VELHA MESA

É uma velha mesa sobre a qual bato hoje a minha crônica. Pouco mais de um metro por uns quarenta centímetros de largura. Móvel digno, com duas gavetas laterais, um verniz escuro cobria em outros tempos seu jacarandá. Às vezes me dá vontade de parar de escrever, descansar minha cabeça no seu duro regaço e ficar lembrando a infância longínqua.

É uma velha querida mesa. Foi lixada para parecer mais nova, mas mostra ainda por toda parte as rugas que lhe causaram a minha inquietação juvenil. O canivete entalhou fundo em sua carne fibrosa e ainda é possível distinguir nomes de antigas amadas, quase esvanecidos. Lembro de que aqui à direita ficava o teu nome pequeno e louro, ó minha namorada de oito anos. Na ponta esquerda, lá onde existe um nódulo escuro, havia uma cruz assim:

 

A

A M O R

O

R

 

— como a prenunciar um eterno suplício. A palavra POESIA gravada em caracteres largos, não mais se vê, mas o pequeno violão desenhado a gilete, com uma clave de sol ao lado, resistiu ao carpinteiro.

Foi esta a única verdadeira mesa de trabalho que jamais tive. Na gaveta da direita guardava os versos de meu pai, minha primeira e maior influência. Meus cadernos de estudo, empilhava-os à esquerda — ah, cadernos meus de geografia com mapas tão cuidadosamente copiados! — e do outro lado alinhava o grande caderno preto da prefeitura, onde passava a limpo meus primeiros versos. A página de guarda mostrava, escrito a tinta, o título Foederis arca — A arca da fé — e levava, se não me engano, epígrafe de Vigny e um gosto à reticência…

 

J’écris… pourquoi?…

Je ne sais… parce qu’il faut…

 

Nessa mesa passou horas infindáveis de amor e poesia um menino com o meu rosto, labutando no verso uma forma ainda hoje não alcançada. E foi nela também que, uma madrugada, a suar sangue, um poetinha de dezoito anos desencantou de uma página em branco o seu primeiro poema original — emoção tão grande como talvez nunca nenhuma.

Doce rever-te, velha mesa, depois de tanto, tanto tempo. Como a ti, andaram me polindo. Há também em mim nomes e símbolos quase indistinguíveis sob a lixa do tempo. Mas não és tu a mesa da infância e da juventude — aquela sobre que gotejaram, no pungente labor do verso e na angústia do amor sozinho, as primeiras lágrimas de um homem que nada sabia e nada sabe senão amar a mulher?