capítulo 23

MAYA LEVOU LILY PARA a cama, esperou que ela voltasse a dormir, depois cogitou examinar a câmera escondida para ver se o Wi-Fi estava acionado. Decidiu que por enquanto talvez fosse melhor não dar nenhuma bandeira para a pessoa, fosse lá quem ela fosse, que a estivesse espionando.

Espionando. Uau. Se isso não era paranoia...

Ela e Eileen foram comer sua comida chinesa na sala de jantar, bem longe dos olhos bisbilhoteiros da câmera escondida. Maya enfim contou o que tinha visto na maldita gravação, contou sobre Isabella... depois interrompeu o confessionário porque achou que estava sendo imprudente.

Fato: era Eileen quem havia colocado aquela câmera na sua casa.

Maya tentou deixar a desconfiança de lado, mas não conseguiu: ela continuava zumbindo no seu ouvido. Talvez fosse possível baixar o volume, mas não a desligar por completo.

– O que você pretende fazer sobre o Robby? – perguntou ela.

– Entreguei cópias daquelas fotos pro meu advogado. Ele falou que, sem provas, não há nada que eu possa fazer. Desativei o Wi-Fi de todos os meus porta-retratos. E contratei uma empresa pra ver se minha rede é segura.

Um bom plano, ao que parecia.

Dali a meia hora ela acompanhou Eileen até o carro, depois ligou para Shane.

– Preciso de mais um favor.

– Você não pode ver – disse ele –, mas estou bufando teatralmente.

– Preciso de alguém de confiança pra fazer uma varredura aqui em casa. Pra ver se não tem nenhum grampo, nenhuma câmera escondida, essas coisas – disse Maya, depois contou sobre o que tinha acontecido com ­Eileen.

– Você acha que sua câmera também foi hackeada?

– Sei lá. Você conhece alguém que possa me ajudar?

– Conheço. Mas, pra ser honesto, isso tudo está me parecendo meio...

– Paranoico? – ela completou por ele.

– É. Por aí.

– Foi você que chamou o Dr. Wu?

– Maya...

– Anda, responde.

– Você não está bem.

Ela permaneceu muda.

– Maya?

– Eu sei – disse ela afinal.

– Não tem nada de errado em precisar de ajuda.

– Preciso resolver essa história primeiro.

– Que história exatamente?

– Shane, por favor...

Seguiu-se outro silêncio, e depois:

– Estou bufando de novo.

– Teatralmente?

– E por acaso tem outro jeito de bufar? Amanhã de manhã dou uma passada aí com o pessoal pra fazer essa varredura que você pediu. – Shane pigarreou, depois disse: – Maya, você tem armas em casa?

– O que você acha?

– Pergunta retórica. A gente se vê amanhã – disse ele, e desligou.

Maya não estava nem um pouco disposta a enfrentar mais uma noite de pesadelos e flashbacks. Então, em vez de dormir, decidiu voltar sua atenção para a viagem de Claire até a Filadélfia.

Lily dormia profundamente. Maya sabia que devia acordá-la para tirar as roupas sujas que ela havia usado o dia inteiro, dar um banho na menina e vestir um pijaminha limpo. Isso era o que fariam as “boas mães”, e por um instante Maya chegou a sentir na pele o olhar de censura delas. Mas essas outras mães não precisavam ter armas em casa, muito menos lidar com assassinatos na família, certo? Nem sequer tinham consciência de que mundos como o dela, banhados de sangue, podiam viver lado a lado com os seus próprios mundinhos de aulas de natação, aulas de caratê, aulas disso e daquilo outro. Nem sequer imaginavam que na casa vizinha alguém poderia estar lidando com a morte e o terror.

Seria possível que alguém realmente a estivesse espionando?

Por ora não havia muito que ela pudesse fazer. Havia outras coisas, coisas mais importantes, que precisavam da sua atenção imediata, então ela guardou a paranoia numa caixa e abriu o laptop. Se alguém havia hackeado o Wi-Fi da câmera escondida, nada impedia que a rede inteira estivesse sendo hackeada também. Na realidade isso ainda lhe parecia uma hipótese meio absurda, um exagero, mas, apenas por garantia, ela mudou o nome e a senha da sua rede e usou uma VPN (Rede Privada Virtual) para navegar na internet.

Em tese isso deveria bastar, mas como saber?

Ela entrou no Google e pesquisou o nome de Andrew Burkett. Como já imaginava, havia inúmeros deles: um professor, um vendedor de carros usados, um universitário. Ela acrescentou outras palavras-chaves no campo de busca e pesquisou as entradas mais antigas. Alguns artigos sobre a morte de Andrew começaram a aparecer. Um jornal importante dava a seguinte manchete: herdeiro dos burketts morre ao cair de iate. Não era um barco, claro, mas um iate. Não uma pessoa, mas um herdeiro. Outros jornais haviam usado essa mesma palavra com Joe: “herdeiro”. Os ricos tinham até uma palavra especial para os seus descendentes.

Maya foi abrindo e lendo outros artigos. Ninguém sabia exatamente onde Andrew tinha caído no oceano Atlântico, mas naquela noite o iate da família (Lucky Girl) havia partido de Savannah, Geórgia, com destino ao porto de Hamilton, nas ilhas Bermudas. Um bom pedaço de mar.

Segundo as matérias, Andrew fora visto pela última vez no deque superior do iate, mais ou menos a uma hora da madrugada do dia 24 de outubro, após uma longa noite de festa com “parentes e amigos”. Fora dado por desaparecido às seis da manhã. Joe havia dito que a bordo estavam três amigos do time de futebol da escola, mais a irmã deles, Caroline. Nenhum dos pais estavam presentes: Judith e Joseph, junto com o caçula Neil, já esperavam na ilha, instalados num hotel de luxo. Os únicos adultos a bordo eram os da extensa tripulação e... Opa! Segundo um dos artigos, Rosa Mendez, a mãe de Isabella, também estava lá, basicamente para “tomar conta da pequena Caroline”.

Maya releu os trechos mais importantes. Ruminou-os por alguns minutos, depois continuou.

O corpo de Andrew havia sido encontrado no dia seguinte ao da constatação do seu desaparecimento. Todos os artigos falavam de afogamento como causa da morte. Nenhuma suspeita de crime ou suicídio.

Tudo bem, mas e agora?

Maya digitou o nome de Andrew com as palavras “Franklin Biddle Academy”. O site da escola se abriu com um link para a comunidade online de ex-alunos. Clicando nele abria-se um menu com as diversas opções de turma. Maya fez as contas para saber em que ano Andrew havia se formado, depois abriu a página correspondente, onde encontrou links para diversos eventos passados, uma reunião que ainda estava por vir e, claro, um link para doações à escola.

Na parte inferior da página havia um botão em que se lia: “In memoriam”. Maya clicou nele e deparou com as fotos de dois ex-alunos. Ambos pareciam muito jovens, tão absurdamente jovens quanto os garotos com os quais ela havia servido no Exército. Novamente ela pensou naquelas fronteiras tão tênues, naqueles mundos tão diferentes que existiam lado a lado. O rapaz na foto da direita era Andrew Burkett. Até então Maya nunca havia tido a curiosidade de saber exatamente como ele era. Joe não tinha o hábito de manter fotos da família em casa, e embora houvesse um porta-retratos numa das salas mais recônditas de Farnwood, ela nunca prestara muita atenção nele. Pelo menos naquela foto do site, Andrew não se parecia muito com Joe, que era bem mais bonito. Lembrava mais a mãe. Maya ficou contemplando o rosto jovem como se pudesse encontrar nele alguma pista, como se a qualquer momento o garoto fosse voltar à vida para exigir que a verdade fosse revelada.

Isso não aconteceu.

“Fique tranquilo”, pensou Maya. “Sua morte será vingada também.”

A segunda foto era a de um garoto chamado Theo Mora. Parecia latino, talvez por conta da pele e dos cabelos mais escuros. Estampava o mesmo sorriso forçado de todos os colegiais ao posar para uma foto de escola, os cabelos espichados com gel, uma ou outra mecha brigando para voltar à forma natural. Como Andrew, estava de paletó e gravata, mas ao contrário do Windsor perfeito de Andrew, o nó que ele dera parecia tão frouxo quanto o de um executivo em fim de expediente.

No alto da página se lia: “Partiram demasiado cedo, mas estarão sempre em nosso coração.” Não havia nenhuma informação a respeito dos dois garotos, então Maya pesquisou o nome de Theo Mora. Demorou um tempo, mas acabou encontrando o obituário dele num jornal da Filadélfia. Nenhum artigo. Nada além do obituário. Segundo estava escrito nele, Theo tinha morrido no dia 12 de setembro, mais ou menos seis semanas antes de Andrew cair daquele iate. Estava com 17 anos, a mesma idade de Andrew.

Coincidência?

Maya releu o obituário. Não havia nenhuma informação quanto à causa mortis. Ocorreu-lhe então colocar os dois nomes no campo de busca: Andrew Burkett e Theo Mora. As duas primeiras listagens do resultado eram da Franklin Biddle Academy, a primeira delas com o link “In memoriam” que ela já havia aberto. A segunda era um informativo sobre as atividades esportivas da escola, um jornalzinho chamado Varsity Sports Booster. Ali ela encontrou um arquivo com a formação de todas as equipes, de todos os anos. Maya abriu a página referente ao futebol para o ano em questão.

Andrew e Theo Mora eram companheiros de equipe, quem diria?

Seria apenas uma coincidência que dois companheiros de equipe com a mesma idade tivessem morrido num intervalo inferior a dois meses?

Poderia ser, por que não?

Mas, adicionando a viagem de Claire até a Filadélfia, o fato de que ela havia sido torturada antes de morrer, os pagamentos que a família Burkett fazia a Tom Douglass, o sumiço do detetive...

Não, aquilo não era coincidência nenhuma.

Ela releu os nomes da equipe, entre os quais também estava o de Joe. Àquela altura ele já havia se formado, claro, mas ainda era o capitão do time. Outro morto. Caramba, eram muitas mortes para um time só. Havia ainda uma foto coletiva com as duas fileiras tradicionais, uma em pé e a outra ajoelhada. Todos muito jovens, muito saudáveis, muito orgulhosos de si mesmos. Maya imediatamente localizou Joe, que, claro, estava no centro da equipe. O sorriso de playboy já estava lá, ela constatou, e por alguns segundos não fez mais do que o admirar. Tão lindo, tão seguro de si, tão ciente de que tinha tudo para conquistar o mundo... mas nem de longe imaginando o que lhe reservava o destino para dali a alguns anos.

Na foto coletiva, Andrew aparecia ao lado do irmão, quase literalmente à sombra dele. Theo Mora estava ajoelhado na fileira da frente, o segundo da direita para a esquerda, exibindo o mesmo sorriso forçado de antes. Maya foi correndo os olhos pelos rapazes na esperança de que algum deles lhe pudesse ser familiar. Mas não reconheceu ninguém. Três daqueles garotos estavam no iate naquela noite. Talvez ela já tivesse sido apresentada a pelo menos um deles. Mas não.

Ela voltou sua atenção para a lista de nomes e resolveu imprimi-la. Na manhã seguinte continuaria pesquisando cada um na internet e...

E o quê?

De repente ligar para eles, mandar um e-mail. Perguntar se estavam a bordo do iate, se sabiam algo sobre a morte de Andrew. Ou, o que talvez fosse mais relevante, perguntar se sabiam como Theo Mora havia morrido.

Ela ainda pesquisou alguma coisa online, mas não encontrou nada. Não conseguia afastar a suspeita de que Claire havia feito exatamente a mesma coisa. Não. O mais provável era que ela tivesse descoberto algo com Tom Douglass, algo sobre aquela maldita escola, e depois, fiel à sua mania de sempre falar com o chefe, ido pessoalmente à Franklin Biddle Academy para fazer suas perguntas.

Teria sido por isso que a haviam matado?

Só havia um meio de descobrir. Visitando a escola ela também.