capítulo 5
A PRIMEIRA COISA QUE VEIO à cabeça de Maya ao acordar: verificar a câmera escondida.
Ela sempre acordava pontualmente às 4h58. Para alguns ela possuía um dos tais despertadores biológicos, mas se realmente fosse esse o caso, o seu havia emperrado naquele horário ingrato e não dispunha de um botão de desligar, nem mesmo naquelas noites em que ela dormia mais tarde, já pensando em ficar na cama uns minutinhos a mais na manhã seguinte. Por mais que ela tentasse adiantar ou atrasar o maldito relógio, não dava outra: às 4h58 ela estava acordada.
Isso havia começado ainda no campo de treinamento militar, onde o toque de despertar era às cinco. A maioria das recrutas resmungava na cama, praguejando para quem quisesse ouvir. Maya não. Maya já estava acordada dois minutos antes, já preparada para a chegada raramente agradável da sargento à caserna.
Apesar da dificuldade para adormecer na véspera, ela havia tido uma noite de sono muito pesado. Por mais estranho que pudesse parecer, os demônios que a rondavam na vigília raramente davam as caras no sono: ela nem sequer lembrava a última vez que tinha tido um pesadelo ou que tinha acordado no meio da noite, empapada de suor. Se sonhava, nunca se lembrava dos sonhos depois, nem quando eram ruins. Tinha um subconsciente generoso o bastante para poupá-la desse sofrimento.
Ela pegou um elástico de cabelo no criado-mudo e fez um rabo de cavalo. Joe adorava vê-la com os cabelos presos. “Você tem uma bela estrutura óssea”, ele costumava dizer. “Quanto mais eu puder ver do seu rosto, melhor.” Noutras ocasiões, ele também gostava de brincar com o rabo de cavalo dela, por vezes até chegava a puxá-lo, mas isso já era outra história.
Maya enrubesceu com a lembrança.
No telefone não havia nada de importante, então ela desceu da cama e saiu para o corredor. Lily ainda dormia, o que não era nenhuma novidade. No departamento dos relógios biológicos ela havia puxado bem mais ao pai: gostava de esticar o sono até o último segundo possível.
Ainda estava escuro do lado de fora. Na cozinha, o forno ainda exalava o cheirinho bom de algo preparado na véspera. Por Isabella, claro. Maya não tinha a menor vocação culinária. Jamais se aventurava no fogão, a menos que fosse obrigada. Muitas das suas amigas eram chefs de mão cheia, o que ela achava estranho, porque desde o início dos tempos a cozinha era tida como uma tarefa maçante, algo a ser evitado. Nos livros de história raramente se lia a respeito de algum monarca ou grão-senhor que gostasse de cozinhar. Comer? Claro. Cozinhar? Não. Isso era uma tarefa menor, destinada aos criados.
Maya cogitou fazer uns ovos mexidos com bacon, mas concluiu que despejar leite sobre uma tigela de cereal era muito mais fácil. Sentou-se à mesa e procurou não pensar na leitura do testamento de Joe, prevista para as nove. Não esperava nenhuma surpresa. Ela havia assinado um acordo nupcial (Joe: “É uma coisa dos Burketts. Se um de nós não assina, é deserdado”), e ele, no nascimento de Lily, havia estipulado que na eventualidade da sua morte todos os seus bens iriam para um fundo fiduciário em nome da filha, o que para Maya estava ótimo.
Não havia nenhum cereal no armário. Merda. Isabella vinha reclamando do excesso de açúcar nos cereais, mas não teria chegado ao ponto de jogar a caixa no lixo, teria? Maya foi para a geladeira, mas parou no meio do caminho.
Isabella.
A câmera escondida.
Ela havia acordado pensando nisso, o que era estranho. Tudo bem, ela conferia o cartão de memória quase todos os dias, mas não todo santo dia. Não achava necessário. Até então não tinha detectado nada de questionável no trabalho da babá. Geralmente assistia às gravações com o dedo espetado no botão de avançar. Nelas, Isabella aparecia sempre sorrindo, sempre feliz. Isso sim era um pouco preocupante, pois a garota não era exatamente uma figura solar. Realmente se iluminava quando via Lily, mas de modo geral tinha o rosto carrancudo de um totem indígena. Não era lá muito afeita a sorrisos.
E no entanto estava sempre sorrindo nas imagens gravadas. Era a babá perfeita o tempo todo e, vamos combinar, ninguém é perfeito. Ninguém. Todos nós temos os nossos momentos de fraqueza, certo?
Seria possível que Isabella soubesse da câmera escondida no porta-retratos?
Seu laptop, com o adaptador que Eileen lhe dera de presente, estava na mochila. Durante um tempo ela havia usado apenas a mochila militar que herdara como capitã (essencialmente um saco de lona cheio de bolsos), mas depois, vendo que muita gente comprava esse mesmo tipo de mochila na internet, começara a achá-la meio vulgar e um tanto chamativa também. Por isso Joe lhe havia presenteado com uma mochila da Tumi, de couro, com um compartimento especial para laptops. Uma mochila cara, mas nem tanto se comparada ao absurdo que aquelas pessoas vinham pagando por uma mochila militar na internet.
Ela pegou o porta-retratos na prateleira e tirou o cartão de memória. A hipótese de que Isabella tivesse descoberto a engenhoca nem era tão remota assim, ela pensou. Qualquer babá mais perspicaz, e Isabella era perspicaz, se perguntaria por que a patroa havia colocado um novo porta-retratos na prateleira da sala justo no dia em que enterrara o marido.
Ou talvez não. Como saber?
Maya encaixou o cartão no adaptador, depois plugou o adaptador na entrada USB do laptop. Por que estaria assim, tão aflita? Se estivesse correta na suspeita de que Isabella havia descoberto a câmera secreta, veria apenas o de sempre: a garota e seu comportamento exemplar. Isabella, sabendo-se vigiada, não seria burra de fazer algo suspeito. Aliás, esse era o espírito da coisa: a câmera só fazia sentido se permanecesse secreta.
Maya apertou o play. A câmera possuía um sensor de movimento, portanto a gravação iniciou apenas quando Isabella entrou na sala com seu café na mão, claro, num copo de plástico com tampa para evitar o risco de derramar café quente na menina sob seus cuidados. Ela recolheu a girafa de pelúcia que Lily havia deixado no chão e voltou para a cozinha, saindo de quadro.
– Mamãe!
Não havia áudio na gravação, então Maya se virou para trás e deparou com a filha no alto da escada que descia dos quartos. Sempre se enternecia quando via sua Lily. Torcia o nariz para muita coisa que lia ou ouvia sobre a experiência de ser mãe, mas não para aquilo, não para aquele sentimento que a acometia quando olhava para a menina, quando o mundo à sua volta se apagava para dar lugar apenas ao rostinho dela. Isso ela compreendia muito bem.
– Bom dia, meu amor.
Maya lembrava-se de ter lido em algum lugar que as crianças de 2 anos possuíam um vocabulário de aproximadamente cinquenta palavras. Achava que devia ser isso mesmo, mas intuía que entre essas cinquenta a mais frequente devia ser a palavra “mais”. Correndo escada acima, sem se dar ao trabalho de abrir o portãozinho protetor, ela ergueu a filha em seus braços. Lily trazia consigo um daqueles livros indestrutíveis de papelão, uma versão simplificada do clássico do Dr. Seuss: Um peixe, dois peixes, peixe vermelho, peixe azul. Ultimamente ela vinha arrastando esse livro para todo canto, assim como a maioria das outras crianças arrastava um ursinho de pelúcia. Que ela preferisse um livro a um ursinho fazia Maya inflar de orgulho.
– Quer que a mamãe leia pra você, quer?
Lily fez que sim com a cabeça.
Maya voltou com ela para a mesa da cozinha. O vídeo ainda estava passando na tela do computador. Uma coisa que Maya havia aprendido: crianças pequenas adoravam repetição. Ainda não queriam experiências novas. Lily tinha uma coleção inteira de livros de papelão. Ela, Maya, gostava especialmente da força narrativa dos livros de P. D. Eastman, como Você é minha mãe? e Peixe fora d’água: ambos incluíam passagens tenebrosas e finais surpreendentes. Lily podia ficar horas ouvindo as histórias de Eastman (qualquer livro era melhor do que livro nenhum), mas invariavelmente acabava voltando para a riqueza das rimas e ilustrações dos livros do Dr. Seuss. Com toda a razão.
Maya olhou de relance para o vídeo no computador: no sofá da sala, Isabella ia dando biscoitos na boca de Lily, um de cada vez, uma amestradora alimentando sua foca com peixinhos. Maya buscou uma lata dos mesmos biscoitos na despensa, espalhou alguns sobre a mesa e ficou observando enquanto a filha os pegava um a um.
– Quer mais alguma coisa? – perguntou.
Lily balançou a cabeça, depois apontou para o livro.
– História.
– Não é assim que se fala. É assim: “Mamãe, por favor, me conta uma...” – Maya não se deu ao trabalho de terminar. Abriu o livro e foi virando as páginas: – Um peixe... Dois peixes... – Já estava quase chegando ao peixe gordo com o chapéu amarelo quando notou algo na tela do computador e interrompeu a leitura.
– Mais, mamãe, mais!
Maya praticamente se debruçou sobre o computador. A gravação havia reiniciado, mas alguém bloqueava a lente por completo. Num primeiro momento Maya pensou que fosse a própria Isabella que tivesse parado de costas diante do porta-retratos, mas não podia ser. A garota não era alta o suficiente. Talvez pudesse bloquear a lente com a cabeça, não com as costas. Além disso, estava usando uma blusa vermelha no dia anterior, e o tecido diante da lente era verde. Verde-floresta.
– Mamãe?
– Só um minuto, filha.
Fosse lá quem fosse, a pessoa se afastou do porta-retratos e sumiu de vista. Maya agora podia ver o sofá, Lily sozinha nele, folheando aquele mesmo livro, pensando que lia alguma coisa.
Maya esperou.
Alguém surgiu da esquerda, vindo da cozinha. Não era Isabella.
Era um homem.
Ou pelo menos parecia ser um homem. Ainda estava muito próximo da câmera, e num ângulo que escondia seu rosto. Por um segundo, Maya pensou que fosse Hector que tivesse entrado para um café, um copo d’água ou algo assim, mas na véspera o jardineiro estava usando um macacão com um moletom por cima, e o homem do vídeo estava de calças jeans e uma camisa verde... floresta.
Na tela, Lily ergueu os olhos para o suposto homem e abriu um sorriso largo para ele, o que teve sobre Maya o efeito de uma pedrada no peito. Lily sempre fora uma criança mais arredia com desconhecidos. Portanto, quem quer que estivesse ali, quem quer que estivesse usando aquela camisa verde-floresta que lhe parecia tão familiar...
O homem foi caminhando para o sofá, ainda de costas para a câmera, ocultando Lily. Apavorada, Maya chegou a se inclinar para a esquerda e para a direita como se com isso pudesse ver a filha e se certificar de que ela continuava segura no mesmo lugar, lendo seu Dr. Seuss como antes. Era como se a menina estivesse correndo algum tipo de perigo e que esse perigo se estenderia até que ela, Maya, pudesse revê-la e ficar de olho na filha. Uma tolice, claro, essa história de perigo. Maya sabia disso. Estava assistindo a algo que já havia acontecido, não a uma transmissão ao vivo, e Lily estava bem ali a seu lado, inteira e aparentemente feliz. Pelo menos até notar que a mãe havia emudecido diante do computador.
– Mamãe?
– Só um segundo, meu amor.
Estava claro que o homem de camisa verde-floresta (era assim que ele sempre se referia àquela camisa, que não era verde, nem verde-escura, nem verde-musgo, mas verde-floresta) não havia feito nada com a menina, de modo que aquela sua aflição não passava de um grande despropósito, um excesso de zelo.
Na tela, o homem se moveu para o lado.
Maya enfim podia ver Lily de novo. Pensou que agora seus medos fossem embora, mas não foi isso que aconteceu. O homem se acomodou no sofá bem ao lado de Lily, de frente para a câmera, sorrindo.
Por algum motivo, Maya não gritou.
Dedos flexionados, dedos relaxados...
Maya, sempre lúcida e calma no campo de batalha, sempre encontrando um meio de controlar os nervos e impedir que a adrenalina a paralisasse, procurou fazer o mesmo agora. Aquelas roupas que ela conhecia tão bem, os jeans, mas sobretudo a camisa verde-floresta, deveriam tê-la preparado para a possibilidade, ou melhor, para a “impossibilidade” daquilo que ela estava vendo. Portanto não gritou. Nem sequer grunhiu de susto. Mas algo em seu peito dificultava a respiração. O sangue parecia correr frio nas veias. Os lábios tremiam ligeiramente.
Na gravação, Lily se arrastou para o colo do pai. Que em princípio estava morto.