capítulo 34
vinte e cinco anos depois
O ELEVADOR ESTÁ QUASE FECHANDO quando uma mulher me chama pelo nome.
– Shane?
Travo a porta com a mão.
– Olá, Eileen.
Ela entra apressadamente, sorrindo, e me cumprimenta com dois beijinhos no rosto.
– Puxa, quanto tempo...
– Pois é. Muito tempo.
– Você está ótimo, Shane.
– Você também, Eileen.
– Fiquei sabendo que você operou o joelho. Está tudo bem?
Respondo apenas com um gesto de “não foi nada”, e ambos rimos.
Um dia feliz.
– E as crianças, como vão? – pergunto.
– Tudo em paz. Te contei que a Missy está dando aulas em Vassar?
– Sempre foi muito inteligente. Como a mãe.
Eileen pousa a mão no meu braço e a deixa por lá. Ambos continuamos solteiros, embora tenhamos tido uma história lá atrás, num passado já remoto. O assunto morre. Seguimos calados.
A esta altura vocês todos já devem ter visto o vídeo daquela câmera escondida que Maya colocou na cornija lareira de Farnwood (antes falavam de “viralizar” quando algo fazia tanto barulho assim), então vou contar o resto do que sei.
Naquela noite em que me convenceu a vigiar Hector e Isabella, Maya ligou para alguém que trabalhava para Corey Rudzinski, do site Boca no Trombone. Eu nunca soube o nome dessa pessoa. Ninguém nunca chegou a saber. Eles configuraram uma transmissão ao vivo utilizando a câmera escondida. Em suma, o mundo inteiro pôde acompanhar em tempo real os acontecimentos na mansão dos Burketts naquela noite. O site de Corey Rudzinski já era razoavelmente conhecido na época (embora esse tipo de transparência ainda estivesse nos seus primórdios), mas depois daquela noite, tornou-se a grande sensação da internet. Claro, eu tinha lá minhas reservas em razão do material que eles haviam divulgado da nossa missão. No fim das contas, no entanto, Corey soube usar a publicidade proporcionada por Maya naquela noite para fazer muitas coisas boas. Pessoas que antes se sentiam lesadas, mas que não sabiam como se defender ou temiam represálias, de repente se viram encorajadas a comprar suas respectivas brigas. Governos corruptos e empresas espúrias vieram abaixo.
Então esta havia sido justamente a ideia de Maya: expor a verdade para o mundo inteiro ver. O que ninguém esperava era o fim que a história teve.
Um assassinato transmitido ao vivo.
O elevador se abre.
– Primeiro as damas – digo a Eileen.
– Obrigada, Shane.
Enquanto a sigo pelo corredor, ainda mancando em razão do joelho recém-operado, sinto o coração dilatar-se dentro do peito. Confesso que, quanto mais velho, mais propenso eu vou ficando a chorar diante dos bons momentos da vida.
Quando entro no quarto do hospital, a primeira pessoa que vejo é Daniel Walker, hoje um homem de 39 anos com quase dois metros de altura. Trabalha três andares acima como radiologista. Com ele está sua irmã Alexa, de 37 anos, mãe de um menino. É uma designer digital, seja lá o que isso signifique.
Ambos me cumprimentam com abraços e beijos.
Eddie também está presente com sua mulher Selina. Ficara viúvo por dez anos antes de se casar novamente. Selina é uma pessoa maravilhosa, e fico aliviado que Eddie tenha conseguido reencontrar a felicidade depois de Claire. Eddie e eu nos cumprimentamos com um aperto de mão e aquele abraço frouxo típico dos homens.
Em seguida me aproximo do leito em que Lily acalenta sua menininha recém-nascida.
Ca-bum! Meu coração explode no peito.
Não sei dizer se Maya já sabia que ia morrer quando foi para a mansão dos Burketts naquela noite. Deixara sua arma no carro. Segundo alguns, fez isso para que depois os Burketts não pudessem alegar legítima defesa. Talvez. Ela me deixou uma carta, escrita na véspera. Deixou outra para Eddie também, pedindo a ele que cuidasse de Lily caso algo lhe acontecesse, o que ele fez de maneira exemplar. Na carta, Maya dizia que esperava que Daniel e Alexa fossem bons irmãos para sua filha. Pois foram muito mais do que bons. Eu deveria ser o padrinho, e Eileen, a madrinha. Maya queria que permanecêssemos na vida da menina. Eileen e eu realizamos o desejo dela, mas, com os cuidados de Eddie, Daniel, Alexa e, mais tarde, Selina, não creio que Lily tenha precisado muito da gente.
Permaneci presente (e pretendo permanecer para sempre), porque amo Lily com o furor que um homem geralmente reserva apenas para os próprios filhos. Talvez por outro motivo também. Lily é muito parecida com a mãe. Não apenas fisicamente, mas sobretudo na personalidade. Conviver com ela (por favor, não se assustem) é mais ou menos como conviver com a própria Maya. O que talvez seja uma espécie de egoísmo da minha parte, sei lá. Só sei que morro de saudades da minha amiga. Mais de uma vez, ao deixar Lily em casa após um cineminha ou um jogo de beisebol, minha vontade foi a de correr para algum telefone cósmico e ligar para Maya apenas para contar como havia sido meu dia com a filha dela, para dizer que tudo ia bem com a garota.
Bobagem minha, eu sei.
Do seu leito hospitalar, Lily sorri para mim. O mesmo sorriso da mãe, porém mais radiante.
– Vem, Shane. Vem ver minha filhotinha...
Lily não se lembra muito da mãe. O que me deixa arrasado.
– Mandou bem, garota.
As pessoas falam dos crimes de Maya, claro. Ela realmente matou civis. Realmente executou um homem, por mais nobres que fossem os seus motivos. Se tivesse sobrevivido, teria sido presa, quanto a isso não há a menor dúvida. Talvez tenha preferido morrer a ir para a cadeia. Talvez tenha preferido neutralizar os Burketts (antes que eles pudessem infernizar a vida de Lily) a apodrecer aos poucos numa cela de presídio. Sei lá.
Mas ela mesma me disse que nunca se arrependeu do que tinha feito em Al Qa’im. Também não sei o que pensar disso. Aqueles flashbacks horríveis não a deixavam em paz. Quem não sente remorso não é assombrado pelos seus atos, é?
Maya era uma boa pessoa. Não estou nem aí para o que dizem.
Eddie certa vez comentou que a morte meio que fazia parte da vida de Maya, que o fantasma da morte a perseguia. Um jeito estranho de ver as coisas, mas acho que entendo. Depois do que aconteceu no Iraque, Maya não conseguiu esvaziar a cabeça das suas lembranças, das suas vozes internas. A morte permaneceu com ela. Por mais que ela tentasse tocar o barco para a frente, a morte estava sempre lá, cutucando-a no ombro, recusando-se a ir embora. Talvez Maya enxergasse isso. E talvez seu maior desejo fosse o de que o fantasma da morte não perseguisse Lily também.
Ela não deixou uma carta para que Lily lesse em determinada idade, nada disso. Não disse a Eddie como criá-la, tampouco explicou por que o havia escolhido. Sabia que estava fazendo a coisa certa e pronto. Sabia que Eddie seria a melhor escolha. E realmente ele foi. Anos atrás, ele pediu minha opinião sobre qual seriam o melhor momento e a melhor maneira de contar a Lily sobre os pais biológicos. Nenhum de nós fazia a menor ideia. Maya vivia dizendo que filhos não vinham com manual de instruções. Confiou em Eddie, confiou em mim. Sabia que, chegada a hora, faríamos o que fosse melhor para Lily.
A certa altura, quando Lily já tinha idade suficiente para entender, contamos a ela.
Verdades cruéis, decidimos, eram sempre preferíveis a mentiras e fantasias.
Dean Vanech, o marido de Lily, entrou no quarto e beijou a mulher.
– Oi, Shane.
– Parabéns, moleque.
– Valeu.
Dean é militar. Aposto que Maya teria gostado. Sentados lado a lado na cama, o casal feliz lambe sua cria como fazem todos os pais. Olho para Eddie, vejo que ele está emocionado.
– E aí, vovô – digo.
Eddie nem sequer consegue responder. Ele merece este momento. Deu a Lily uma ótima infância, e por isso sou muito grato a ele. Esse pode contar comigo para o que der e vier. Sempre. Daniel e Alexa também. E Lily, claro.
Maya sabia disso.
– Shane?
– Oi, Lily.
– Quer segurar ela um pouquinho?
– Não sei. Sou meio desajeitado.
Lily não costuma aceitar “não” como resposta. Igualzinho à mãe.
– Bobagem. Vem cá.
Aproximo-me da cama e ela me entrega a menina, deitando a cabeça dela com cuidado em meu braço. Fico olhando para a criaturinha com um misto de estupefação e medo.
– Vai se chamar Maya – diz Lily.
Agora sou eu quem não consegue falar.
Maya (a minha Maya, a boa e velha Maya) e eu vimos muita gente morrer. Costumávamos dizer o seguinte: morreu, morto está. Fim de linha. As pessoas morrem e pronto. Mas hoje já não tenho tanta certeza disso. Hoje, sobretudo diante do que tenho nos braços agora, acho que estávamos redondamente enganados.
Porque ela está aqui. Sei que está.