capítulo 3

ISABELLA, A BABÁ DE Lily, chegou para trabalhar às sete horas da manhã seguinte. No enterro, ela e sua família haviam se revelado os mais inconsoláveis entre todos os presentes. A mãe, Rosa, que havia sido a babá de Joe, mostrara-se especialmente abalada, sempre com um lenço apertado entre os dedos, volta e meia desabando sobre os dois filhos, Isabella e Hector.

– Tudo isso é muito triste, Sra. Burkett... – disse Isabella, ainda com os olhos vermelhos da véspera.

Maya já havia pedido inúmeras vezes que ela a chamasse pelo primeiro nome. Isabella dizia que sim, mas continuava usando o odioso “Sra. Burkett”, e depois de um tempo Maya acabara desistindo de corrigi-la. Se a garota se sentia melhor num ambiente de trabalho mais formal, o que ela, Maya, podia fazer?

– Eu sei, Isabella. É muito triste, sim.

Com a boca ainda cheia do cereal que estava comendo, Lily emergiu da cozinha e correu direto para os braços da babá.

– Isabella!

Isabella abriu um sorriso luminoso, pegou a menina no colo e a apertou num demorado abraço. Diante da cena, Maya foi tomada do mesmo sentimento contraditório que afligia todas as mães que trabalhavam fora: era ao mesmo tempo ótimo e preocupante que a filhinha gostasse tanto da babá.

Se ela confiava em Isabella? Sim, confiava, tal como dissera na véspera, tanto quanto confiaria em qualquer “desconhecida” naquela situação. Claro, era Joe quem havia contratado a garota. Maya tivera lá suas dúvidas. Havia na Porter Street uma creche excelente chamada Crescendo, que na opinião dela era uma homenagem à canção de Bruce Springsteen “Growin’ Up”. Conhecera o lugar através de uma sorridente criatura chamada Kitty Shum (“Pode me chamar de Miss Kitty!”) e ficara encantada com o que vira: a limpeza das instalações, as cores vivas das salas, a diversidade da tralha destinada a estimular a criançada, as câmeras e os procedimentos de segurança, as professorinhas sempre tão sorridentes. Além disso, claro, seria ótimo para Lily interagir com outras crianças. Mas Joe batera o pé, dizendo que preferia uma babá, que “praticamente havia sido criado pela mãe de Isabella”. Sempre que ele repetia isso, Maya brincava, dizendo: “Tem certeza que ela fez um bom trabalho?” No entanto, uma vez que estava escalada para uma missão de seis meses fora do país, ela não tinha muito como argumentar, do mesmo modo que não tinha bons motivos para recusar a solução “babá”.

Maya deu um beijinho na cabeça da filha e saiu para trabalhar. Poderia ter prolongado sua licença um pouco mais para ficar em casa com a menina. Ela certamente não precisava do dinheiro: mesmo com o acordo pré-nupcial, seria uma viúva muito, muito rica. Mas a verdade era que ela não tinha a menor vocação para o papel de mãe exemplar. Já havia tentado inserir-se no mundo cor-de-rosa das mamãezinhas de revista, vez ou outra comparecendo àquelas reuniões regadas a muito café e biscoito para discutir tópicos de suma relevância como os carrinhos de bebê mais seguros no mercado, as melhores técnicas para tirar a fralda das crianças, as melhores escolas com programas maternais. Ouvia com paciência todos os relatos de prodígios e gracinhas dos filhos das outras mães presentes, sempre sorrindo, mas remoendo em segredo alguma lembrança mais grotesca do seu passado de capitã (geralmente Jake Evans, um rapaz de 19 anos de Fayetteville, Arkansas, que tivera toda a parte inferior do corpo pulverizada por uma bomba, mas que de algum modo sobrevivera). Não conseguia entender como era possível que duas realidades tão diferentes habitassem o mesmo planeta: de um lado, cafezinhos, biscoitos e fofocas; de outro, um campo de batalha inundado de sangue. Por vezes, não eram as imagens que lhe vinham à cabeça, mas o ruído dos rotores do seu helicóptero, e não lhe escapava a ironia de que os falantes de inglês costumassem usar justamente a expressão “pais-helicópteros” para descrever aqueles casais mais zelosos que nunca saíam da órbita dos seus frágeis rebentos.

Aquela gente não sabia de nada.

A caminho do carro, ela correu os olhos longamente à sua volta, procurando por aqueles lugares onde o inimigo poderia esconder-se para surpreendê-la com um ataque traiçoeiro. O motivo para isso era bem simples: velhos hábitos nunca morriam. Uma vez militar, sempre militar.

Nenhum sinal do inimigo, imaginário ou não.

Maya tinha plena consciência de que sofria de algum transtorno mental daqueles mais básicos, sequela da guerra, mas a verdade era que ninguém voltava completamente ileso de uma situação semelhante. Para ela, esse transtorno também tinha lá o seu aspecto pedagógico. Ela agora conhecia o mundo. Os outros não.

No Exército, ela havia pilotado helicópteros de combate, quase sempre oferecendo proteção para as tropas de infantaria. Começara com os Black Hawks UH-60 do Forte Campbell até acumular milhas suficientes para candidatar-se a uma vaga no Regimento Aéreo de Operações Especiais, o famoso 160o SOAR (Special Operations Aviation Regiment), que operava sobretudo no Oriente Médio. Os soldados geralmente chamavam os helicópteros de “passarinho”, mas poucas coisas deixavam Maya mais irritada do que ver um civil fazendo a mesma coisa. Seu projeto inicial havia sido permanecer no serviço até o fim da vida, mas depois do vídeo publicado no site Boca no Trombone, esse projeto havia sido pulverizado como se ele também, a exemplo de Jake Evans, tivesse pisado numa bomba caseira.

As aulas daquele dia seriam realizadas a bordo de um Cessna 172, um monomotor de quatro lugares que por acaso era tido como a aeronave mais bem-sucedida de toda a história da aviação. Muitas vezes as aulas de pilotagem tinham como real objetivo o acúmulo de horas de voo para aqueles que buscavam seu brevê, e nessas ocasiões ela não fazia mais do que ficar observando o aluno ou aluna a seu lado, sem muito o que ensinar.

Voar era para Maya o mesmo que meditar. Ela podia sentir os músculos dos ombros relaxarem assim que pisava numa cabine de comando, fosse para pilotar ou dar suas aulas. Claro, dar aulas num Cessna não produzia o mesmo barato ou a mesma emoção de pilotar um Black Hawk nos céus de Bagdá, tampouco o orgulho de ter sido a primeira mulher a pilotar um ­Little Bird MH-6, o helicóptero de artilharia da Boeing. Ninguém gostava de admitir esse lado da guerra, o barato gostoso da adrenalina, que nada devia ao dos narcóticos. Era grotesco “gostar” do combate, sentir aquela “onda”, dar-se conta de que não havia nada igual na vida cotidiana. Tratava-se de um segredo inconfessável. Sim, a guerra era horrível e nenhum ser humano deveria conhecê-la de perto. Maya daria a própria vida para que Lily jamais tivesse de passar por algo semelhante. Mas a verdade que ninguém tinha coragem de dizer em voz alta era esta: o perigo da guerra chegava mesmo a ser viciante. Quem haveria de admitir uma barbaridade dessas? O que isso diria a respeito do seu caráter? Somente os violentos inatos eram capazes de gostar da guerra, os que haviam nascido sem o dom da empatia. Mas não tinha como negar: o perigo viciava. Os soldados deixavam para trás sua vidinha pacata, besta, trivial, depois iam para o outro lado do mundo e se viam cara a cara com os horrores da guerra, os medos, os perigos. Ao cabo de uma experiência dessas, como voltar para uma vidinha pacata, besta e trivial? Impossível. Não era assim que os seres humanos funcionavam.

Sempre que estava voando com um aluno, Maya deixava seu telefone no escaninho do vestiário para evitar interrupções desnecessárias. No caso de alguma emergência, poderiam falar com ela pelo rádio. No entanto, ao recolher seu aparelho na hora do almoço, ela deparou com uma mensagem estranha de Daniel: “A Alexa não quer que você vá ao jogo de futebol dela.”

Maya ligou imediatamente para o sobrinho, que atendeu na primeira chamada.

– Que foi que aconteceu? – ela foi logo perguntando.

Quando Maya cutucou o ombro do técnico de Alexa, o grandalhão virou-se tão bruscamente que por muito pouco não a golpeou com o apito que levava pendurado ao pescoço.

– Que foi? – berrou ele.

Durante todo o jogo, o homem (que se chamava Phil e era pai de uma marrentinha insuportável chamada Patty) andava de um lado para outro na beira do campo, berrando suas instruções, dando os seus esporros e chiliques. Maya conhecia sargentos de treinamento que teriam considerado o comportamento dele inaceitável com recrutas adultos e cascudos, quanto mais com meninas de 12 anos.

– Olá, sou a Maya Stern.

– Sei muito bem quem você é, mas... – Phil apontou de maneira teatral para o campo de futebol. – Estou no meio de um jogo, não está vendo? Cada um com a sua guerra, soldado.

Soldado?

– Só uma perguntinha – disse Maya.

– Agora não vai dar. Me procura depois do jogo. Aliás, você nem devia estar aqui. O lugar dos espectadores é do outro lado do campo.

– Regras da Liga?

– Exatamente – disse Phil, e virou suas costas monumentais para Maya, dando a conversa por encerrada.

Ela ficou onde estava.

– Já estamos no segundo tempo – disse.

– Hein?

– De acordo com as regras da Liga, todas as garotas do time têm de jogar pelo menos um tempo do jogo. Já estamos no segundo, e três meninas ainda não entraram. Mesmo se entrarem agora, não vão jogar o meio-tempo completo.

O calção que Phil estava usando provavelmente seria do tamanho certo uns dez ou doze quilos antes. A camisa polo vermelha, com a palavra ­TÉCNICO costurada no peito, era justa o bastante para fazê-lo parecer uma tripa de salsicha. Phil tinha todo o aspecto de um atleta havia muito aposentado, o que talvez ele fosse realmente. Era grande, carrancudo, decerto metia medo em muita gente. Ainda de costas para Maya, falou pelo canto da boca:

– Pra seu governo, estamos numa semifinal de campeonato.

– Eu sei.

– E estamos só um gol na frente.

– Li as regras da Liga – disse Maya. – Não há nenhuma exceção pra regra do meio-tempo. Você também não fez o rodízio de jogadoras nas quartas de final.

Phil enfim se virou para encará-la. Ajustou a aba do boné e deu um passo adiante, invadindo o espaço pessoal de Maya. Ela não recuou. Durante o primeiro tempo, assistindo ao jogo na companhia dos outros pais e observando de longe os chiliques do técnico, Maya o vira jogar o boné no chão duas vezes feito uma criancinha de 2 anos num acesso de birra.

– Não estaríamos aqui hoje se eu tivesse colocado todo mundo pra jogar nas quartas de final – disse ele, quase cuspindo fogo.

– Teria cumprido as regras, mas teria perdido o jogo. É isso que você está dizendo?

Patty, a filha do técnico, não se conteve. Riu e disse:

– Ele está dizendo que aquelas garotas são terríveis.

– Fica na tua, Patty. Você vai entrar agora, no lugar da Amanda.

Ainda rindo, Patty saiu caminhando para a mesa dos juízes.

– Sua filha... – disse Maya.

– O que tem minha filha?

– Ela provoca as outras meninas.

Phil contorceu o rosto numa careta de impaciência.

– Foi isso que a sua Alice contou, foi?

– Alexa – corrigiu Maya. – Mas não. Não foi a Alexa que me contou. – Fora Daniel quem havia comentado com ela.

Phil avançou mais um pouco, o bastante para que Maya sentisse o bafo de atum que saía da boca dele.

– Olha, soldado...

– Soldado?

– Você é uma soldado, não é? Ou pelo menos foi. – Com um risinho irônico, ele emendou: – Dizem por aí que você também não é lá muito chegada às regras.

Numa reação automática, Maya começou a flexionar e relaxar os dedos das duas mãos.

– Na condição de ex-soldado – prosseguiu Phil –, você devia entender melhor as coisas.

– Que coisas?

– Isto aqui é o meu campo de batalha – disse ele, apontando para o gramado a seu lado. – Sou o general, e as meninas são as minhas soldados. Você não colocaria um perna de pau pra pilotar um caça F-16, colocaria? – perguntou, puxando o calção para cima.

Maya chegou a sentir o sangue ferver no interior das veias. Contendo-se para não explodir, disse:

– Você não está querendo comparar este jogo de futebol com as guerras que os nossos soldados lutam no Iraque e no Afeganistão, está?

– Claro que estou. O esporte também é uma coisa séria, competitiva. Mais ou menos feito uma guerra. Eu não passo a mão na cabeça dessas garotas. Elas não estão mais na quinta série, quando tudo era um grande arco-íris. Agora estão na sexta. No mundo real, sacou?

Maya novamente começou a flexionar os dedos.

– As regras que estão lá naquele site...

Phil não deixou que ela terminasse. Inclinando-se a ponto de espetá-la com a aba do boné, disse:

– Estou pouco me lixando pro que está escrito no site da Liga. E se você estiver achando ruim, basta fazer uma reclamação formal com o conselho de futebol.

– Do qual você é o presidente.

Phil sorriu de orelha a orelha.

– Pois é. Mas agora, se me der licença, tenho mais o que fazer – falou, dando um tchauzinho irônico e se afastando para a beira do campo.

– Você não devia me dar as costas desse jeito – retrucou Maya.

– Por quê? Vai fazer o quê?

Maya sabia que não devia fazer o que lhe veio à cabeça. Apenas pioraria as coisas para Alexa. Melhor seria deixar aquilo de lado. No entanto, por mais que a razão lhe dissesse uma coisa, os dedos das mãos coçavam, dizendo outra. Num gesto repentino, e com a velocidade de um raio, ela se aproximou do técnico por trás, rezou para que ele estivesse usando uma cueca por baixo e puxou o calção dele até a altura dos tornozelos.

Muitas coisas aconteceram em pouquíssimo tempo.

O alvoroço foi geral nas arquibancadas. Phil, que vestia uma cuequinha branca, também reagiu como um raio, abaixando-se para subir o calção. Mas acabou se atrapalhando e desabou no chão.

Então vieram as gargalhadas. Maya ficou esperando.

Recobrando o equilíbrio, Phil rapidamente se reergueu e avançou na direção dela, roxo de raiva e vergonha.

– Filha da puta...

Maya se preparou para o que estava por vir, mas com calma, sem sair do lugar. Vendo que o outro já fechava as mãos em punho, disse:

– Isso, vem. É tudo que eu preciso pra tirar você de circulação.

Phil parou de repente e, olhando nos olhos dela, viu algo que o fez baixar os punhos.

– Você não vale a pena – disse ele.

“Basta”, pensou Maya. Àquela altura, já se arrependia de muita coisa, sobretudo da lição errada que estava dando à sobrinha, a de que as coisas se resolviam com violência. Ela, mais do que ninguém, deveria saber que não era por aí. Mas quando olhou para Alexa, já imaginando vê-la assustada com a situação ou envergonhada da tia, deparou com um sorriso nos lábios da menina. Não um sorriso de satisfação ou de prazer diante da humilhação do técnico. Um sorriso que dizia outra coisa.

“Ela agora sabe”, pensou Maya.

Maya havia aprendido esta mesma lição no Exército: os companheiros de armas precisavam saber que ela estava ali para defendê-los, e isso valia para todos. Esta era a primeira regra, a maior de todas. Amigos protegiam amigos. Quem atacasse um, atacava todos. Mas, claro, o preceito também se aplicava à vida civil.

Talvez Maya tivesse exagerado na reação, talvez não. De qualquer modo, Alexa agora sabia: fizesse sol ou chuva, sua tia estaria sempre por perto para defendê-la. Daniel havia se aproximado ao perceber a confusão, pronto para ajudar caso fosse preciso. Ele também sabia.

A mãe de ambos estava morta. O pai era um alcoólatra.

Mas com a tia, eles podiam contar.

Maya levava os sobrinhos para casa, sempre olhando à sua volta enquanto dirigia, sempre à procura de algo estranho, quase por reflexo. A certa altura, espiando pelo espelho retrovisor, teve a impressão de que estava sendo seguida por um Buick Verano vermelho.

Ainda não havia nada de muito suspeito. Fazia pouco que tinha deixado o campo de futebol, mas, ao sair, notara o mesmo Buick no estacionamento. Talvez não fosse nada. Era provável que não fosse nada. Shane vivia falando do sexto sentido dos soldados, daquelas vezes que eles simplesmente sabiam de alguma coisa. Bobagem. Ela havia acreditado na mesma balela até o dia em que teve provas do contrário, e de um jeito nada agradável.

– Tia Maya? – chamou Alexa.

– Oi, meu amor.

– Obrigada por ter ido ao jogo.

– Foi divertido, não foi? Acho que você jogou muito bem.

– Que nada. A Patty tem toda a razão. Eu sou terrível.

Daniel riu. Alexa também.

– Parem com isso, vocês dois. Mas você gosta de futebol, não gosta?

– Gosto. Mas esse vai ser meu último ano.

– Por quê?

– Porque no ano que vem eu não vou ser nem escalada pro time.

Maya balançou a cabeça, dizendo:

– Não é esse o espírito da coisa.

– Hein?

– A gente não pratica um esporte pra ser bom, pra ganhar. Mas pra se divertir, pra exercitar o corpo.

– Você acredita mesmo nisso? – perguntou Alexa.

– Acredito.

– Tia Maya...

– Fala, Daniel.

– Você também acredita no coelhinho da Páscoa?

Ele e Alexa riram novamente.

Não se contendo, Maya riu também. Depois olhou pelo espelho do carro. O Buick continuava atrás. Talvez fosse Phil, o técnico, que estivesse ali, procurando encrenca. O vermelho do carro condizia com ele, mas o tamanho não. O brutamontes decerto tinha um carro bem maior: um jipe, um Hummer, qualquer coisa assim. Desses que a sabedoria popular via como um mecanismo de compensação.

Chegando à casa de Claire (ela ainda falava como se a casa fosse da irmã), viu o Buick passar direto na rua e chegou à conclusão de que tinha se preocupado à toa. Talvez fosse o carro de vizinhos que também tinham ido ao jogo, por que não?

De repente ela se lembrou do dia em que Claire as havia chamado, ela e Eileen, para conhecer a casa. Que na época não estava muito diferente de agora: grama por cortar, flores murchas, pintura vencida, rachaduras na calçada. “Então, o que acharam?”, ela havia perguntado. “Uma espelunca”, respondera Maya, arrancando risos da irmã. “Espera só pra você ver o que isso vai virar”, dissera Claire.

Maya não levava o menor jeito para esse tipo de coisa. Simplesmente não conseguia enxergar o potencial de uma espelunca. Claire, sim. Claire tinha o dom e dali a pouco já havia transformado sua casa num lugar alegre, aconchegante, não muito diferente de um desenho infantil: o sol sempre brilhando no canto, as flores quase mais altas que a porta da frente.

Mas tudo isso havia mudado.

Eddie os recebeu à porta. Era um reflexo da casa: alegre e solar antes da morte de Claire, desbotado e triste depois.

– E aí, como foi? – perguntou ele à filha.

– Perdemos – disse Alexa.

– Puxa, que pena...

Alexa beijou o rosto do pai e correu casa adentro, seguida por Daniel. Eddie parecia aflito, mas convidou Maya para entrar também. Estava usando uma camisa de flanela vermelha com calças jeans, e mais uma vez exalava um excesso de enxaguante bucal.

– Eu poderia ter buscado os dois – foi logo dizendo, na defensiva.

– Não, não poderia – disse Maya.

– Não tinha pensado em... Quer dizer, tomei um drinque depois que você se ofereceu pra levá-los.

Maya não disse nada. As caixas ainda estavam empilhadas num canto. As coisas de Claire. Eddie ainda não havia se dado ao trabalho de levá-las para o porão ou para a garagem. Então elas continuavam ali, esquecidas no chão da sala como se dissessem: “Aqui mora um acumulador pato­lógico”.

– Sério – insistiu ele. – Nunca bebo quando sei que vou dirigir.

– Você é um príncipe, Eddie.

Maya podia ver os tufos irregulares de pelos que ele havia deixado no rosto ao se barbear naquela manhã. Claire os teria visto – jamais teria permitido que o marido se apresentasse assim, com tanto desleixo.

– Sempre tão superior...

– Não é isso.

– Maya...

– Que foi?

– Eu não bebia quando ela estava viva – balbuciou Eddie.

Sem saber o que dizer, Maya permaneceu calada.

– Quer dizer, bicava alguma coisa de vez em quando, mas...

– Eu sei – interrompeu Maya. – Bem, já vou indo. Cuida bem deles.

– Recebi um telefonema da associação de futebol.

– Ah.

– Parece que você pegou pesado com o técnico.

– Discuti as regras do jogo com ele, só isso.

– Quem lhe deu o direito de...

– Seu filho, Eddie. Ele me ligou, pedindo que eu ajudasse sua filha.

– E você acha que ajudou?

Maya não disse nada.

– Você acha que um babaca como o Phil vai deixar isso barato? Que não vai encontrar um jeito de descontar na Alexa?

– Melhor que não faça isso.

– Senão o quê? Senão você vai lá e faz outro escândalo?

– Se precisar, sim, Eddie. Vou lá e faço outro escândalo. Vou defender minha sobrinha até o dia em que ela puder se defender sozinha.

– Defender como? Puxando o calção do cara?

– Fazendo o que achar necessário fazer.

– Por acaso você está ouvindo o que está dizendo?

– Perfeitamente. Falei que vou defender minha sobrinha. Quer saber por quê? Porque se eu não fizer isso, ninguém mais vai fazer.

Eddie recuou como se tivesse levado um tapa.

– Saia já da minha casa – disse.

– Tudo bem – assentiu Maya, e foi para a porta. Antes de sair, virou-se novamente para o cunhado e disse: – Esta casa, aliás, está um chiqueiro. Dê um jeito nisso.

– Eu disse: saia! E me fará um grande favor se não voltar tão cedo!

Como é que é?

– Não quero você perto dos meus filhos.

– Você não quer... – Maya voltou na direção dele. – Dá pra explicar ­melhor?

De um segundo a outro, a raiva que o consumia deu lugar a outra coisa. Desviando o olhar, ele disse:

– Você não consegue enxergar.

– Não consigo enxergar o quê?

Ele voltou a encará-la.

– O fantasma da morte persegue você, Maya.

Maya ficou estarrecida com o que ouviu. Fez-se um breve silêncio durante o qual alguém ligou a televisão no interior da casa.

– Você está me culpando? – disse ela afinal.

Eddie abriu a boca, fechou-a, tentou novamente.

– Talvez esteja, sei lá. Talvez o fantasma da morte tenha encontrado você em algum buraco lá naquele deserto. Ou talvez tenha estado sempre dentro de você: um dia você deixou esse fantasma escapar e ele seguiu você até aqui.

– Você não está falando coisa com coisa, Eddie.

– Pode ser. Puxa, como eu gostava do Joe... Ele era um cara legal. E agora se foi também. Não quero continuar perdendo as pessoas que eu amo.

– Você sabe que eu jamais vou deixar que alguma coisa aconteça ao Daniel ou à Alexa.

– Acha que tem esse poder, Maya?

Ela não respondeu.

– Você também não teria deixado nada acontecer à Claire e ao Joe. E aí, o que você me diz?

Dedos flexionados, dedos relaxados...

– Você pirou de vez, Eddie.

– Vai embora, Maya. E não precisa voltar.