber. Explica lá — insisto.

— Vou dar-te a explicação resumida. — Mira revira os olhos, resignada. — Quando andamos descalços, ficamos em contacto com a energia elétrica natural da Terra, e isso equilibra-nos o organismo, pois descarregamos o excesso de eletricidade estática do corpo. Além disso, o solo fornece-nos energia e fortalece o nosso sistema imunológico.

— A sério? Isso é mesmo muito interessante.

— Então, vais experimentar? — pergunta Sofia, subitamente interessada.

— Vou pensar. Lá em cima, na Superfície, é impensável andarmos descalços no nosso dia a dia, a não ser na praia ou em parques e jardins; e, mesmo assim, com cautela. Para além de quase todas as estradas serem asfaltadas, há poluição e sujidade nas ruas, o que nos faria chegar a casa com uma doença diferente todos os dias.

— Deve ser muito triste viver num sítio assim — comenta Isla de ar tristonho, enquanto me passa uma pequena travessa com uma espécie de farofa.

— Nem tudo é mau — respondo, com uma pontada de nostalgia no coração. — O que é? — pergunto com a travessa na mão.

— É vajico. É muito bom para acompanhar o peixe. É uma farinha feita à base de alguns dos nossos frutos de casca rija. Frutos secos, do género do vosso amendoim.

— Ainda bem que me avisas, porque sou alérgica a quase todos os frutos secos.

— Estes são plantados por nós, Curadores, nas estufas, e não nos campos de cultivo. Têm características e proteínas diferentes dos vossos à Superfície. Experimenta — diz Mira.

— Obrigada, mas é melhor não arriscar. Quero evitar as experiências de quase morte por uns tempos — brinco.

Boris, que já está bem composto, abranda o ritmo e começa a tagarelar e a contar histórias acerca das aventuras do seu grupo de amigos. Tem sempre algo a acrescentar ao que os outros contam, com aquele ar expressivo de bobo da corte.

— Se estamos debaixo de rocha e água, como é que estou a ver o mar? — pergunto, de forma a manter a cabeça ocupada.

— Estás a olhar para o Abismo — diz Gensay, apaticamente.

Mas será possível esta criatura nunca sorrir?

— Literalmente — acrescenta Beau, sorridente.

— E como é que eles conseguem respirar debaixo de água. — Faço um gesto com a cabeça na direção de Kai e de Wull.

— Oh, o Wull é um fracote — graceja Boris, bem alto e divertido, para que o amigo o possa ouvir. — Um fracote — repete.

Wull, que conversa com Sofia, desvia a sua atenção por um segundo e atira-lhe com um pedaço de pão. Boris apanha-o com a boca, como se aquele movimento fosse ensaiado.

Onde raios é que ele mete tanta comida?

— E o outro é o meu pai, Ghaelle Shore — constata Isla, orgulhosa, a olhar para o irmão. Ele olha para a irmã no mesmo instante em que ouve o nome do pai. Sorri-lhe e vira-se de novo para a esquerda, continuando a conversa com Suna, o namorado de Wull. Pelas suas expressões, a conversa parece boa.

Ah… o pai.

— Não é nada de extraordinário — diz Gensay. Ele tem cabelo castanho-claro, curto e espetado, mas com um aspeto muito macio, tipo espanador do pó. O seu olhar apático, mas ao mesmo tempo desconfiado e cauteloso, lembra-me um urso pardo.

— Como conseguem? — Desta vez viro-me diretamente para Petra. Não quero ser intrometida, ainda para mais com ele aqui tão perto e atento à nossa conversa, mas a minha curiosidade é mais forte. Tenho de saber.

— Já nascem com esse gene — responde Petra. — Mas precisam também de praticar para aumentar a resistência pulmonar.

— Aaah…

Impressionante. Para além de habitar num mundo até então desconhecido para mim, este deus grego consegue também respirar debaixo de água. Sinto-me ridícula ao pensar nos meus quase três minutos de apneia.

— É verdade, não te esqueças de que daqui a dois intervalos de tempo começas os treinos comigo e com o Boris. Acabou-se o descanso — diz Petra. — O chefinho — refere-se a Kai — disse que, se ficarmos responsáveis por ti, podes ir. — Fala tão baixinho, que tenho dificuldade em ouvir.

Okay. Depois de amanhã, certo? — Uso o mesmo tom de sussurro.

— Sim, amanhã é dia de descanso.

— Para que vais treinar? — Uma voz feminina chama a minha atenção. Umi, claro! Tem os cotovelos em cima da mesa e o queixo pousado nas mãos entrelaçadas. Ignoro-a simplesmente e desvio o olhar do seu. Decido não responder à provocação. — És tão ridícula! — Ela continua com o que percebo ser um riso contido na garganta.

— Ei, Umi… Se fosse a ti, não a provocava. — Sofia pousa os talheres, roda o corpo e inclina-se para a frente, para se desviar de Wull e poder ver Umi. Não sei bem o que pensar. Não preciso da ajuda de Sofia para me defender das bocas foleiras de Umi, mas de qualquer das formas é bom saber que tenho alguém disponível para dar uma ajudinha.

— Sim?! E porquê? Sentes saudades de ter a minha atenção toda para ti, é?

— Nem por isso, não. Viveria perfeitamente bem sem te ouvir. É só que aqui o namorado da Ara não vai deixar que a chateiem. — Sofia está orgulhosa por me defender e simultaneamente meter a Umi no lugar dela.

A conversa, de uma ponta à outra da mesa, congela. Os olhares convergem todos na minha direção. O de Kai, inclusive, que me fita interrogativo. Vejo-o, de relance, quando me atrevo a espiá-lo; mãos em cima da mesa ao lado do prato e punhos cerrados.

Oh, porra!

Fico boquiaberta e sem pinga de sangue. Não é assim que eu quero que Mira saiba que eu e Beau nos beijámos. Corrijo: nem ela, nem ninguém. Foi um erro. Estava bêbada, vulnerável, uma série de fatores contribuíram para aquele episódio, e agora aqui estou eu, na berlinda. Beau é meigo, de uma forma séria. Qualquer rapariga será uma sortuda por estar com ele. Mira, por exemplo, é um doce e fariam um belíssimo par.

— Namorado? — Isla desenha um «O» dramático com a boca e está surpreendida, mas mesmo assim tem um sorriso resplandecente no rosto.

— Não perdes tempo! — A voz de Umi é sarcástica. Contrasta com a sua figura angelical. Tem o rosto longo; cabelo loiro pelos ombros, esticado e atrás das orelhas, o que salienta as maçãs do rosto.

— Sim, aqui o nosso Beau! — Sofia aponta na direção dele e eu desato num ataque de tosse sem precedentes, enquanto faço que não com a cabeça e abano o dedo esquerdo no ar. Ele passa-me o copo de água e bate-me ao de leve nas costas, que convenientemente nos dá um ar ainda mais íntimo. Lá se vai a minha oportunidade de explicar que não é nada disso.

— N… Não — digo, entre tossidelas secas e repetidas. A minha única preocupação neste momento é Mira, e é nela que foco a minha atenção. Ela olha-nos com ar de espanto, assim como os restantes, mas sem fúria. Lágrimas e ranho acumulam-se devido à força que faço ainda a debater-me com o meu ataque de tosse. Olho Beau para ver se ele percebe que tem de negar, mas ele apenas sorri carinhosa e orgulhosamente. Kai bate com os punhos fortes em cima da mesa de madeira. Talheres, pratos e travessas abanam com este pequeno sismo de irritação.

— Parem com isso. — A voz é grave e autoritária.

Levanta-se e, num segundo, as suas mãos seguram-me pelos cotovelos. Tira-me do banco, põe-me de pé e dá-me duas pancadas secas entre as omoplatas. Vira-me de frente para si e passa-me um guardanapo para que me assoe. Pousa-me as mãos nos ombros e começa a soprar para o meu rosto. Estou inerte; corpo e mente em shutdown. O aroma dele é a mar, cardamomo e canela. Estremeço quando percebo que já não tusso e que estou de olhos fechados a sorver o hálito dele. Podia estar a fazer figura mais ridícula? Abro os olhos e encontro um Kai descortês.

Ele larga-me os ombros, mas não se afasta.

— Não sei onde foste buscar essa ideia, Sofia. Acho que nem o Beau sabia que eram namorados! — Ainda bem que Petra é esperta. Dá uma gargalhada como se Sofia tivesse dito a coisa mais parva nas profundezas da Terra.

— Bem, vou dar um giro. — Ouço Sofia dizer em tom jovial. Que sorte ela tem em poder sair daqui.

Beau levanta-se e pigarreia ao meu lado.

— Não tens já problemas que cheguem? — A voz de Kai é extremamente baixa, para que somente eu o escute. E, novamente, ele consegue entristecer um pouco mais o meu coração. Não sei como o faz nem porque eu o permito. Os meus pais educaram-me para ser melhor do que isto e fazer frente a estas situações. — E tu, devias tomar melhor conta da tua namorada. — A voz carregada de azedume faz com que o corpo de Beau fique tenso e me desperte do meu conflito interno.

— Não somos namorados — grito, demasiado alto, sem controlar a voz rouca. Soa mais como uma justificação do que uma afirmação. Ainda estou de costas para os restantes membros da mesa.

Kai encolhe os ombros, faz um esgar, como se desse uma curtíssima risada irónica sem som, e afasta-se. Viro-me para a mesa: sinto uma enorme necessidade de me explicar. Não quero que nem Beau nem ninguém pense que temos algum envolvimento romântico.

— Não somos namorados — repito com um sorriso despreocupado. — Demos um beijo, nada mais.

Soo apologética e desinteressada, porque a minha atenção está centrada em Kai. Ainda bem que ele não me ouviu falar do beijo. Sem me importar em dar mais justificações, viro-lhes as costas a tempo de ver Kai passar por uma porta alta no canto direito do salão. Acelero o passo e tenho de me esforçar para deslizar pelo salão sem bater com o rabo no chão. O piso é tão macio que cada passo é uma escorregadela.

— Ara — chama Petra, mas eu ignoro-a.

Estou furiosa. Raivosa. Sigo-o, empurro a porta de madeira com força e quase tenho um ataque cardíaco quando me deparo com uma enorme e bem iluminada casa de banho masculina. Bem no centro estão duas filas de urinóis, de costas uns para os outros. Kai está de pé a fazer o seu chichi e levanta os olhos quando vê movimento. O seu rosto, com uma expressão neutra, mostra-o indiferente à minha presença. Dou graças a todos os santos por os urinóis da fila da frente taparem tudo.

— Entra. Este aqui ao lado está vazio. — A voz de Kai é amena, como se me esperasse para partilhar o momento com ele.

Arregalo os olhos e levo a mão à boca para reprimir o riso e o choque. Não sei como, mas desde que cá cheguei que me encontro sempre em situações caricatas ou problemáticas. E Kai está sempre lá, para me arreliar ou para me ajudar. A maior parte, para me infernizar. Mas está lá. Sempre.

— Não somos namorados.

— Claro que não. Garanto-te que saberias se fôssemos. — Um sorriso espirituoso aparece-lhe no canto dos lábios.

Tira-me do sério, este homem.

— Eu e o Beau… — resmungo. — Eu e o Beau não somos namorados. Só para que fique esclarecido.

— Não precisas de o fazer. Até te percebo. Ele é tão queriiido, leva-te a passear pelos campos e tudo. E tu, só por acaso, gostas de o beijar quando bebes demasiado.

Merda! Ele viu.

— Como se tivesses alguma coisa a ver com quem eu beijo ou deixo de beijar. Mas se tens mesmo de saber, foi um erro. Já está esclarecido. É só para não andarem a dizer coisas que não são verdade. Não quero confusões — explico.

— Devias ter pensado nisso antes; como tudo o que fazes. Há consequências para os nossos atos, Rosialt.

Ele termina e vai até ao lavatório. Fica de costas para mim, mas vemos os nossos reflexos pelo espelho-fonte. Eu estou parada, precisamente no mesmo sítio onde estaquei quando entrei, e neste momento a porta abre-se. Um rapaz gordinho vem já a desapertar as calças, olha para nós durante dois segundos ainda a segurar na porta. Faz um ar de espanto, arqueia as sobrancelhas e volta a sair.

Observo-o. Até o simples facto de o ver lavar as mãos me incendeia. Sei que devo responder-lhe, não devo deixá-lo pensar que me venceu nesta guerra sem vitoriosos. Mas recuso-me a alimentar isto, seja o que for.

Os músculos das costas dele movem-se debaixo da T-shirt. Os braços são duros e bem torneados. Até o raio da casa de banho é airosa e elegante. Isto é realmente o paraíso. Não é de admirar que ninguém queira ir embora. Compreendo porque o meu avô se apaixonou por Raina e por este povo. Eu própria me sinto em casa, como se uma parte de mim pertencesse a este local. Uma onda de angústia e tristeza invade-me ao pensar que não me esforcei o suficiente para voltar para casa. Falei algumas vezes com o meu avô desde que cá cheguei, mas não fiz tudo o que está ao meu alcance para voltar. Tenho consciência disso e sinto-me, de súbito, imensamente culpada. Serei insensível por não me importar com a forma como eles se estarão a sentir? Estarei a traí-los por me sentir tão bem num lugar estranho?

Saio da casa de banho e avanço como um furacão por entre as mesas, com a atenção no meu avô, ignorando os amigos que me chamam e todos os que tentam meter conversa comigo nas mesas por onde passo.

— Preciso de falar contigo, avô! — exclamo, com um semblante carregado.

— Diz, querida.

— Podemos conversar a sós, por favor?

Falo baixo para que os outros não percebam o que me incomoda. Ghaelle — o pai de Kai — está sentado também nesta mesa. Arcas percebe que estou transtornada; olha-me nos olhos e anui com um sorriso afetuoso que me enche a alma.

— Claro.

Levanta-se, desculpando-se perante os restantes, e afastamo-nos um pouco.

— Avô, preciso que me digas como contactar os meus pais. De que forma lhes posso dizer que estou bem?

Ele não parece ficar surpreendido com a minha pergunta, mas não me responde, por isso prossigo.

— No dia em que vim cá parar, trazia uma mochila. Não a encontraram?

— Não. Só o que trazias vestido.

— Mas tem de haver alguma forma de comunicar com eles. Devem estar a sofrer imenso. Não posso, nem quero, deixá-los assim.

— Eu sei que é difícil. Mas eles vão ficar bem, acredita.

Como pode ele estar tão calmo numa situação destas? Não é a pessoa preocupada que eu conheço. Parece frio e calculista. Não reconheço nele o homem que ajudou a criar-me com tanto carinho e que tanto amor tem pelo filho.

Não é a resposta que espero ouvir, e penitencio-me por não ter insistido para voltar para casa desde o primeiro momento. Mas deslumbrei-me com este mundo e deixei-os para segundo plano. Que raio de filha sou eu, afinal? Durante grande parte da minha vida, senti-me diferente, e apesar de os meus pais tentarem por todos os meios fazer-me feliz, havia sempre uma parte de mim que se sentia vazia e distante, como se me faltasse algo. Algo que achava ter encontrado aqui. Mas se o preço a pagar for este — sacrificar a felicidade dos que eu amo —, terei de abdicar deste mundo, mesmo que tenha de viver a vida pela metade.

— Então, vou-me embora. Não lhes posso fazer isso — declaro, com firmeza.

— Ara, só a água te pode levar de volta. Foi ela que te trouxe e só ela te pode levar.

— Não acredito. Isso é treta! Tem de haver uma forma — insisto, cruzando os braços em frente ao peito. — Se tu foste, eu também posso ir, com certeza. Não pedi para vir — respondo com frieza.

— Eu fui embora porque tive permissão.

— Também posso ter permissão. A quem tenho de a pedir? Ao Llyr?

Olho para a mesa onde o Regente se encontra a jantar. O meu avô coloca a sua mão sobre a minha, para que eu fique no meu lugar.

— Se ao menos fosse assim tão simples. Mas não é, Ara. Vamos pensar com calma, juntos. Prometo que esclareço as tuas perguntas, mas não aqui e não agora.

— Já tiveste a tua oportunidade de me ajudar e de não me mentires, avô. Vou dar uma volta.

Estou irritada e não me apetece continuar com a conversa, porque tenho a certeza de que dentro em breve lhe direi algo de que me vou arrepender.

Volto-me, girando sobre as pontas dos pés, e, em vez de sair pelas portas, encaminho-me para uma abertura ao lado da cozinha, sem me importar com onde vai dar. Só quero sair daqui.

O corredor largo e bem iluminado que dá acesso ao salão torna-se mais estreito e acabo por chegar a um trilho acanhado, com pouca luz. Os candeeiros cor de laranja são iguais ao candeeiro de sal que o meu avô me ofereceu há anos e que eu mantinha sempre ligado no chão do meu quarto. Espero até que a minha visão se adapte à penumbra e continuo a caminhar, cautelosamente, pelos corredores escavados na rocha. Ouço o ruído de água num deles, à direita, e sigo nessa direção, num passo acelerado. Sinto o coração oprimido ao pensar no sofrimento dos meus pais. O estreito corredor tem luzes a cada meia dúzia de metros. O ruído da água torna-se mais intenso e nítido, até que alcanço o trilho com o corrimão que me separa do abismo.

Com algum receio, pouso as mãos no corrimão gelado, afastando um pouco o corpo dele. As alturas não me amedrontam, mas aproximo-me com cuidado, firmo bem as mãos e inclino o nariz para baixo, na direção da água. Cordas grossas pendem ao longo da parede vertical que desce até ao rio. Na água, barcos iguais aos que nos trouxeram para a festa. Outros mais pequenos, também prateados, com a proa pontiaguda, e ainda algumas motos de água, com apoios laterais, como os catamarãs.

À distância, ouço vozes, risos e música do jantar em minha homenagem.

Respiro fundo várias vezes. O ar é abafado mas límpido, não custa a respirar. Dou dois passos para trás e encosto as costas à parede fresca. Deixo-me escorregar até ficar sentada. Apoio a cabeça na rocha dura, fecho os olhos, e fico a ouvir o ruído da água ao fundo. Apetece-me despir esta roupa.

— Tenta não cair. Não estarei sempre por perto.

O meu corpo estremece e abro os olhos. A sua voz já me é tão familiar. Ergo a cabeça e dou de caras, de novo, com Kai, de mãos atrás das costas, a observar-me intensamente.

— Não te incomodes. — É a única coisa que me ocorre dizer-lhe neste momento.

— Encantadora, como sempre — diz, com uma amostra de sorriso.

Levanto-me tão depressa quanto possível e adoto a mesma postura defensiva. O coração parece saltitar de um lado para o outro dentro do meu peito. Agradeço por haver pouca luz, pois estou corada e não quero que ele perceba. É a minha resposta natural a este estímulo. Como o cão de Pavlov salivava quando ouvia a campainha porque associava que iria receber comida, eu fico em pânico sempre que vejo Kai. Só não entendo por que razão desejo vê-lo a todo o instante. Devo ser masoquista…

Está vestido com o uniforme preto da sua Fraternidade, completamente diferente do uniforme dos treinos. Um tecido fino, mas de aspeto resistente, que parece formar pequenas escamas. As calças desportivas, de corte direito, assentam-lhe bem nas ancas. Uma T-shirt justa que destaca os ombros largos e o tronco sublime. A roupa tem uns refletores muito finos, quase impercetíveis, nos ombros e também nas laterais, a todo o comprimento das pernas, que evidenciam ainda mais a altura dele. Agora, tem uma pistola de arpão, como a de Petra, que eu experimentei, presa ao braço direito, do cotovelo ao pulso. E por baixo da pistola, como que para proteger a pele, a armadura de antebraço que ele nunca tira. Reparei que todos os Protetores as usam, num ou ambos os braços. No entanto, os aprendizes apenas usam uma manga de tecido. Ele não é de compleição tão pálida como a maioria dos outros habitantes. Mesmo na penumbra, consigo distinguir o tom bronzeado da sua pele e algumas nuances douradas no seu cabelo. Deve-se muito provavelmente ao seu pai, que tem um tom de pele moreno, como os Havaianos.

— Não tens trabalho para fazer? — pergunto num tom cortante. Ele não tem toda a culpa da minha frustração, mas é nele que descarrego.

— Muito bem — responde friamente, num tom de voz calmo e grave, já a virar-se para se ir embora.

— Eu tenho a certeza de que te ouvi — assevero-lhe, rispidamente, sem me importar de voltar ao tema inacabado: o beijo que dei a Beau.

— O quê? — pergunta, virando-se novamente para mim. Um olhar pungente.

— Quando a Umi lançou o arpão na minha direção, ouvi-te dizer: «Cuidado, Rosialt.» Sei que era a tua voz. Queres explicar?

— Olha, miúda, não sei o que ouviste e espero que não andes a dizer isso às…

Miúda?! Não o deixo sequer terminar.

— Não disse nada a ninguém, nem tenciono dizer — explico, indignada. — Gostava apenas que me explicasses qual é o teu problema comigo.

— Não tenho problema nenhum contigo. Nem sequer te conheço. — A voz não é brusca, apenas indiferente. Os braços estão ao longo do corpo com os punhos cerrados.

— Exatamente, não me conheces. Que mal te fiz eu para não gostares de mim? — pergunto, num tom determinado.

Viro-lhe as costas para clarear as ideias e ouço-o suspirar.

— Quem te disse que não gosto? — ouço num sussurro.

Encaro-o de novo.

— As tuas atitudes. Parece que estás sempre furioso comigo!

O rosto dele fita-me ainda mais frustrado; passa as mãos pelo rosto com força.

— Merda! — diz ele, abanando a cabeça.

— Bem o podes dizer! Porque ficaste tão assustado quando pensaste que eu tinha sido atingida? E porque me defendeste do Asul? E ainda há pouco, porque me vieste ajudar quando estava apenas com tosse? Já para não falar que me deste umas sapatilhas de ballet! Mas, ao mesmo tempo, estás sempre com esse comportamento… sei lá… gelado!

Neste momento começo a espumar de raiva. Cruzo os braços e enrugo a testa. Quanto a ele, parece surpreendido.

— Tudo o que se passa nos meus treinos é da minha responsabilidade, portanto, se ela te acertasse, eu teria sérios problemas. — Responde apenas à primeira pergunta.

A minha vontade é gritar com ele. Estou furiosa, por vários motivos, mas falo-lhe num tom melodioso e controlado, ao contrário do que esperava.

— Compreendo… Nesse caso, por favor, da próxima vez deixa-me morrer — declaro, com frieza. As palavras saem-me sem que eu pense no que acabo de dizer e um nó apertado forma-se na minha garganta.

Ele fita-me, aturdido, dá um passo na minha direção, mas eu não me movo. A carótida pulsa-lhe no pescoço e ele semicerra os olhos como se fosse dar-me um raspanete. Não fico para ouvir o que possa ter para me dizer, porque, sinceramente, não me importa. Limito-me a encerrar a conversa com uma única palavra:

— Adeus.

Passo ao seu lado e encaminho-me para a festa, percorrendo o caminho ao longo do rio. Quero isolar-me, poder chorar e gritar se for preciso. Quero também pensar numa forma de me ir embora. Alguém tem de saber como voltar à Superfície. Se o avô conseguiu sair, eu também conseguirei. Preciso apenas de me concentrar e de encontrar a pessoa capaz de me dar as respostas de que eu preciso. Beau disse que me ajudaria na pesquisa, por isso vou pedir-lhe ajuda. Quero lá saber o que os outros pensam. Não é bem o que sinto, pois, assim que tiver oportunidade, vou falar com Mira e pedir-lhe desculpa.

O trilho torna-se mais largo e luminoso. À medida que caminho, a tensão esvai-se. E, quanto mais penso, mais percebo que tenho, decididamente, de me deixar de ilusões e parar de pensar em Kai da maneira que penso. Este encontro abriu-me os olhos e confirmou-me que ele jamais se interessará por mim. Parece bipolar: ora fica de olhos pregados em mim e me socorre, ora me trata mal. Eu tenho zero experiência nesta área das relações, mas, independentemente disso, não me parece ser um comportamento normal. Porém, o que realmente me incomoda é não perceber o que eu própria sinto. E sinto-me mal com isso.

Preparo-me para comunicar ao meu avô que vou para casa, quando encontro uma pessoa estendida no chão, de barriga para baixo, junto das portas de madeira entalhada do Salão Ruby. Tem as roupas rasgadas e está totalmente imóvel. Corre-lhe sangue do cabelo. Levo as mãos à boca e reprimo um grito abafado de pavor. Aproximo-me e baixo-me para ver se respira, mas assim que vejo o seu rosto desfeito e ensanguentado, recuo e levanto-me rapidamente para ir à procura de alguém que possa ajudar. Este rosto não me é estranho. Já em direção à porta, ouço-a abrir-se. É Ghaelle. Sorri-me, mas rapidamente o seu semblante passa a consternado quando vê o corpo inanimado.

— O que aconteceu?

— Encontrei-o agora mesmo.

— Estás bem?

Faço que sim com a cabeça, mas não falo.

Ele olha em redor, inspecionando minuciosamente, agacha-se junto do cadáver e vira-o de barriga para cima. Está coberto de sangue e as partes descobertas do seu corpo parecem dilaceradas por garras afiadas. As mãos têm também inúmeros golpes, que depreendo serem ferimentos defensivos.

— É o Edgar, o encarregado dos Cultivadores — digo.

— Volto já. — Para um homem tão grande e forte, mexe-se rapidamente, pois desaparece num ápice.

Protetores saem disparados, dispersando cada um para seu lado.

Ghaelle regressa passados alguns instantes com Llyr, o casal Peacox, Arcas e a mulher com quem a minha avó havia ficado a conversar no início da noite.

Juntam-se os seis à volta do corpo, sussurrando entre si, e ignoram-me por completo. Se eu achava que a noite não podia piorar, estava enganada. Sem saber muito bem onde me colocar ou o que fazer, começo por andar de um lado para o outro, feita barata tonta.

Edgar, coitado… Lembro-me do almoço em sua casa, a forma amável como nos receberam. E da filha, mais jovem que eu, que está grávida. O meu coração dilacera-se. Impaciente, roo as cutículas, meticulosamente. Então, decido aproximar-me para tentar ouvir o que dizem.

— Estão a tornar-se cada vez mais frequentes — diz Llyr, perturbado.

— Temos de fazer alguma coisa. Há que assegurar proteção permanente — prossegue a mulher dos olhos claros.

— Tens razão. Não podemos continuar assim, Nwil — concorda Alita, num tom lamentoso. As lágrimas correrem-lhe junto do nariz estreito e rosado.

Ah, ela chama-se Nwil.

Ghaelle fita o corpo com um olhar carregado, de boca torcida, como se esta lhe amargasse. Pousa um braço largo e pesado sobre os ombros de Nwil e ela não se mexe, parecendo estar à vontade com o seu toque.

— Acho que ela devia aprender a proteger-se. — A voz de Arcas sai sussurrada quando olha para mim, e todos os outros seguem o seu olhar.

Porque estará ele preocupado comigo?

Passos pesados e precipitados ressoam no caminho escuro que percorri há poucos minutos. Kai aparece a correr, acompanhado de Boris. Olha para o grupo e depois para o corpo estendido e inerte no chão ensanguentado.

— Pai, a área está segura e todos nos seus postos — diz Kai.

Fita-me inexpressivamente e contrai os lábios quando se aproxima e murmura:

— Estás ferida? — Ele já me fez esta pergunta mais vezes do que as que eu posso contar desde que cá cheguei. A preocupação na sua voz é genuína. E, uma vez mais, este comportamento deixa-me completamente baralhada. Faço que não com a cabeça.

— Boris, a festa acabou, modo de proteção total. Não quero mais mortes hoje — exige Ghaelle.

— Ajuda-me a pegar nele, Boris — ordena Kai ao amigo. — E vamos ver por onde entraram desta vez.

— Não, Kai. Quero que leves a Ara daqui — diz a voz feminina de Nwil. — E queremos que a comeces a treinar — acrescenta.

Ele desafia a ordem com o olhar e continua a baixar-se para pegar no corpo.

— Faz o que te dizem — insiste Ghaelle, calmamente, num tom de voz firme, sem desviar os olhos dele. A cumplicidade entre os dois é evidente. Kai é da altura do pai, embora seja muito menos musculado.

— Não é necessário, eu vou com os meus avós — explico, na defensiva, tentando evitar mais um momento de tensão.

Todos se viram para mim. Kai aproxima-se, contrariado, agarra na minha mão e leva-me para longe. Os dedos longos e quentes contra a minha pele fazem-me pele de galinha e o meu corpo é de novo percorrido por um formigueiro semelhante a uma corrente elétrica.

— Isto é desnecessário — resmungo, com a pulsação demasiado acelerada. — Puxo a mão e paro abruptamente.

Ele é também obrigado a parar e fita-me com um olhar determinado.

Ka patua ahau e koe — diz, irritado, mas o seu olhar ameniza-se no encontro com o meu.

— O que é que isso quer dizer?

— Nada de bom, nada de bom — suspira. E eu tenho a nítida sensação de que fala a sério.

Inclina-se um pouco, volta a pegar na minha mão e aperta-a com mais força, mas sem me magoar, e arrasta-me, sem grandes cerimónias, para o trajeto que planeara fazer. Limito-me a segui-lo.

Andamos cerca de duzentos metros pelo mesmo caminho pouco iluminado que fiz há pouco. Paramos junto de uma das cordas presas na robusta balaustrada. Kai prende uma roldana à corda grossa e geme baixinho, resignado. Coloca o braço esquerdo à volta da minha cintura e puxa-me contra si. Sinto o coração martelar-lhe o peito. Paraliso e paro de respirar por instantes… até inspirar o cheiro fresco que se cola ao corpo e ao cabelo dele.

Ele olha-me ardentemente e eu revejo-me neste olhar. Um arrepio intenso percorre-me a coluna e segue depois até aos mamilos.

Nunca desejei ser tocada ou beijada por alguém… Até agora.

— Nunca devias ter vindo… — lastima-se, com a boca áspera e quente colada ao meu ouvido. — Idem.

— Hã? — pergunto.

— Nada… — Kai suspira.

Passa agilmente as pernas por cima da balaustrada e desce pela corda, comigo nos braços, como se eu fosse um peso pluma. Estou abraçada em volta do seu pescoço para me segurar e viajamos verticalmente, em direção à água, durante alguns segundos. A parede de rocha passa velozmente por nós a pouco mais de meio metro de distância. Batemos com os pés numa plataforma de madeira flutuante e ele não me larga. Tenho de permanecer agarrada a ele durante mais alguns instantes, para me adaptar ao balanço da água.

— Entra — diz, por fim, apontando para um barco diante de nós. É um dos pequenos e reluzentes e tem uns bancos confortáveis, como o que nos trouxe algumas horas antes para a festa.

Ele senta-se ao meu lado, demasiado próximo de mim. Os meus músculos estão tensos. O corpo treme-me e estou a bater os dentes, mas não consigo evitá-lo. Tento disfarçar o melhor que posso, mantendo uma expressão impassível. Ele carrega energicamente numa série de botões, liga o barco, e zarpamos velozmente do local, de novo sem qualquer ruído.

Ainda não tivemos um diálogo dito normal, e eu acho que esta é uma boa altura para começar, visto nenhum dos dois ter para onde fugir. A não ser que resolva ir a nado. Cerro os punhos no banco, para ficar mais estável, procurando canalizar a minha ansiedade para eles.

— Quem é a mulher que te mandou acompanhar-me?

Ele não responde e sorri ligeiramente, arqueando uma sobrancelha. Viro-me de lado e continuo a olhar para ele, demonstrando-lhe que não vou desistir. Ele suspira longamente e responde:

— A minha mãe.

Hum, bem me pareceu reconhecer o olhar.

— Foram os Albas que o mataram? — grito por cima do vento que se faz sentir devido à velocidade.

Longa pausa.

— Então? — insisto, abespinhada.

— Sim, os Albas.

— Quantas pessoas já mataram?

— Tu és mesmo metida — comenta, com um ar impaciente, mas consigo vislumbrar um sorriso no canto da sua boca. Não consigo evitar observar o seu porte tão natural e espontâneo, mesmo quando me está a chatear.

— Quantas pessoas? — insisto.

Terei de repetir todas as perguntas duas vezes?

— Doze, e há mais três desaparecidos.

Kai atraca na doca de Salt Lake e salta borda fora, com o barco ainda em movimento. Quando o barco estabiliza, não me estende a mão, mas antes o braço dobrado num ângulo de noventa graus, para eu agarrar o seu antebraço. Apoio-me nele. Para meu espanto, ele abandona o pequeno cais e começa a andar em direção a Salt Lake comigo. O som da cascata é tranquilizante.

— Onde vais? — questiono.

Aponta em direção às casas. Um pequeno sorriso sai-me dos lábios sem eu reparar.

— Não é necessário. Vai, és preciso lá.

— Não me pareceu que precisassem de mim — rosna ele. Desta vez, sou eu que lhe pego no braço. Ele para.

— Vai.

Percebo a dúvida instalada no seu rosto. Ignorar a ordem dos pais, que provavelmente já estão habituados a este tipo de atitude por parte dele; ou deixar-me em casa em segurança.

— Ficas bem? — pergunta, inquieto, de olhos pregados nos meus. Aceno com a cabeça. — Vai direta a casa. E, não te esqueças, fecha a cortina de água.

Estugo o passo sem me dar ao trabalho de lhe responder.