A CRIADA BETH OLHOU para o teto da cabine, atenta ao barulho que vinha do convés. Havia intensa atividade ali.
— O que será isso?
Jess colocou de lado o livro que estava lendo e franziu a testa. Era o meio da tarde e ela permanecera reclusa, ponderando acerca da crescente fascinação que sentia por Alistair Caulfield. Reconheceu-se assustada por conta da fixação e atração que nutria por aquele homem, pessoa distante da formação moral que tivera e talvez inadequada até mesmo para um romance passageiro. Julgou perigoso pensar nele tanto assim, considerando que o maior bem que possuía residia na própria reputação.
Não que Jess, viúva e sozinha, jamais pudesse ter um amante, apesar do natural recato. Sua experiência com sedução e conquista era limitada ou inexistente. O matrimônio tão satisfatório com Tarley a tinha distanciado de ligações sexuais clandestinas — aliás, contrárias aos seus princípios. Ela não possuía sequer a noção de como agir em casos assim.
Quantas senhoras casadas tinham seguido Caulfield até o famigerado coreto? Quantas mulheres se passavam por sérias e puras em reuniões sociais, e, no entanto... Ela considerava deprimente esse tipo de interação física. Os sons vindos da parte de cima do Acheron interromperam suas reflexões. Ela ouviu explosões além do barulho de objetos pesados rolando pelo convés.
— Canhões? — interrogou Beth, os olhos arregalados.
Jess estacou.
— Fique aqui.
Abrindo a porta, ela deu alguns passos no corredor e descobriu o navio tomado pelo caos, com marinheiros correndo para todo lado.
— O que está acontecendo? — gritou Jess para Miller, que estava mais próximo dela.
— Piratas, milady! — Que, obviamente, estavam sendo repelidos por bombas de médio alcance, mas contra-atacavam com explosivos lançados ao convés do Acheron e se preparavam para a abordagem.
— O capitão me garantiu que nunca foi abordado por piratas — ela disse a Beth, ao retornar para a cabine.
— Então, por que o pânico?
— Precaução não é sinal de derrota ou de medo — Jess frisou de forma áspera à criada que tremia. — É bom que os piratas nos vejam dispostos e capazes de lutar. — Então encheu um cálice de clarete e o tomou, sugerindo que Beth fizesse o mesmo. — Volto logo.
Desviando-se dos homens que congestionavam a passagem, Jess chegou ao convés, mas, procurando pelo barco inimigo, não viu nada no mar. Contudo, no leme do Acheron, teve uma visão de tirar o fôlego: Alistair dirigia a embarcação, parecendo ele próprio um pirata. Sem casaco nem colete, estava na torre de comando com as pernas afastadas e um punhal na cintura. Vencia as ondas em velocidade. A situação explicava por que ele não tinha ido à cabine a fim de protegê-la, o que fazia parte de suas atribuições. Algo maior estava em jogo. Mas o quê?
Jess ficou abalada com a cena. O vento agitava os cabelos negros de Alistair. Uma máscara de terror e violência lhe desfigurava o semblante. O perigo em torno pôs-lhe o coração em disparada. Então ele viu Jess. Meneou a cabeça para ela, que se esforçou para subir a escada metálica até a torre. Sem deixar de manobrar o navio, com o braço livre, Alistair a puxou pela cintura, em um abraço encorajador.
— É perigoso demais ficar aqui — avisou, gritando acima do alarido. — Vá lá para baixo e fique longe das escotilhas.
Jess perscrutou de novo o mar aberto.
— Não vejo piratas. Onde estão?
Antes de responder, Alistair a empurrou, colocando-a entre o leme e o corpo dele.
— Muito perto — respondeu ele. — Eles sabem se esconder.
No que se referia ao encontro íntimo dos dois, era verdade.
— O que você está fazendo?
Alistair aproximou os lábios do ouvido direito dela, o são. — Já que deseja conversar comigo sob circustâncias adversas, devo protegê-la.
— Isso é desnecessário. Eu irei…
Uma explosão próxima assustou Jess e a fez saltar. Em seguida, um projétil de canhão atingiu a água em torno deles, espalhando o líquido no ar.
— Tarde demais. Não posso correr nenhum risco com você.
A pressão do corpo rijo contra suas costas aqueceu Jess a ponto de arrepiá-la. Parecia impossível naquelas condições, mas Alistair estava tendo uma ereção. Por isso tirou a mão da cintura e colocou-a sobre os seios dela, buscando-lhe os lábios para um beijo vitorioso. Ela desviou o rosto a tempo e recebeu a carícia apenas na face. Acusou, porém, a excitação que aquele homem causava nela, e a distância existente entre isso e as conveniências sociais. Por mais que tentasse não sentir nada, Jess desejava Alistair a seu lado. Já fazia um bom tempo que se reencontrara com ele e vinha se comportando como um fantasma indiferente apenas para preservar sua autoestima e posição social. Também fazia um ano que o marido, lorde Tarley, falecera e ela ficara sozinha, mas saudável, pronta para um flerte. Agora via-se com os quadris colados à virilha de um homem que poderia não ter intenções honradas, porém era vibrante e caloroso, e talvez a amasse de verdade. Tal possibilidade a fascinava mais do que toda a convivência com um esposo honesto. Sobretudo porque lhe traria, junto com o prazer renovado, a sonhada paz de espírito.
Percebendo a alteração em seu estado, Alistair indagou alto:
— Jessica?
No mesmo instante, um marujo gritou para os dois, prevenindo-os. O grito se confundiu com o som de uma bomba atingindo o casco do Acheron, seguido do habitual jorro de água no ar.
O pânico tomou conta de Jess, que lutou contra o abraço restritivo de Alistair.
— Solte-me!
Obedecendo, ele a viu correr sem rumo pelo convés, na direção da escada atulhada de gente.
— Jessica!
Desde a véspera do casamento com Tarley ela não sofria uma crise de medo como aquela. No íntimo, era bombardeada por más lembranças: o pai gritando impropérios, a mãe chorando, garrafas sendo quebradas, estalidos de chicote, uma arma apontada, seus soluços de aflição... Tais memórias vivas se misturavam à atual confusão em torno dela e formavam uma barreira sonora que Jess não conseguia absorver. A comoção pesava em seu ouvido bom, desequilibrando-a e deixando-a fora do eixo. Descuidada por causa da pressa, Jess trombou com diversas pessoas no caminho de volta à segurança de sua cabine.
Mais tarde, com a relativa calma instalada no cenário, Alistair dormiu um pouco, sentado, e despertou antes de o sol nascer. Foi então ao convés trabalhar com a tripulação, pois precisava de uma válvula de escape para a energia que tomava conta dele.
Jessica declinara do convite para jantar no salão na noite anterior. Com a chegada do novo dia, deveria finalmente aparecer em algum ponto da embarcação recém-atacada. Ele já não pensava em pirataria, em sobrevivência, somente no que o levara a esfregar-se no corpo de Jess e tentar beijá-la. A conduta elogiável que tivera até então tinha sido arruinada em poucos instantes. Ele reconhecia a culpa. Com o vento no rosto e a agitação em torno, admitiu que uma implosão dos sentidos o levara à irresistível urgência de agarrar Jess e tentar possuí-la.
Pensara em ir atrás dela quando ela fugira, mas não podia abandonar o leme, pois de suas manobras dependia a fuga do ataque criminoso. Desapontado com a ausência dela no jantar, não havia participado dos debates à mesa sobre a ação de pirataria, por mais que seu comportamento fosse elogiado, bem como o do capitão Smith, responsável pelo canhonaço de revide e defesa do navio.
Alistair viu então a criada Beth aproximar-se da amurada. Vestia gorro e xale e contemplava a imensidão do mar. Ela acenou para Miller, cujas simpatia e juventude prenunciavam um namoro entre os dois. Alistair então se aproximou e saudou-a, recebendo em troca uma breve reverência.
— Senhor?
— Queria notícias de sua patroa. Ela está se sentindo bem? Não tem aparecido. Se precisar de alguma coisa, não hesite em me pedir.
— Receio que não haja jeito. — A moça exibiu um sorriso triste. — Hoje faz um ano que ela perdeu o marido, por isso decidiu guardar luto por algumas horas.
A morte de Tarley era o que a abatia? Jess fugira de Alistair tão subitamente que ele imaginara que a culpa fosse sua.
— Ela precisa de um tempo sozinha, senhor — prosseguiu a criada. — Dispensou-me porque queria se deitar. Por certo estará melhor amanhã.
Com um meneio de cabeça, Alistair afastou-se, cerrando os dentes. Droga! Tinha inveja e ciúme de um homem morto! Ele descobrira que, na véspera do casamento, Jess convencera o noivo a satisfazer-lhe os desejos que ele tinha acendido nela. Se ele, Alistair, despertara em Jess a paixão sensual, fora Tarley quem gozara do direito de desfrutá-la. De certo modo, a história se repetia novamente.
Ofendido em seus brios, Alistair dirigiu-se à cabine de Jess, onde entrou pela porta destravada. Como ouviu barulho de água, foi direto para o banheiro. Premiado pela ousadia, deparou com Jess na banheira, semicoberta de espuma, revelando os ombros desnudos e uma perna dobrada, cuja coxa muito alva ela logo escondeu.
— Sr. Caulfield — disse ela, visivelmente contrariada. — Ninguém o ensinou a bater na porta?
Jess tinha os cabelos envoltos em uma toalha. Não denunciava medo nem vergonha de insinuar suas belas formas, ligeiramente visíveis sob a espuma branca. Ela havia solicitado um bom estoque de água, suficiente para encher a banheira. Na borda desta, equilibrava-se uma garrafa de vinho. O corpo e a pele de Jess torturavam os sentidos de Alistair, mas ele se conteve diante da situação.
— Quer tomar uma taça? — surpreendeu-o ela. Alistair esticou
o braço por cima de Jess, pegou a garrafa e bebeu um gole direto do
gargalo. — Você parece notavelmente à vontade ao observar uma dama na toalete.
— E você, notavelmente à vontade ao ser observada — foi a resposta dele, instalando-se em uma cadeira a fim de prolongar a paradisíaca visão.
— Faz isso com frequência? — incitou-o de novo Jess.
Alistair conhecia o risco de discutir amores passados. Portanto, não começaria agora.
— E você, faz?
— É minha primeira vez.
— Fico muito honrado. — Aquele território lhe era estranho. No dia anterior, ele a havia acariciado perto demais, cedo demais. Não repetiria o erro, mesmo diante de uma beldade nua, embriagada e desinibida que ele cobiçava por anos a fio. Até um santo se trairia, quanto mais Alistair Caulfield! Mas o desanimava a ideia de que Jess ainda pudesse estar tão ligada a Tarley. Como competir com um espectro, um fantasma?
— Por acaso está se preparando para jantar no salão? — indagou ele em um tom o mais casual possível.
— Não acompanharei você — retrucou Jessica, reclinando-se na banheira e fechando os olhos. — E você não deveria me acompanhar na minha cabine particular.
— Basta pedir que eu sairei no mesmo instante. Embora julgue que alguém deva ficar sempre ao seu lado. Você dispensou Beth, então fico feliz em substituí-la.
— Aproveita-se da minha solidão e da sua impetuosidade, como ocorreu ontem. — Ela suspirou. — A reputação me é muito importante.
— Para mim também. Seu bom nome me é importante.
— Por quê? — Jessica abriu os olhos cinzentos.
— Se importa para você, importa para mim.
O olhar dela seria desconcertante se Alistair não estivesse determinado a ser completamente honesto com Jess. Por isso a acusou:
— Você gosta de se exibir...
— Gosto de ser espiada no banho por se tratar de você. É perturbador.
Alistair escondeu um sorriso de satisfação.
— Você está se revelando uma exibicionista.
Também ela era honesta com Alistair; um pouco embriagada, mas franca. Ele nutria admiração por Tarley, o falecido marido de Jess, o primeiro homem na vida dela e seu mestre em tudo o que envolvia erotismo. Tal sentimento, porém, não excluía uma dose de frustração machista. Talvez por ser mais maduro e racional, Benedict Tarley não tivesse conseguido saciar o apetite sexual da esposa. A forma física e os talentos sensuais de Alistair contavam pontos a seu favor, atraindo as mulheres que o assediavam. Nunca, até aquele momento na cabine do navio, ele confiara tanto nos próprios dotes.
— Vamos reconhecer que a atração entre nós é mútua — comentou ele.
— Mas não tem lugar normal em nossas vidas — esmerou-se ela em responder.
Alistair aproximou-se de Jess.
— Mas não estamos em um momento normal das nossas vidas agora. Nem estaremos nos próximos meses ou semanas, pelo menos.
— Somos muito diferentes. Talvez você pense que, naquela noite no bosque de Pennington, eu me excitei profundamente, pelo resto da minha existência. Porém, asseguro-lhe que fiquei confusa e mortificada, nada digno de nota além disso.
— E agora viaja por longa distância não por necessidade, mas por escolha. É uma mulher excepcionalmente rica. Não lhe cabe envolver-se nos velhos negócios de Tarley, e sim aproveitar bem sua fortuna. Para mim, isso é intrigante, assim como sua disposição de mudar o mundo salvando os escravos, os pobres e os excluídos da sociedade.
Jessica tomou o resto do vinho que ainda havia na taça. Dobrou as pernas e abraçou os joelhos.
— Não posso ser sua amante — sentenciou, de forma concisa e firme.
— Nunca lhe pediria isso. — Erguendo-se, Alistair tirou o casaco e pendurou-o no espaldar da cadeira. De pé, sentiu todo o poder de sua ereção, que era como um atiçador de fogo. — Não almejo nenhum arranjo especial com você, não quero ser servido, mas servir, aplacar todas as suas fantasias, necessidades e momentos de tensão, como agora. Precisamos terminar o que começamos sete anos atrás. O que me diz?