capítulo 4
UMA SEMANA DEPOIS, O Buick vermelho reapareceu.
Maya voltava para casa após um longo dia de aulas. Estava cansada, com fome, não via a hora de chegar e liberar Isabella. Mas agora o maldito Buick estava de volta.
O que fazer?
Ela ainda ponderava as possibilidades quando o carro sumiu de novo. Mais uma coincidência? Ou o motorista se dera por satisfeito, vendo que ela ia para casa? Essa última hipótese lhe parecia bem mais provável.
Ao chegar, ela encontrou Hector, o irmão de Isabella, esperando na rua ao lado da sua caminhonete. Geralmente ele dava uma carona para a irmã depois de terminar seu expediente como jardineiro.
– Olá, Sra. Burkett.
– Oi, Hector.
– Acabei de terminar os canteiros. – Ele subiu o zíper do seu moletom de capuz, fechando até o pescoço, indiferente ao calor. – Então, gostou?
– Ficaram ótimos. Posso lhe pedir um favor?
– Claro.
– A casa da minha irmã está meio caída. Se eu lhe der um extra, você toparia cortar a grama e, sei lá... fazer uma limpeza?
Hector ficou meio sem jeito com a proposta. Ele e sua família trabalhavam exclusivamente para os Burketts. Eram os Burketts que pagavam seu salário.
– Vou falar com a Judith primeiro, claro – disse Maya.
– Então tudo bem, é só avisar.
Maya já ia entrando em casa quando recebeu uma mensagem de Alexa: “O próximo jogo vai ser no sábado. Você vai?”
Desde o incidente com o técnico, ela vinha dando desculpas para não aparecer. Não conseguia tirar da cabeça a acusação de Eddie, mesmo sabendo que se tratava de um absurdo. Achava, claro, que ele estava sendo irracional com toda aquela história de “fantasma da morte”, mas talvez um pai tivesse o direito de ser irracional em nome dos filhos, pelo menos por um tempo.
Anos antes, com o nascimento de Daniel, ela havia sido escolhida por Claire e Eddie como guardiã do menino, e de todos que viessem depois dele, na eventualidade de que algo acontecesse a ambos os pais. No entanto, mesmo na época, quando Claire nem sequer imaginava o triste fim que o destino lhe reservava, ela havia puxado Maya de lado para dizer: “Se alguma coisa acontecer comigo, Eddie não vai segurar a onda. É um homem bom, mas não é forte. Você precisa ficar do lado dele.” Não precisara acrescentar nada do tipo “Promete?”. Sabia que podia contar com a irmã.
Maya, por sua vez, levara a sério o pedido de Claire e não fugira da responsabilidade. Estava disposta a assentir ao desejo de Eddie por um tempo, mas até o próprio Eddie sabia que aquele afastamento não poderia durar muito.
Ela respondeu à mensagem da sobrinha: “Puxa, não vai dar. Muito trabalho. Saudades!”
Enquanto contornava a casa rumo à porta dos fundos, lembrou-se daquele dia na base de Arifjan, no Kuwait. Por lá era meio-dia (e nos Estados Unidos, cinco da manhã) quando ela recebeu a ligação: “Sou eu”, dissera Joe com a voz embargada. “A notícia não é boa.”
Ela ainda tivera tempo, naquele átimo de torpor que precedia o real entendimento dos fatos, de refletir sobre a estranheza da situação: de modo geral, esse tipo de notícia viajava no sentido contrário, isto é, do Oriente Médio para os Estados Unidos. Claro, nunca coubera a ela fazer as notificações de óbito. Havia todo um protocolo em torno da coisa. Um oficial era destacado para visitar pessoalmente a família dos mortos: acompanhado de um pastor, e trajando seu uniforme azul, batia à porta das casas e recitava de maneira solene o seu texto fúnebre. Uma tarefa horrível para a qual ninguém se oferecia por livre e espontânea vontade, mas que todos acatavam por livre e espontânea pressão, tal como os próprios soldados costumavam dizer. “Que foi?”, ela perguntara a Joe, para depois enfrentar o pior de todos os silêncios. “É a Claire”, ouvira afinal. E naquele mesmo instante sentira algo desmoronar na alma.
Entrando em casa, ela deparou com Lily desenhando, sentada no sofá, e não se importou quando a filha nem sequer ergueu os olhos na sua direção. Lily era daquelas que se concentravam no que faziam, e naquele momento o desenho era o foco de toda a sua atenção. Isabella se levantou devagarzinho, como se não quisesse interromper o transe artístico da menina, e foi ao encontro de Maya, que disse:
– Obrigada por ter ficado até mais tarde.
– Sem problemas.
Lily enfim levantou a cabeça e sorriu para ambas. Elas sorriram e acenaram de volta.
– Como foi o dia dela?
– Ótimo – disse Isabella, e acrescentou num tom compungido: – Ela ainda não faz a menor ideia...
– Ok. Então... até amanhã, Isabella. Obrigada.
– Até amanhã, Sra. Burkett.
Assim que ouviu a caminhonete de Hector se afastar, Maya sentou-se ao lado da filha e conferiu as imagens gravadas pela câmera secreta do porta-retratos. Fazia isso quase todos os dias, apenas para ver se Isabella não estava... não estava o quê? Na realidade nunca havia nada de relevante para ver naquelas gravações. Além disso, ela achava estranho ver a si mesma brincando com Lily, do mesmo modo que achava estranha a presença constante daquela câmera na prateleira. As pessoas geralmente agiam de forma diferente quando sabiam que estavam sendo filmadas, e ela agora se perguntava se não fazia o mesmo quando interagia com a filha naquele cômodo da casa. Provavelmente sim.
– O que você está desenhando aí? – perguntou ela.
– Você não tá vendo?
Maya examinou os rabiscos com mais atenção.
– Não, o que é?
Lily respondeu com um beicinho.
– Você não vai me contar? – insistiu Maya.
– Uma vaca e uma lagarta.
– A vaca é verde?
– Essa aí é a lagarta.
Por sorte o telefone tocou nesse exato momento. Era Shane.
– E aí, como você está? – perguntou ele.
– Bem.
Silêncio. Três segundos se passaram antes de Shane se manifestar outra vez.
– Estou adorando esse silêncio constrangedor, e você?
– Eu também. Então, o que você manda?
Eles eram próximos demais para esse tipo de conversa fiada. Conversas fiadas não faziam parte do repertório dos dois.
– A gente precisa conversar – disse Shane.
– Então vai, conversa.
– Posso dar uma passada aí, se você quiser. Está com fome?
– Não muita – mentiu ela.
– Posso levar uma pizza de frango picante. Da Best of Everything.
– Aí já é covardia. Vem logo – disse Maya, e desligou.
Na base de Arifjan eles serviam pizza em quase todas as refeições, mas o molho não passava de um ketchup aguado e a massa tinha a consistência mole de uma pasta de dente. Ela agora só comia pizzas de massa fina e crocante, e ninguém as fazia melhor do que a Best of Everything.
Quando Shane chegou, eles foram com Lily para a cozinha e devoraram a pizza. Lily adorava Shane. Ele sempre fazia muito sucesso com as crianças. Era com os adultos que costumava ter problemas. Algo nele desconcertava as pessoas, sobretudo aquelas mais ligadas em aparências e sorrisos falsos. Um jeito peculiar de reagir às coisas, talvez um excesso de franqueza. Shane não tinha a menor paciência para as abobrinhas e encenações da sociedade moderna.
Terminada a pizza, Lily insistiu que ele a colocasse para dormir. Shane fez beicinho e disse:
– Mas aquelas suas historinhas são tão chaaaatas...
Lily caiu na gargalhada. Tomou-o pela mão e começou a arrastá-lo na direção da escada.
– Não, não, não! Por favor, não! – gritou Shane, se jogando no chão.
Quanto mais ele protestava, mais Lily ria, e foram dez minutos até que ela conseguisse levá-lo para o quarto. Shane contou sua história e conseguiu apagá-la tão depressa que Maya chegou a desconfiar que ele tivesse medicado a menina com alguma coisa.
– Puxa, foi rápido – disse ela assim que ele voltou.
– O plano deu certo.
– Que plano?
– Fazer com que ela me arrastasse escada acima. Estava exausta quando deitou.
– Muito esperto da sua parte.
– Pois é, eu sei.
Maya pegou duas latinhas de cerveja na geladeira, entregou uma delas a Shane e saiu com ele para a piscina. Já havia escurecido. Estava quente e muito úmido, mas nada de extraordinário para quem já havia passado pelo calor de um deserto com vinte quilos de equipamento nas costas.
– A noite está bonita... – disse Shane.
Havia algo entre eles, uma espécie de abismo, e Maya não estava gostando nem um pouco.
– Para com isso – disse ela.
– Com o quê?
– Você está me tratando como... uma viúva. Pode parar.
– Tudo bem. Foi mal.
– Então, sobre o que exatamente você queria conversar?
Shane bebeu da cerveja, depois disse:
– Talvez não seja nada, mas...
– Mas?
– Tem um relatório de inteligência circulando por aí. – Shane ainda estava na força, chefiando o departamento local da Polícia Militar. – Parece que Corey Rudzinski está de volta aos Estados Unidos – disse ele, e ficou esperando a reação de Maya.
Ela deu um demorado gole na cerveja e não disse nada.
– Achamos que ele atravessou a fronteira canadense há duas semanas.
– Não tem um mandado de prisão contra ele?
– Tecnicamente não.
Corey Rudzinski era o fundador do Boca no Trombone, um site dedicado a denúncias anônimas capazes de desmascarar atividades ilegais por parte do governo e das grandes empresas. O caso daquele governante sul-americano que vinha recebendo propinas da estatal de petróleo? Pois então. A denúncia havia sido feita por meio do site. Os e-mails racistas da polícia nova-iorquina? Mesma coisa. A violência contra os detentos no presídio de Idaho? O acidente nuclear escamoteado na Ásia? A contratação de garotas de programa pelos seguranças do presidente? Boca no Trombone.
E, claro, os civis que haviam morrido por conta do excesso de zelo de uma piloto de helicópteros do Exército americano?
Isso mesmo. Boca no Trombone.
Todos esses “furos de reportagem” eram uma cortesia dos denunciantes anônimos do site de Corey Rudzinski.
– Maya?
– Não tem nada que ele possa fazer contra mim agora.
– Hein? – disse Shane, intrigado.
– Isso mesmo que você ouviu. Ele já divulgou a gravação.
– Não toda.
– Não estou nem aí, Shane – retrucou Maya, e deu mais um gole na cerveja.
– Tudo bem então – disse ele, recostando-se na cadeira. – Mas por que você acha que ele não divulgou o áudio também? – A pergunta assombrava Maya muito mais do que ele podia imaginar. – O cara é um delator obsessivo. Que motivo poderia ter pra não divulgar o áudio?
– Sei lá.
Shane olhou ao longe. Maya conhecia aquele olhar.
– Aposto que você tem uma teoria – disse ela.
– Tenho.
– Vai, desembucha.
– Corey está esperando o momento certo – disse Shane. – Já conseguiu fazer um barulho na imprensa com aquela primeira divulgação. Assim que precisar de mais publicidade, vai divulgar o resto.
Maya balançou a cabeça sem dar muito crédito à tese do amigo.
– O homem é um tubarão, Maya. E os tubarões precisam estar sempre comendo alguma coisa.
– Como assim?
– Pra que o negócio dele funcione, Corey Rudzinski precisa não só derrubar os denunciados, mas fazer isso de um jeito que lhe garanta o máximo de publicidade.
– Shane...
– Diga.
– Realmente não me importo. Já estou fora da força. Já fiquei... viúva. Ele que faça o que bem entender.
Maya ficou pensando se realmente havia conseguido convencer o amigo com sua valentia. Talvez sim. Afinal, ele não sabia da verdade toda.
– Tudo bem, tudo bem – disse Shane. Terminou sua cerveja, depois perguntou à queima-roupa: – E aí, você vai ou não vai me contar o que está acontecendo mesmo?
– Do que você está falando?
– Fiz aquele teste que você pediu. Sem exigir explicações.
– Ótimo. Obrigada.
– Não vim aqui pra ganhar agradecimentos, você sabe disso.
– É, eu sei.
– Precisei quebrar o meu juramento de militar pra fazer aquele teste. Mais que isso. Precisei infringir a lei. Você sabe disso, não sabe?
– Será que a gente pode falar de outra coisa?
– Você sabia que o Joe estava correndo perigo?
– Shane...
– Ou será que o alvo verdadeiro era você?
Maya fechou os olhos por um instante, e os ruídos daquela noite não tardaram a chegar.
– Maya?
Ela reabriu os olhos, virou-se lentamente para Shane e disse:
– Você confia em mim?
– Esta pergunta chega a ser um insulto. Você salvou a minha vida. Você está entre os melhores soldados que conheci em toda a minha vida. Entre os mais valentes.
– Os melhores e mais valentes voltaram pra casa dentro de uma caixa.
– Não é verdade, Maya. Muitos realmente pagaram o preço mais alto de todos, mas quase sempre por uma questão de falta de sorte. Estavam no lugar errado, no momento errado. Nós dois sabemos disso.
Shane tinha razão. A guerra não era uma meritocracia. Um combatente não tinha mais chances de sobreviver só porque era mais competente que os outros. Havia uma grande dose de acaso nas fatalidades de uma guerra.
– Você vai insistir em fazer isso sozinha, não vai? – perguntou ele baixinho na escuridão.
Maya não respondeu.
– Você vai atrás dos assassinos do Joe – disse Shane, afirmando mais do que perguntando.
Seguiu-se um demorado silêncio, tão pesado quanto a umidade da noite. Até que Shane disse:
– Você sabe que pode contar comigo se precisar de ajuda, não sabe?
– Sei. – E depois: – Shane, você confia em mim?
– Até de olhos fechados.
– Então não toca mais neste assunto.
Antes que Shane fosse embora, Maya entregou-lhe uma anotação e disse:
– Preciso de mais um favorzinho seu.
– O que é isto?
– A placa de um Buick Verano vermelho. Preciso saber quem é o proprietário.
– Não vou nem perguntar do que se trata. Mas fique você sabendo que essa é a última vez que faço um “favorzinho” às cegas – falou, então despediu-se com um beijinho paternal na testa de Maya e saiu.
Maya conferiu a filha que dormia, trocou de roupa e seguiu para a sala de ginástica ultramoderna que Joe havia instalado num dos quartos da casa logo depois da mudança. Fez um pouquinho de musculação (agachamentos, abdominais, supino), depois foi para a esteira ergométrica. Sempre achara aquela casa grande demais, chique demais. Não que ela tivesse tido uma família pobre, longe disso, mas aquele tipo de riqueza não lhe agradava muito. Ela nunca havia se sentido realmente confortável naquele casarão, mas com os Burketts era assim: ninguém jamais deixava o enclave familiar, e as casas do condomínio iam só aumentando com o tempo.
Dali a pouco ela já estava suando em bicas. Sentia-se bem melhor quando exercitava o corpo. Terminada a esteira, jogou uma toalha em torno do pescoço, pegou uma cerveja na geladeira e roçou a garrafa na testa para se refrescar. Um alívio.
Em seguida foi para o computador e entrou no Boca no Trombone. Outros sites do mesmo tipo, como o WikiLeaks, tinham um layout bem mais simples e discreto, geralmente monocromático, padronizado, didático. Corey Rudzinski, por sua vez, havia optado por um visual bem mais estimulante. Seu lema vinha logo no alto: “nós fornecemos o trombone, e você... a boca”. Cores fortes emolduravam uma série de thumbnails de vídeos. E enquanto os sites da concorrência procuravam ficar longe das hipérboles, o de Corey era assumidamente sensacionalista, escolhendo as palavras com todo o cuidado para fisgar o maior número possível de leitores: “As dez maneiras que o governo tem para vigiar você – a sétima vai deixá-lo de cabelos em pé!”; “Wall Street só quer saber do seu dinheiro... e você nem imagina o que acontece por debaixo dos panos”; “Você pensa que a polícia está na rua para protegê-lo? Você não sabe de nada...”; “Eles matam civis. Por que os generais quatro-estrelas odeiam o mundo”; “Vinte sinais de que seu banco está roubando você”; “As pessoas mais ricas do mundo não pagam impostos. Você pode fazer como elas”; “Com que déspota você se parece mais? Faça o nosso teste”.
Maya entrou na página de arquivo do site e encontrou seu vídeo. Não sabia ao certo por que entrara no site de Corey para visualizá-lo. Poderia ter entrado no YouTube, por exemplo, onde havia uma dezena de variantes, mas por algum motivo preferira ir direto à fonte.
Alguém tinha mandado para Corey as imagens daquilo que havia começado como uma missão de resgate. Quatro combatentes (três dos quais ela conhecia pessoalmente) haviam sido mortos numa emboscada em Al Qa’im, não muito longe da fronteira do Iraque com a Síria. Outros dois ainda estavam vivos, mas acuados pelo fogo inimigo. Um SUV preto avançava na direção deles. A bordo de um helicóptero de artilharia Little Bird MH-6, ela e Shane recebiam por rádio os pedidos de socorro dos dois soldados, ambos apavorados, ambos muito jovens, a julgar pela voz. Decerto tão apavorados e jovens quanto os quatro que já tinham morrido.
Assim que avistaram o alvo, eles ficaram esperando pela confirmação do JOC (Joint Operations Command, ou Comando de Operações Conjuntas), mas, ao contrário da crença geral, os equipamentos militares nunca eram cem por cento infalíveis: o sinal da comunicação com a equipe estacionada em Al Asad estava péssimo, intermitente. No entanto, o sinal com os dois soldados acuados estava perfeito. Eles suplicavam para serem salvos. Maya e Shane ainda esperavam por uma resposta do JOC quando ouviram os gritos dos dois rapazes.
Foi então que o MH-6 de Maya acertou o SUV preto com um míssil AGM-114 Hellfire. O SUV se reduziu a uma grande bola de fogo, e a infantaria avançou para resgatar os dois sobreviventes.
À época tudo parecera bastante sensato e regulamentar.
O celular de Maya tocou, e ela fechou o navegador rapidamente, como se estivesse vendo um site de pornografia. O identificador de chamadas dizia “Farnwood”, o nome da mansão dos Burketts.
– Alô?
– Maya, aqui é a Judith.
A mãe de Joe. Tinha perdido o filho pouco mais de uma semana antes, ainda falava com o mesmo tom pesado, como se cada palavra lhe custasse um esforço, uma dor.
– Oi, Judith.
– Eu só queria saber como vocês estão, você e a Lily.
– Obrigada pela gentileza. Estamos indo, do jeito que dá.
– Ótimo – disse Judith. – Também liguei pra lembrar que a Heather Howell lerá o testamento do Joe na biblioteca Farnwood amanhã às nove horas em ponto.
Os ricos. Até as bibliotecas tinham nome.
– Estarei lá, obrigada.
– Quer que eu mande um carro pra te buscar?
– Não, não precisa.
– Por que você não traz a Lily também? Estou morrendo de saudades dela.
– Amanhã a gente vê, ok?
– Claro, claro. É que... estou louca pra revê-la. Ela é tão parecida com o... Bem, amanhã nos vemos.
Judith conseguiu desligar segundos antes de se desmanchar em lágrimas. Maya ficou onde estava por um segundo. Talvez atendesse ao pedido dela e levasse Lily para o encontro do dia seguinte. Lily e Isabella. Falando na babá, fazia dois dias que ela, Maya, não conferia as imagens da câmera secreta. Paciência. Ela estava cansada, não via a hora de tomar um banho. Aquilo podia ficar para depois.
De banho tomado, Maya sentou-se na poltrona do quarto (a poltrona de Joe) e abriu seu livro, uma nova biografia dos irmãos Wright. Fez o que pôde para se concentrar na leitura, mas não conseguiu.
Corey Rudzinski estava de volta aos Estados Unidos. Seria uma coincidência?
“Você vai insistir em fazer isso sozinha, não vai?”
Maya detectou os primeiros sinais de advertência. Fechou o livro e rapidamente se jogou na cama. Apagou as luzes e esperou.
Primeiro veio o suor, depois as visões. Ou melhor, os ruídos. Eram eles que a assombravam. A cacofonia incessante dos rotores do helicóptero, as vozes entremeadas de estática no rádio, os disparos e, claro, os ruídos humanos: as gargalhadas, as gozações, os berros de pânico. Ela tapou os ouvidos com o travesseiro, mas isso só piorou as coisas. Porque aqueles ruídos faziam muito mais do que apenas ecoar ou esfuziar na sua cabeça. Eles crivavam sua massa cerebral feito os estilhaços quentes de uma granada, aniquilando sonhos e pensamentos.
Maya mordeu o lábio inferior para não gritar. Sabia que a noite seria longa e difícil. Sabia que precisaria de ajuda. Então abriu a gaveta do criado-mudo, tirou um frasco de Klonopin e engoliu duas cápsulas.
Os comprimidos não deram fim aos ruídos, mas conseguiram abafá-los o suficiente para que ela enfim adormecesse.