Querida,
Confesso ter pensado em você o dia inteiro, da maneira que certamente gostaria. Espero que esteja bem.
ACHERON ROSNOU em sua almofada aos pés de Jessica. Ela fez uma pausa e pôs de lado o papel com o recado de Alistair. Então afagou o animalzinho, reprovando a impaciência dele.
— O que o incomoda?
O cachorro ensaiou um latido e foi raspar com as patas a porta fechada da sala. Quando Jess apanhou seu xale a fim de levar Acheron para passear, escutou uma voz masculina alterada em meio a uma discussão. A fonte do ruído tornou-se reconhecível no instante em que abriu passagem para o corredor. Vinha do quarto de Hester, conjugado ao de Edward Regmont.
— Não admira que esteja inquieto — murmurou Jess para o cãozinho, desfazendo-se do xale. — Fique aqui.
A cada passo na escada, a voz de Regmont soava mais potente, fazendo-a ofegar. O temor que sentia pela irmã já lhe era familiar.
— Você me humilhou. Por todos esses dias… O encontro com Tarley... Não admito ser traído!
As respostas de Hester eram inaudíveis, mas o ritmo frenético sugeria raiva... ou pânico. O barulho de algo caindo se fez ouvir e Jess abriu decidida a porta do dormitório da irmã.
Deus! Hester se apoiava na cabeceira da cama, o rosto sem expressão, os lábios esbranquiçados, e os olhos cheios de terror. Um ferimento lhe escurecia a parte esquerda da testa.
De costas para a porta, Regmont vestia traje de noite e, mesmo de longe, cheirava a tabaco e álcool. O criado-mudo estava caído no chão, bem como o lampião decorativo. O conde reagiu aos brados ao ver lady Tarley.
— Vá embora, Jessica! Isso não é da sua conta.
— Talvez comece a ser — retrucou ela, trêmula. — Sua esposa espera um bebê e tem ordens do médico para não se desgastar ou se aborrecer de nenhuma forma.
— E o bebê é realmente meu? — rosnou ele de forma ofensiva para Hester. — Quantos homens estiveram com você?
— Saia, Jess — suplicou a irmã. — Corra!
Jess se negou, gesticulando com a cabeça.
— Não. Você não pode continuar sendo a minha salvadora!
— Vá embora, Regmont! — A voz de Jess o açoitou como um chicote. — Trate de sair daqui.
Ele se aproximou de Jessica, fazendo o coração dela disparar. Os olhos do conde, avermelhados, nada revelavam além de extrema maldade. O punho dele armou um soco, como sempre acontecia quando não conseguia ganhar uma discussão com alguém fisicamente mais fraco.
— Esta é a minha casa! — esbravejou. — E você... você veio para cá com seus modos indecorosos e criou escândalo em torno do meu bom nome. Agora sua irmã segue pelo mesmo caminho. Não vou tolerar isso!
Mas os ouvidos de Jess suportaram o som da iniquidade. Regmont ameaçava ensiná-la a se comportar. O quarto parecia girar. Ela tinha vivido tal situação antes, escutado as mesmas palavras da parte de seu pai violento. Muitas e muitas vezes…
O temor foi embora tão depressa como havia chegado. Estranhamente calma, Jess entendeu que não era mais uma mulher sozinha e medrosa. Contava com Alistair para protegê-la. Se ele tivesse de ir até lá em seu socorro, Regmont pagaria por seus atos.
— Bater em mim — disse ela — será o maior erro da sua vida.
Edward riu, mas baixou o braço que mantivera erguido mesmo assim.
Ao sair do Clube Remington, Michael montou em seu cavalo e venceu todo o trajeto com uma ideia fixa: recuperar o lenço que lhe fora dado de presente por sua querida Hester. Desejava vê-la a seu lado e o marido, morto. Alistair também montou e passou logo a censurar o amigo.
— Esse duelo é uma rematada tolice, sem falar no risco que representa. Seja mais inteligente e mais... resignado. Se matar Regmont, poderá escapar da Justiça indo para outro país. Mas sua família sofrerá sem você. Hester ficará inconsolável com a perda do marido. E Jessica mudará de atitude para comigo, julgando-me envolvido na história. Então, vai se sentir melhor?
— Você não tem noção de como vivo. Hester precisa de proteção e estou impedido de dá-la.
— E eu não sei? — indagou Alistair com suavidade, notando a agitação do amigo.
— Não, não sabe. Acima de qualquer inveja que possa ter tido pela sorte do meu irmão, ele cuidou de Jessica, dando-lhe conforto e felicidade. Você nunca precisou se preocupar com a eventualidade de Benedict levantar a mão contra ela. Se a visse com medo, ou ferida, ou...
Alistair puxou as rédeas com tanta força que o cavalo relinchou em protesto. O encontro das patas do animal com os pedregulhos das ruas lembrava uma tempestade na escuridão.
— O que você está dizendo?
— Regmont bate na mulher. Descobri isso ao observar marcas e sinais na pele de Hester. Minha mãe também notou.
— Maldição! — O tom furioso de Alistair indicava uma mudança nas suas ideias. — E você o deixou livre. E se já estiver em casa?
O ódio de Michael cresceu.
— O que posso fazer? Hester é esposa dele. Estou de mãos amarradas.
— Jessica também mora lá! E tem pavor da violência de um homem.
— Como assim?
— O pai delas, Hadley, era abusivo — disparou Alistair. — Batia nas filhas com varas, de modo a lhes provocar bastante dor.
— Cristo! — exclamou Michael.
— Vamos passar pela Mansão Regmont e ver se as meninas… se Jessica e Hester estão bem... — Dizendo isso, Alistair esporeou o cavalo, guiando-o velozmente através das ruas cheias de carruagens. Dessa vez, foi o amigo quem o imitou.
Jess viu o braço de Regmont subir de novo e se esquivou do golpe, recusando-se a buscar abrigo. Todavia, antes do segundo tapa, um barulho estranho reverberou pelo quarto. Ela olhou em volta com cautela e notou os olhos de seu algoz revirar até se fechar. Então ele caiu no chão pesadamente, desmaiado, com um filete de sangue manchando-lhe os cabelos claros. Em um assomo de coragem e lucidez, Hester agira sorrateiramente e o atingira na cabeça com o atiçador de ferro da lareira. As irmãs estavam atônitas.
— Jessica!
Sim, Alistair tinha invadido a casa e tomado providências para deter Regmont sem saber que isso já se tornara desnecessário. Ele pegou as mãos de Jess entre as suas, enquanto Michael resgatava Hester de seu refúgio na cama e a abraçava com carinho.
Guiando as duas pela cintura, os homens as levaram para o lado oposto do cômodo, menos caótico, mas, mesmo assim, tiveram de passar por cima do corpo inerte de Regmont. Alistair entregou a Jess uma taça de vinho, cuja garrafa repousava no aparador da lareira.
— Tome. Beba isto — insistiu ele.
— Ele… ele está morto? — perguntou Jess.
— Creio que não.
Jess contemplou a bebida por um bom tempo, como se fosse o elixir da paz. Sentia a garganta seca e as mãos trêmulas, sintomas que seriam aliviados pelo vinho, mas ela almejava mais do que isso. Não voltaria atrás em sua determinação. Parte de seu passado estava estendida no chão, até mesmo espalhada por toda a casa. Depois daquela noite, o abandonaria no mesmo lugar e partiria para outra realidade, menos penosa.
Ela só não foi capaz de degustar a bebida porque naquele momento os joelhos de Hester fraquejaram e a irmã desabou no chão. Como estava abraçada a ela, Jess tombou junto. Debilitadas e nervosas, ambas deixaram-se ficar ali, necessitadas de um pouco de paz e repouso. A jovem grávida manteve a mão sobre o ventre, sentindo pontadas fortes.
A noite já ia alta quando Michael voltou trazendo o médico. Os feridos já estavam deitados em suas respectivas camas: Regmont tinha uma toalha em volta da cabeça; Jess cuidava da irmã, aplicando-lhe compressas frias na testa para tentar diminuir-lhe a febre. Mas o real e sério problema de Hester consistia no corrimento vaginal tingido de sangue.
— Ela atingiu o marido com o atiçador, depois começou a se queixar de dores na barriga — contara Michael ao dr. Lyon, enquanto Jess não se conformava com o fato de não ter notado antes os sinais do abuso físico que a irmã sofria. Ela presenciou os exames, mas os homens foram impedidos de entrar no quarto.
Quase uma hora depois, Alistair pôs de lado o conhaque que bebia quando Jess entrou na sala, seguida do doutor.
— Regmont recebeu alguns pontos no alto da cabeça. Em uma semana, com curativos e bandagens, ficará novo em folha — disse Jessica, que reservava a pior notícia para o fim. — Hester terá que se internar para uma curetagem e passará alguns dias no hospital, em observação.
— O que houve com ela? — inquietou-se Michael, engolindo de uma só vez a bebida que tinha em mãos.
— Perdeu o bebê por conta de um aborto espontâneo. — Jess exibiu os olhos úmidos de pesar, mas o sentimento de culpa também a assolava. A irmã sofrera espancamentos debaixo de seu nariz. — Hester poderá morar conosco, depois do casamento? Duvido que permaneça aqui por mais tempo do que o necessário.
— Claro. — Os olhos de Alistair revelavam tristeza e compaixão. Os de Michael, amor e inconformismo.
Grata, Jess pousou as mãos nas do noivo, que a confortou em meio à sua confusão mental, dando-lhe forças para cuidar de Hester.
— Nesse meio-tempo — disse Michael —, vocês duas podem morar comigo. Há lugar de sobra em casa e minha mãe estará livre para atendê-las. Ela será de grande ajuda.
O ruído seco de um tiro de pistola quebrou o silêncio que se seguiu à conversa, acompanhado de um grito de pavor. Todos, inclusive o médico, correram para a escada. Ultrapassando os outros, Michael já se encontrava no meio dos degraus, ansioso, por isso chegou primeiro ao quarto de Hester.
O dr. Lyon manteve-se no corredor, o rosto demonstrando consternação. O pânico tomou conta de Jess ao aproximar-se da irmã. Hester estava incólume, embora aterrorizada. Apontou a porta interna, bem trancada, que ligava seu dormitório ao de Regmont.
— Ele tentou arrombá-la, mas não conseguiu. Então...
O médico avisou que a porta do corredor também estava trancada. Sem trocar uma palavra, Alistair e Michael se juntaram para arrombar a porta de ligação entre os quartos e abrir passagem para o cômodo do conde. Deitado, ele sangrava muito na cabeça, vazada por um tiro fatal na têmpora. Simplesmente, havia tirado a própria vida.
— Estava inconsciente quando comecei a dar os pontos — esclareceu o dr. Lyon. — Acordou e mostrou-se furioso, gritando por lady Regmont. Pedi para acalmar-se e baixar a voz, pois a esposa repousava no quarto ao lado depois de ter sofrido um aborto. Ele pareceu enlouquecido, correndo pelo aposento em busca de algo que agora sabemos ser uma pistola. Preferi sair e deixá-lo sozinho.
Jess e Hester escutaram tudo e viram parte da cena pela fresta da porta arrombada. Jessica ergueu-se a fim de ir até o quarto do conde, mas Alistair, percebendo a intenção dela, a impediu.
— Não entrem aí — ordenou ele. — E, principalmente, não toquem em nada. — Dizendo isso, juntou-se aos outros homens e os três se acomodaram na sala, à espera da polícia.
— Hester! — gritou Jess, trêmula. — Foi Regmont. Matou-se. — Não seria disparate pensar que o homem quisera invadir o quarto da esposa, fosse para matá-la primeiro, fosse para se suicidar na frente dela, infernizando-lhe o resto da vida.
Jess sentou na cama da irmã e afagou-lhe os cabelos e a face lívida. Compreendeu que, como uma criança rejeitada, Hester precisava de muito amor e compreensão. As dores no corpo eram secundárias diante de seu destino fatídico; na mesma noite, perdera o filho e o marido. Não importava que amasse um por antecipação e desprezasse o outro.
— O homem que cheguei a odiar e temer enfim se foi depois de tentar me agredir. Sinto alívio — confidenciou Hester com sabedoria.
Jess a abraçou.
— Não deve pensar mais nisso.
Hester ficou em silêncio por alguns instantes e tinha a boca seca ao falar de novo.
— Na verdade, sabendo que perdi o bebê, preferiria que ele tivesse me matado antes de se matar. Mas ele quis prolongar minha agonia. Foi impiedoso e egoísta até o final.
— Fique quieta. Precisa descansar.
— Lembra-se de como ele era no começo? O homem com quem me casei? — Hester parecia obcecada por desabafar, e Jess a ouviu, meneando a cabeça. — Posso me sentir feliz com a ausência dele, mas estou igualmente triste...
— Talvez pelo que deixou de viver ao lado de Regmont nos últimos anos.
— Talvez. O que farei agora? — Hester retomou o silêncio e aproximou-se ainda mais da irmã.
— Um dia de cada vez. Você está viva, é capaz de comer, banhar-se, conversar com as poucas pessoas que considera suas amigas. Com o tempo, toda a mágoa irá passar — disse Jess, passando os dedos pelos cabelos revoltos da irmã. — Chegará a manhã em que você vai acordar e entender que a dor interior está só na memória; e isso lhe devolverá as forças para seguir adiante.
Lágrimas densas arderam nos olhos de Hester e molharam a blusa de Jess.
— Eu só queria ter meu bebê, ter uma criança linda e saudável. Pensei que Regmont mudaria por causa da minha gravidez, mas ele me acusou de adultério, sabia? — disse ela entre soluços, parecendo prestes a desmaiar.
Jess espantou-se. Tudo se podia esperar de uma índole má como aquela. Sacudiu a irmã pelos ombros, a fim de reanimá-la.
— Nada a impede de engravidar de novo. De Michael, por exemplo. Mas não importa o que aconteça, estarei sempre com você.
— Isso por si só já me deixará feliz — foi a resposta sussurrada.
Alistair entrou em casa com a alma sobressaltada. A dor de Jessica o contaminava. Seu coração estava pesado em vista da tristeza e do horror que, naquela noite, tinham dominado a vida dela. Na sala, consultou o relógio de pedestal. Era muito tarde; mais um pouco, e o novo dia estaria amanhecendo.
— Sua Graça o espera no escritório, milorde — informou o mordomo ao recolher o chapéu e as luvas de Caulfield.
— Há quanto tempo?
— Há quase quatro horas, senhor.
Claramente, tanta espera significava que a mãe não tinha notícias boas para lhe dar. No estúdio, ela lia um livro, sentada em uma poltrona com o colo coberto por uma manta fina. O fogo crepitava na lareira. Uma luminária na mesa ao lado iluminava as páginas e também o rosto de Louisa, outrora muito belo, mas ainda atraente. Ela olhou para cima.
— Alistair.
— Mãe. — Ele rodeou-lhe o assento e livrou-se do casaco. — O que há de errado?
— Talvez devesse perguntar o mesmo a você.
— Atrasei-me demais. Peço desculpas. O dia foi infindável, e a noite, sinistra — comunicou ele, sentando-se na cadeira mais próxima, mas reservando para mais tarde o relato das ocorrências na Mansão Regmont. — O que deseja de mim?
— Preciso sempre desejar algo quando peço uma visita?
No rosto envelhecido, ele notou pequenas rugas de cansaço em torno dos olhos e da boca. Eram sinais que já tinha identificado em lady Regmont sinais de uma mulher com problemas conjugais. Nunca os veria no rosto de Jessica, porque preferia morrer a lhe causar semelhante desgosto.
Sem aviso, rendendo-se à exaustão, Alistair trocou a poltrona pelo sofá, onde se esticou para cochilar um pouco. A mãe prosseguia entretida em sua leitura. O sono dele não durou. Em pouco mais de uma hora, com o dia já despontando, acordou agitado sob o peso dos acontecimentos. Louisa pediu à criada um desejum reforçado para os dois, e Alistair se refez após se alimentar. Só ficou confuso e descrente perante a manifestação da duquesa.
— Queria lhe contar que Albert está namorando uma jovem encantadora, de boa família. O nome dela é Ema e os dois pretendem se casar logo.
— Então será avó como sempre desejou — foi o comentário dele.
— Rezo pela felicidade de seu irmão tanto quanto rezo pela sua, Alistair. Refleti muito e cheguei à conclusão de que o enganei durante anos, filho. Não faz mal que Jessica seja estéril. Mais importante é que sejam sempre amorosos um com o outro, como já são. Meu coração se aquece ao vê-lo tão amado e admirado.
— O mesmo vale para mim em relação a Jess. Ela conhece o pior de mim e me ama a despeito dos meus erros. Ou justamente por causa deles, porque me fizeram ser como sou agora.
— É um dom maravilhoso o de ser amado incondicionalmente. Não consegui dar isso a Masterson, mas espero ter a chance de mostrar a você que posso. Meu coração sempre lhe pertencerá.
Ainda exausto, Alistair sentiu alívio e contentamento. Apertou com os dedos uma almofada. Precisava abraçar a noiva, confortá-la, e buscar a própria paz junto com ela.
— Obrigado, mãe. Seu apoio significa muito para mim.
Louisa meneou a cabeça e murmurou uma bênção ao filho.
— Eu te amo, Alistair. E pretendo lhe demonstrar quanto. A partir de hoje, não haverá mais reservas nem desconfianças entre nós.
— Vou apreciar muito isso.
A duquesa ergueu-se e se aproximou do sofá. Curvou-se para pressionar os lábios na testa do filho. Tinha de fato modificado seus sentimentos, arrependida, ou apenas o incentivava a relatar as ocorrências da noite que chamara de sinistra? Bem, não valia a pena preocupar-se com isso, depois de ter sido finalmente brindado com a aceitação calorosa da mãe.
— A senhora será uma avó feliz. Não para meus filhos, uma vez que não os terei, mas para os de Albert e Ema, que certamente lhe darão muitos netos. — Alistair devolveu o sorriso franco que a duquesa lhe abria, banindo a melancolia antes estampada em seus olhos azuis.