Sete anos depois...
— PEÇO-LHE PARA RECONSIDERAR.
Lady Jessica Tarley inclinou-se sobre a mesa de chá na sala da família Regmont e apertou ternamente a mão da irmã.
— Sinto que devo ir.
— Por quê? — Os cantos da boca de Hester estavam caídos, em sinal de contrariedade. — Entenderia sua teimosia se Tarley fosse com você, mas agora que ele faleceu... Acha seguro viajar sozinha por tão longa distância?
Era uma pergunta que Jess havia se formulado diversas vezes, contudo, a resposta seguia sendo indiscutível. Estava determinada a partir, desfrutando de algum tempo livre no qual poderia fazer algo extraordinário. Dificilmente teria outra oportunidade igual.
— É claro que sim. O irmão de Tarley, Michael, cuidou de todos os arranjos, e serei esperada no cais do porto por alguém conhecido. Tudo sairá bem.
— Não tenho tanta certeza. — Com a xícara de chá na mão, Hester parecia pensativa e infeliz.
— Você também ansiava por conhecer lugares distantes — lembrou-a Jess. — Perdeu a vontade?
Pelo vão das cortinas era possível ver o intenso tráfego de carruagens pelo bairro de Mayfair, mas Jess só tinha olhos para a irmã mais nova. Hester havia amadurecido entre elogios à sua graciosidade e aos seus assombrosos olhos verdes. Por algum tempo, tivera mais curvas e fascínio feminino do que Jess, porém, os anos temperaram ambos esses traços, forjando uma mulher elegante e notavelmente reservada. Com as bênçãos do pai e da irmã, desposara o rico lorde Regmont, agora dono do título de conde.
— Você está pálida — observou Jess. — Não se sente bem?
— Sofro por sua perda e pela preocupação com a viagem — retrucou Hester, agora condessa de Regmont. — Simplesmente não compreendo seus motivos.
Completavam-se alguns meses desde que Benedict se fora deste mundo, vítima de uma moléstia incurável. Tempo bastante para Jess resignar-se e aceitar uma vida sem ele, mas o luto ainda a paralisava. Parentes e amigos a pressionavam a mudar-se para o campo, mas ela resistia à ideia, alegando que precisava tomar mais distância do passado a fim de planejar o futuro.
— Mais um Natal se aproxima e estamos todos debaixo dessa nuvem que me envolve. O que vai resolver minha vida é quebrar totalmente a rotina com uma temporada fora do país.
— Céus, Jess! — Hester suspirou fundo. — Não pense, como fez Tarley, em retirar-se da própria casa para não nos aborrecer. Você ainda é jovem, pode encontrar alguém com quem casar-se de novo. Sua vida está longe de terminar.
— Concordo, não se preocupem tanto comigo — insistiu Jess. — Se cuidar pessoalmente da venda da plantação de cana-de-açúcar no exterior, como Tarley pediu, retornarei mais calma e revigorada.
— Ainda não acredito que ele tenha sugerido isso. No que estava pensando?
Jessica sorriu, constatando que Hester tinha redecorado a casa dos Regmont logo após o casamento, introduzindo seu estilo colorido e otimista de ser. — Ele queria que eu fosse autossuficiente, mas também foi um gesto sentimental. Ele sabia como eu ansiava por conhecer Calypso.
— E o sentimentalismo vai levá-la ao outro lado do mundo... — ironizou Hester.
— Como disse, devo ir, preciso ir. Será uma despedida do passado.
Resmungando, Hester enfim capitulou.
— Promete escrever sempre e voltar tão logo seja possível?
Jess prometeu, mas sugeriu que a irmã a visitasse caso demorasse muito a regressar. Regmont nunca permitiria isso, porém a jovem concordou, a fim de encurtar a discussão, e saiu-se com uma frase lapidar:
— Não precisa me trazer presentes exóticos. Basta trazer você mesma de volta.
Alistair Caulfield estava de costas para a porta de sua agência de despachos marítimos quando ela se abriu repentinamente. Uma rajada de vento soprou, tirando-lhe da mão um documento que ia arquivar. Olhou para trás e reconheceu o tempestuoso visitante.
— Michael!
O novo lorde Tarley, parecendo igualmente surpreso, curvou a boca em um meio sorriso. — Alistair, seu malandro! Não me avisou que estava na cidade.
— Acabei de retornar. — Dizendo isso, recolheu o papel e colocou-o na pasta apropriada. — Como vai, milorde?
Michael tirou o chapéu e ajeitou os cabelos castanhos com os dedos. Aparentemente, o título de nobreza lhe pesava nos ombros, a ponto de vergá-lo um pouco para a frente. Costumava usar roupas sóbrias e flexionar a mão esquerda, na qual usava um anel com o sinete de seu título de nobreza.
— Tão bem quanto permitem as circunstâncias — respondeu depois de ponderar um pouco.
— Minhas condolências a você e à sua família. Recebeu minha carta?
— Sim, obrigado. Não consegui responder, pois o tempo tem passado depressa. Haja fôlego!
— Compreendo.
Michael meneou a cabeça.
— Estou feliz por vê-lo de novo, amigo. Ficou muitos meses fora.
— Vida de comerciante… — explicou o outro, sem admitir que permanecer na Inglaterra significava cruzar caminhos com o pai e com Jessica. Nos raros encontros sociais, ela visivelmente o evitava. Alistair pensara em cortejar a esfuziante irmã de Jess, mas Hester fora apresentada a lorde Regmont e isso resultara em um rápido noivado. Assim, dera sequência a uma vida devassa, até que, por pressão do pai, se empenhara enfim em uma atividade honesta. Quanto a Jess, ele concordava com os comentários de alguns solteirões. O casamento lhe fizera bem; ao menos, permitira o desabrochar de uma imprevista sensualidade no olhar e na maneira de ser. Cobiçava-a com volúpia, uma vez que ainda levava na memória a cena de sete anos antes. A voz de Michael o despertou da fantasia.
— Vim lhe pedir para recomendar minha cunhada ao comandante do navio para a Jamaica, que deve ser amigo seu.
Ao longo dos anos, Alistair aprendera bem a se mostrar impassível mesmo quando tenso.
— Lady Tarley pretende viajar até Calypso? Sozinha?
— Com uma criada particular, ainda hoje à tarde. Infelizmente, no momento não posso acompanhá-la. E ela não aceitou adiar a viagem. Herdou uma fazenda na Jamaica e quer desfazer-se dela pessoalmente. Com Tarley, desenvolveu certa aptidão para os negócios.
— Nunca se pode dizer não a Jess — emendou Alistair, dirigindo-se à janela para ver o movimento no porto.
Diversos navios estavam atracados. Portuários robustos cuidavam da carga e descarga de caixotes grandes, alguns importados, outros para exportação. Contavam com guindastes, mas suavam muito, mesmo sob o vento refrescante. Uma cerca de ferro isolava embarcações destinadas a viagens transoceânicas.
— Hester... perdão, lady Regmont... também não podia se ausentar de Londres — prosseguiu Michael, tropeçando nas palavras. Alistair sempre suspeitara de que o amigo tinha uma queda especial pela irmã de Jess, porém havia tardado demais em declarar-se. — Desde que perdeu o marido, Jess busca um novo objetivo na vida, daí ter insistido em viajar.
Cuidadosamente neutra foi a resposta de Alistair:
— Como sabe, conheço bem o lugar de destino dela. Posso assisti-la fazendo as apresentações necessárias e dando informações que ela levaria meses para descobrir.
— Oferta generosa — Michael retrucou. — Mas você acaba de retornar. Não devo esperar que embarque de volta tão cedo.
Girando o corpo, Alistair afirmou de maneira pausada:
— Sabe que possuo uma plantação de cana-de-açúcar nos limites de Calypso, mas não lhe contei que desejo expandi-la. Se o preço estiver dentro do meu alcance, talvez compre a propriedade de Jessica. Pagando tudo pontualmente, claro.
Melhor do que a encomenda, pensou Michael aliviado.
— Falarei com ela imediatamente.
— Deixe isso comigo. Tenho todo o tempo do mundo. E se, como você disse, ela precisa de um objetivo, deve querer manter controle sobre a negociação, apresentando os próprios termos. Enfim, cuide-se bem e confie Jess a mim.
— Você sempre foi um bom amigo — disse Michael, sem imaginar que algo de temerário pudesse ocorrer. — Torço para que volte em breve e se estabeleça por algum tempo. Posso utilizar seu tino para os negócios. Enquanto isso, faça com que Jessica escreva com regularidade à família e que retorne logo. Antes do Natal, de preferência, quando todos estarão na nossa casa de campo.
— Farei o melhor possível — garantiu o outro. Alistair não mentia, mas também não havia exposto todas as suas secretas intenções. Ele esperou Michael partir e, à mesa de trabalho, fez uma lista de providências necessárias à viagem. Conseguiu transferir todos os passageiros para outras linhas, cobrindo a diferença na tarifa.
Ele, Jessica e a criada dela seriam os únicos não tripulantes a bordo do Acheron. Mais ainda: ficariam próximos um do outro por semanas. Era uma oportunidade extraordinária, e que Alistair estava determinado a não desperdiçar.
De dentro da confortável carruagem da família, Jess estudou o navio que a aguardava atracado no cais. Era imponente com seus três mastros, e ela no íntimo agradeceu a Michael pelo esforço demonstrado nos preparativos, sacrificando os próprios interesses quando ele também estava afetado por conta do passamento precoce de Tarley. A agitação das docas lhe fazia bem, exceto pela apreensão que lhe acelerava os batimentos cardíacos. Na alta sociedade da Jamaica, uma nação insular no mar do Caribe colonizada por ingleses, Jess não depararia com preconceitos e noções erradas sobre seu comportamento. Teria paz, após meses de uma intensa sensação de sufocamento.
Jess notou que três estivadores se aproximavam: eles vinham apanhar sua bagagem e levá-la à passarela de embarque. Não tinha mais motivos para demorar-se na carruagem. Assim, ao lado da criada, alcançou as docas, e, subindo à embarcação, sentiu-se um pouco nervosa com as ondas agitadas debaixo dela. Parou por um momento, segurando-se no corrimão de corda, a fim de absorver a sensação.
— Lady Tarley.
Jess ergueu a cabeça e viu um distinto cavalheiro aproximar-se. Antes que ele falasse mais alguma coisa, suas feições e seu uniforme branco lhe denunciaram a função: era o comandante do navio.
— Capitão Smith — apresentou-se o homem, aceitando a mão que ela lhe ofereceu junto com uma ligeira reverência. — É uma honra tê-la a bordo, milady.
— O prazer é meu — respondeu ela, sisuda. Jess atentou para a barba branca mas bem aparada do oficial. — O senhor comanda um navio grande, capitão.
— Verdade — ele concordou e tocou de leve na aba do quepe. — Ficaria honrado se me acompanhasse durante os horários do jantar.
— Gostaria muito, obrigada.
— Excelente. — Dizendo isso, gesticulou para um marinheiro que o seguia. — Miller lhe mostrará sua cabine e cuidará da sua bagagem.
Sorrindo, ela notou que Smith estava ansioso por zarpar, já que não havia mais ninguém por perto pronto a subir à embarcação. Assim, agradeceu novamente quando o capitão fez menção de se retirar e dirigiu toda sua atenção a Miller, que aparentava não ter mais de dezoito anos.
— Milady... — Ele escancarou a porta do corredor para a passageira e sua criada. — Por aqui.
Jess ganhou o interior do navio, não sem antes admirar a coragem dos homens que escalavam o cordame dos mastros. Descendo as escadas, redirecionou sua admiração para o impressionante interior da embarcação. As paredes eram revestidas; os metais dos corrimãos e das portas, admiravelmente polidos. Assim entretida, não estranhou a falta de movimento ou de ruído nas cabines. Miller bateu a uma porta e lhe franqueou a entrada no quarto de sua criada, Beth: pequeno, de cama estreita, mas bem arrumado. Em seguida, Jess foi conduzida ao próprio aposento, ligado ao de Beth por uma passagem interna. Ela reconheceu as malas, colocadas ao lado de uma mesa sobre a qual repousava um balde de gelo que abrigava seu vinho clarete preferido. Lugar modesto no tamanho, completado por uma janela retangular, mas confortável. Ela sentiu-se bem diante da perspectiva de muitos dias de viagem. Não teria de responder a perguntas tolas nem conversar com passageiros que julgasse desinteressantes.
Jess retirou a fivela que prendia o chapéu, entregando ambos a Beth, que a seguira, prestativa. Miller retirou-se, prometendo voltar ao cair da noite a fim de indicar-lhe o caminho do restaurante.
— É uma grande aventura, milady — comentou a criada após fechar a porta. — Senti falta da Jamaica desde que saí do país.
— Deixando talvez um jovem namorado... — atalhou Jess.
— Sim, isso também. — Beth havia dado um providencial apoio à patroa quando toda a família desaprovara seus planos.
Pouco antes das seis horas, ouviu-se uma batida na porta. Jess depositou na mesa o livro que estava lendo e foi pessoalmente abri-la. Era Miller, sempre sorridente, pronto para levá-la ao salão de jantar. Conforme se aproximavam, tornava-se mais alto o som de um violino — aliás, muito bem tocado. Miller afastou-se, pois ainda tinha de conduzir Beth ao refeitório dos tripulantes e criados. Fascinada pela música, Jess acelerou o passo e viu o capitão Smith levantar-se da mesa, seguido por dois outros cavalheiros, que lhe foram apresentados como o imediato e o médico de bordo. Depois disso, ela examinou o violinista, que estava de costas, sem paletó e vestindo calças justas, mostrando nádegas redondas e firmes. Ela notou essa parte da anatomia masculina, que lhe pareceu um tanto familiar, mas logo sentou-se a fim de apreciar a refeição.
Furtivamente, Jess lançava olhares ao músico, até que este encerrou o número, guardou o violino e voltou-se para os comensais. Era de fato Alistair Lucius Caulfield, que, ao se aproximar da mesa, vestiu seu paletó, que estava pendurado no encosto de uma cadeira. Jess arrepiou-se ainda mais quando o capitão o apresentou:
— Este é o senhor Alistair Caulfield, proprietário do navio e brilhante violinista, como pôde perceber.
Jess temeu que parasse de respirar. Diante do salão deserto e das cabines desocupadas, suas suspeitas se confirmaram: o canalha bonito tinha cometido a loucura de esvaziar o barco para poder ficar a sós com ela. O resultado disso era a perda de sua tão sonhada e desejada tranquilidade...