A DOENÇA 

Sinto que tudo em mim começou a contrair uma grave e talvez longa doença. Veio-me um arrepio! Sabem como é?, um frémito agudo e repentino que pareceu rasgar-me de alto a baixo e todo por dentro. Provocou na minha cabeça algo de tão estranho como um estremecimento, uma tontura ou um choque eléctrico. O bastante para que, em menos de um segundo, corpo e espírito se unam contra a ameaça desse inimigo ainda ignorado que se propõe assaltar a minha fortaleza. Não se trata, ao menos por enquanto, de nenhuma certeza segura em mim, mas tão-só de um primeiro sinal de alerta, o qual parece afluir-me de repente ao interior do coração e esfriá-lo com a mesma precisão da água ao ser vertida sobre as brasas da lareira. Aceito-o como um calafrio, um pedido de socorro às minhas defesas orgânicas contra o invasor. Brandos, discretos, inofensivos sintomas. Capto-os com uma atenção em tudo idêntica àquela que me leva a adivinhar o tempo que fará amanhã, depois, na semana seguinte; ou a prever as más notícias da família e dos amigos que chegarão pelo telefone ou pelo correio – assim como pressinto as visitas inoportunas que por força querem saber como estou de saúde, como vou sulcando os mares da idade e da solidão.
A estragar, enfim, as tardes caseiras dos meus dias.
 

A minha doença não passa, pelo menos por enquanto, de uma moinha em baixo, sobre o lado direito, na ansa intestinal descendente. Apalpo-a com os dedos curvados, em pinha, e logo ela se acende num ardor de urtigas assanhadas a inflamarem-me por dentro. Nada de muito ígneo, diga-se por extenso e com verdade; porém, traz consigo a tal punção do fogo ardente e até agora oculto, a avermelhar a parede côncava das tripas. A chispa ateia nelas o princípio de uma chama que parece abrir-se em flor dentro de mim. A minha mão distende-se mais. Ansiosa e apressada, acaricia-a em movimentos inocentes, circulares. Eis a dor que ainda não dói. O lume não crepita nela, não afronta nem queima a ponta alarmada dos meus dedos, de novo fechados em concha sobre o ventre. Mas eu, que espiritualmente me conheço tão bem como à máquina do meu corpo – deste meu amado, cauto e tão absorvente corpo –, sei que uma grave doença acaba de nascer em mim. Não tardará a derramar-se sobre os meus órgãos internos, expostos ao contágio das moléstias e desgraças do mundo exterior. Eu sei que tipo de riscos me ameaçam: conheço bem os meus segredos! 

Vibrará em breve, qual flecha a cravar-se-me na carne, sob a má impressão de uma queimadura, a dor galopante e impiedosa da enfermidade. Primeiro, a chispa de um fósforo a riscar a lixa, a acender a chama, e esta a apagar-se logo de seguida; depois, qual lume na palha ou na erva seca, o fogo a atear-se soprado por uma brisa e a largar fumo; finalmente, a tal dor a rasgar-me por dentro, toda ela em labareda, numa onda incendiária que lavrará na lenta combustão da minha barriga, como se ardesse em campo aberto. 

Também sei que todos os que me rodeiam e comigo convivem tentarão minimizar a gravidade daquilo que só eu sinto. Voltarão a pôr a ridículo os temores, os exageros sem par das minhas queixas. Desprezivelmente, por entre a cumplicidade dos sorrisos de troça, quererão diagnosticar-me uma cólica intestinal provocada pela fermentação dos ácidos, mas sem importância de maior. Esses sabichões acusar-me-ão, uma vez mais, de ter comido às escondidas algo que não devia, seu glutão!, e logo mudarão de assunto, enfadados com a mania triste das minhas doenças. Hão-de mesmo deixar-me para trás, sozinho, calado de mim para comigo mas entregue às preocupações do meu mal – dizem que doentio e imaginário (assim mesmo o designou o trocista Molière). Chamo-lhe «o meu mal» porque, sendo secreto, possui a desdita de não merecer a fé nem o crédito dos que me conhecem, menos ainda os sérios cuidados de quem me vigia e ampara aqui em casa. 

Ora, eu sou eu, eles são eles. Passo por cima das conversas, levanto-me, ponho-me a caminhar por aqui e por ali, num desespero, às cegas, em tropeços e encontrões às coisas que vou encontrando pelo caminho. Fico sozinho e por minha conta, a escutar, a sentir o nascimento, a eclosão da minha doença a partir do seu ovo suspeito e ainda clandestino. Ela, agora sim, oscila para baixo e para cima no meu ventre. Chama a si um primeiro arrepio de febre; depois um ardor, que depressa se expande e propaga em ondas aos órgãos baixos do abdómen. Se eu fosse mulher, diria que o mal me entrou por uma trompa, de onde largou directo a um ovário ou às paredes do útero. Porque as dores, pouco a pouco mas de uma forma consistente, tornam-se concretas e ágeis. Ofídicas, elas movem-se dentro de mim tal como as cobras a arrastarem-se por entre a folhagem traiçoeira dos bosques; ou tal como se abrem as corolas de certas flores à procura da luz do dia, quando difusa e coada pelos ramalhais. Só os incrédulos mais empedernidos persistem em ignorar o meu infortúnio e em recusar-me a sua atenção. 

Costumam rir-se-me na cara, esses alarves, divertindo-se à minha custa. Dizem que basta aludirem à minha palidez e eu de pronto empalideço; e perguntarem-me por que razão acordei hoje com os olhos inchados, vermelhos de sangue, e logo os sinto e vejo assim, inchados, vermelhos, a quererem explodir-me dentro das órbitas. Se me queixo de enxaqueca, de uma dorzinha na base do crânio, de um zumbido a enrolar-se dentro do ouvido, de uma tontura, da tensão arterial, de um baque mais acelerado do pulso ou do coração – põem aquele ar fingidamente tenso, tornam-se máscaras em cena no seu palco, pândegos e insensíveis como fragas de uma pedreira. Então previnem-me de que devo ter cuidado com esses mesmos sintomas: poderão advir-me hemorragias internas, derrames cerebrais que me deixarão tolinho e apalermado, com a boca ao lado, a coxear como um aleijado de nascença ou um mutilado de guerra – dizem eles por entre troças, risos e desdéns. 

Não sou mulher: nada de trompas, nem ovários nem úteros, e daí o tumulto desta mula doente e desinsofrida, aos coices dentro de mim; a afoguear-se cada vez mais, a espumar como um cogumelo mortífero nas minhas tripas, a espirrar em volta o veneno das inflamações e dos vírus contagiosos. O pouco que percebo de anatomia sei-o de um modo apenas mecânico e encadeado, aprendido de cor nas escolas que fui frequentando pela vida fora: boca, faringe, esófago, estômago, intestinos delgado e grosso, recto. De um lado e do outro, os rins, o fígado, o baço, o pâncreas, a vesícula. E outras miudezas de cujos nomes não me lembro agora, nem nunca. 

Faz-se-me luz, de um instante para o outro. Acende-se a chama da clarividência no interior da minha cabeça: 

– Uma inflamação do apêndice! A apendicite aguda, pois claro! 

Sem tirar nem pôr. Qualquer médico elementarmente experiente em diagnósticos, agindo e sintetizando sintomas pelo processo de exclusão sumária, começaria pela hipótese de uma apendicite. Porque aí residia, sem qualquer dúvida, a raiz do meu mal. E ainda bem que o caso se resolve em dois tempos, com recurso a uma breve intervenção cirúrgica, meia hora ou pouco mais no bloco operatório, uma noite e um dia de internamento num hospital público e o resto da convalescença em casa – que é onde mais gosto de embalar e vencer, em duelo e em combate corporal, as minhas inglórias e creio que sensatas doenças. 

O pior é se não se trata do apêndice. Pode sobrevir algo que possua o sortilégio do esconderijo nos negros e profundos mistérios do meu corpo. Verdadeiramente, é isso que me atormenta e me assusta. O grau de crise, a gravidade da vida em jogo. Os maus diagnósticos, os erros crassos. Os desleixos dos clínicos. Os chamados lapsos e outros riscos inerentes à profissão. A irresponsabilidade, a incompetência, os efeitos ditos secundários da anestesia. O coração a ir-se, a não aguentar o movimento de partida que às vezes não encontra o caminho de regresso à vida, sei lá eu! 

Eis a minha dor a crescer, a dilatar-se em espasmos na sua fossa oculta, a morder do lado de dentro, lá bem no fundo da barriga. Amparo-a com as duas mãos, puxando-a para cima, para o meu colo, como quem levanta do chão um bebé inconsolável e o aconchega contra si para que deixe de chorar. Não há ninguém em casa. Todos estão ausentes, nos seus trabalhos, nas suas vidas. Suponho que é preciso agir depressa. Chamar uma ambulância ou tomar um táxi que me leve às urgências. Sei que não devo fazê-lo sozinho. Correm-se riscos escusados e evitáveis na rua. Terei é de telefonar à mana, ao meu cunhado, a um dos meus sobrinhos. Alguém há-de estar por perto, de modo a dar um pulo até aqui e valer-me nesta emergência. Ou então decidir eu atravessar o patamar e ir bater à porta do vizinho da frente, num alarido de pânico, a gritar por socorro. Nada de porteiras. São sempre um atraso de vida: querem, primeiro, deixar tudo fechado à chave, obter uma autorização do administrador do condomínio para se ausentarem do seu posto, e só depois tomam providências quanto a casos de extrema urgência como o meu, agora. Vá lá um homem confiar-se a uma mulher que adora ouvir intrigas para as contar a toda a gente que por ela passa. Espalhou por aí que eu, não obstante ser boa pessoa, sem dúvida um cavalheiro, do melhor que há no prédio – não desfazendo nos presentes, claro! –,
não passo de um maçador, de um maníaco das doenças. Sempre a cismar na morte e na dor, a importunar a família a toda a hora com a invenção das minhas moléstias.
 

– Coitados daqueles que têm de o aturar – diz ela, a víbora mordaz. 

Sim, com efeito, pode não tratar-se de uma apendicite, mas de algo muito pior. Uma úlcera ou um volvo, um pólipo inflamado, uma diverticulite, por exemplo. Já viram em que sarilhos uma pessoa pode ver-se metida assim tão de repente? O meu corpo é uma gruta cheia de mistérios. Tento conhecê-lo o mais possível na sua própria exactidão. Para isso, é necessário aprender a escutá-lo. Escutar o corpo é fazer parte da guarda avançada das suas defesas. Pensemos no funcionamento de uma máquina. Cada uma das suas mil peças cumpre uma função, possui um som e um movimento característicos. A dor física é a melhor prova de uma avaria num dos seus sensíveis e comprovados mecanismos. O contrário disso constitui uma evidência: quando a dor é falsa ou não existe, esse é também um sinal da sua perfeição mecânica. 

O corpo não pode nem deve doer-nos. De outro modo, não cumpre o meio nem a finalidade funcional. O meu parece ter-se avariado. Dói-me. Anda por aí à deriva no mar de uma perdição enigmática. Não posso evitar compará-lo a um barco sinistrado, a um navio em chamas e sem governo sob a acção do vento e das ondas em fúria. Quando a dor ameaça tornar-se explosiva, já eu passei de uma dimensão para a seguinte, mais grave, ainda mais demolidora. Posso não padecer de apendicite nem de úlcera no duodeno, mas quem sabe se de algo ainda muito pior. Porque não um cancro no cólon ou nas vias biliares? Não pode haver nada de mais assustador do que os tumores no pâncreas ou no fígado. Ter consciência disso parece-me mais ou menos comparável ao momento em que despertamos de um sonho mau e verificamos que a realidade é ainda mais negra do que o pior dos pesadelos. 

Já nada em mim se contém. Tenho de apressar-me nas decisões, partir em busca de socorro. Sinto outra vez o tempo a ir-se, o tempo a passar por mim, e eu peado pelas incertezas próprias da angústia. Vem-me ao pensamento a ideia da morte – a minha, não evidentemente a dos outros –, e tudo se alarma e se aflige na solidão de uma casa fechada, onde só eu respiro, penso, possuo sentimentos de compaixão, à beira do meu último suspiro. Não pode ser. Dispara-se uma mola até agora enrolada e presa na minha alma. Os olhos suam, o coração move-se cada vez mais depressa no vazio dos labirintos. Não há tempo a perder. É a hora. Devo zelar pela sobrevivência do meu ser, dar batalha à apendicite, à úlcera duodenal, ao cancro. Seja lá o que for. E fugir de casa para fora, correr mundo, ascender de novo ao alto da montanha dos sonhos que me propus viver até ao fim natural de uma idade a que se chama velhice. Na qual morrer não custa, nem é esta tragédia que parece querer atingir-me agora, tão contra a minha vontade, tão fora do meu tempo de vida. 

Decido-me pelo táxi, dou pressa ao homem, um mal-encarado com focinho de hiena, pois não me sinto nada bem. Vou de borco, meio sentado, meio estendido, no banco de trás. Para que ele acredite em mim e acelere a caminho do hospital. Desço do carro, entro pelo meu pé nas urgências, levo dentro de mim toda a lástima do mundo. Mas há uma multidão à minha frente, na sala de espera para a triagem. Olho-a com o desprezo do ódio e da desconfiança quanto aos males que a trouxeram até ali. Serão febres e acidentes sem gravidade, uma gente que se ampara entre si, com a cabeça pousada no ombro de alguém; namorados que se beijam, febris, também para amarem entre si as mesmas enfermidades sem importância de maior. 

Nada se compara com a solidão da minha pessoa, nem com o segredo da minha dor. Os espasmos, as cobras mordazes, as bicadas das aves carnívoras no meu ventre, os suores que me escaldam, como se todo eu ardesse nas chamas de uma fogueira. Sou um senhor com alguma idade, creio merecer o respeito e a confiança dos serviços públicos. Não posso continuar ali à espera de vez, a ter de me enredar nos ritmos lentos e nos caprichos próprios das multidões acomodadas ao desprezo dos direitos que lhe pertencem. Vou ter de empalidecer até desmaiar e cair desamparado no meio deles, para que se abra uma clareira humana à minha volta e venha lá de dentro uma maca com rodas para me levar à pressa através das portas oscilantes, sem batentes nem fechos, que chiam nas suas molas de compressão. Exijo prioridade de passagem ao serviço de urgência. Onde médicos e enfermeiros acudirão por fim à minha dor. 

Começam por perguntar-me nome e idade, de que doença me queixo, onde me dói, o que se passa de tão anormal comigo para ter vindo à urgência do hospital. Descrevo eruditamente as dores, os sintomas, a manifestação e a dureza do meu sofrimento. Sou o único verdadeiro técnico do meu corpo. Conheço-o melhor do que ninguém. Adianto-lhes diagnósticos sucessivos – humilde, subterrâneo, triste, querendo apenas ajudá-los na sua missão. Apendicite, úlcera gástrica, cancro no cólon, senhor doutor. Nem assim o médico me ouve. Nada o comove. Finge uma indiferença altiva, soberba, algo sacerdotal. Vê-se que para ele muitos dos que ali vêm, antes da hora do jantar e dos serões sentados frente à televisão, não passam de pacientes imaginários, de loucos em combustão. Gente doida de todas as idades, culturas e religiões. Mentes vazias em máquinas entorpecidas, mas não necessariamente avariadas. 

«Mais ou menos como este maluco», pensará ele, enquanto me palpa a barriga com os seus dedos tácteis, primeiro na transversal, a seguir de baixo para cima e de cima para baixo. Cada vez mais céptico, mais desistente. 

É manifesto que não tardará a desinteressar-se da minha doença. Falta-lhe convicção em tudo: nas mãos, nos lábios herméticos, nos olhos parados que não transmitem nenhum sinal de fé aos meus. Com dois dedos brutais, arregala-me as pálpebras como se fosse jogar ao berlinde com o meu olho, decerto para vislumbrar lá dentro a cor e a densidade da minha loucura. Enerva-me a sua sobranceria: aquela boca sem lábios, selada como se possuísse um fecho de correr, os ombros descaídos e rotineiros, o seu bócio de gordo a pender e a oscilar sobre mim – além dos olhos, distraídos, a mirar os meus sem atenção nem protocolo. Olham-me agora sem interesse, do mesmo modo que seguiriam a preguiça dos peixes dentro de um aquário. Odeio o silêncio do seu magistério sobre o meu pobre corpo, os seus dedos de céptico a percorrerem, sem brio nem convicção, a minha barriga dorida, em chamas. 

Vê-se que não acreditou no meu desmaio na sala de espera do serviço de urgências. Não crê na minha dor de facada no ventre, nem na febre húmida da minha testa, nem nestas ânsias que me dão uma estupenda e convicta vontade de vomitar. É óbvio que não me mandará fazer análises ao sangue e à urina, nem uma ecografia para esclarecer o meu caso; nem me internará num serviço hospitalar competente, onde outros, sem dúvida melhores e mais zelosos do que ele, conferirão a dignidade real das minhas queixas. Fervem-me os nervos. O ódio seca-me a boca, a língua. Vou lavrar o protesto do meu desagrado e da minha indignação no livro de reclamações. Exigir inquéritos. Marcar o território sagrado dos meus direitos. 

– Eu sou um cidadão deste país – reclamo aos berros, perante a sua impassibilidade. 

Acrescento que possuo créditos de cidadania e mereço o zelo, os bons cuidados do Estado com a minha saúde. Quem sabe se não tenho um tumor, uma cobra viva, um lacrau, ou seja, se não tenho a morte à espreita dentro de mim! Uma pessoa tem de saber antecipar-se às suas doenças. Mas ele, num rompante inesperado de intolerância para comigo, sopra o ar cansado dos pulmões, volta-me as costas, assina o papel da alta. Sem nada dizer. Irado só por dentro. Os olhos frios. Talvez para me apaziguar os ímpetos, ou cravar-me a sua seta onde mais me possa doer, ainda pousa a mão grossa e cabeluda no meu ombro. Baixa a voz, igualmente fatigada, até ficar a um palmo do meu ouvido. Com o enfado da sua impaciência em relação a mim, às minhas tripas, a todo o género humano enfermo que vem, por excesso de zelo, ao serviço de urgência, faz questão de martelar as sílabas das suas frases de filósofo para dentro da minha orelha: 

– Todos nós, avozinho, trazemos a morte connosco, cá dentro e à espreita. Mas nem por isso é obrigatório morrermos de véspera, não é verdade, avozinho? Ora diga lá à gente: conheceu alguém que tivesse morrido antes de ver chegada a sua hora? 

Danado com ele, senti logo o atropelo de uma ofensa na ironia das suas palavras. Os médicos, uns malandros nossos inimigos, subalternizam-nos em tudo: fazem troça das nossas aflições, nunca querem saber de nós para nada, nem sequer na hora da agonia. Se acaso ainda condescendem em pôr-nos as mãos em cima, é tão-só para fazerem de nós as cobaias das suas experiências clínicas. Um homem deve amar ou detestar as suas doenças na proporção inversa da honra e da razão que reserva ao seu ódio aos médicos. Eles usam e abusam do poder desmedido que exercem sobre nós, sem atenderem aos nossos anseios. Olham, mas não nos vêem. Fingem escutar-nos, porém nunca nos respondem. Vejo em cada um deles um carrasco e um ditador. Se este desdenha da nossa vontade de viver, o outro ama terrivelmente a experiência da nossa morte. Ou vice-versa. Julgue e decida cada um por si, se deve ou não contar ao mundo a infâmia e a tristeza do seu caso de saúde. A minha parte está feita neste livro de reclamações, onde lavrei o protesto da minha consciência cívica. Para que haja quem ponha um pouco de ordem e de agilidade em tudo isto. Ninguém diga de mim que não sou um soldado da pátria e da justiça: um patriota do amor-próprio, sem sombra de dúvida; mas zelador, em igual medida, de um bem comum a que também não há-de ser estranho, imagino eu, um pouco do bem-estar alheio, universal.