O PONTO DE VISTA DO VENCIDO
«Há sempre algo de grandioso na derrota
que não pertence à vitória.»
JORGE LUIS BORGES
A princípio, o mais estranho de tudo foi não entender de onde vinha, nem como ali chegava, nem mesmo a quem era dirigido, o som que se repetia no interior da minha cabeça. Além de longínquo, parecia esbater-se no ar, abafado sob o peso do meu sono e acachapado pelo silêncio da noite. Tão remoto na sua evidência sonora, podia muito bem estar a acontecer do outro lado da cidade, e não dentro de casa. Eu ouvia-o com o pensamento do cérebro adormecido, provavelmente a meio de um sonho – até acordar de vez e concluir que me era mesmo destinado a mim e a mais ninguém. Só então me veio à tona da consciência. Emergindo da fadiga que me prostrara, deixou-me muito alarmado, entre a surpresa e o pavor do que estaria a passar-se ao meu redor, e logo de portas para dentro. Com tudo às escuras no prédio e na rua, não tinha nenhuma noção das horas que seriam. Mas que iríamos em plena madrugada, não restavam dúvidas. Por causa do sossego em volta e do escuro, dentro e fora – e eu tão cansado, tão cheio de sono. Sobressaltavam-me a insistência e a intensidade desse ruído, o qual ressoava pela casa fora como uma trombeta ou um antigo corno de guerra. A primeira ideia que me acudiu à mente foi a de uma tragédia a anunciar-se sobre Lisboa – a qual me incluía a mim, à nossa casa e à minha família na mesma ameaça de perigo.
Já desperto mas ainda estremunhado, concluí pelo óbvio: tratava-se afinal da campainha da porta. Um toque redondo e áspero a ecoar na sua estridência nocturna, em contraste total com o silêncio da casa. Depois o botão começou a ser premido, às duas e às três vezes seguidas, por um dedo vigoroso, cheio de ira, um dedo que me atestava as suas mostras crescentes de impaciência. Sons prolongados alternavam com outros, breves, intermitentes como os do código Morse, num alarde de rancor próprio de quem tocasse um sino a rebate. Tomado pelos nervos, num frenesim que me arrepiava todo por dentro, passei do receio inicial à certeza de que voltava a repetir-se comigo o que já tantas vezes me sucedera: estragarem-me a vida com vigilâncias e perseguições; sujeitarem-me de novo ao que muito bem entendessem fazer de mim.
Sentei-me abruptamente na cama. O coração numa batida louca. A cabeça a latejar, a dilatar-se apenas por dentro. Aquela violência ruidosa feria-me os cinco sentidos, resumindo-os a um único deles: a audição. A noite real, imensa, estava a fragmentar-se lá no alto e a cair sobre mim como o vidro de uma clarabóia que se estilhaçasse por cima da minha cabeça. Persistia ainda o alarido da campainha: uma corda estridente que atroava no prédio inteiro, embora tocasse apenas e só para dentro das nossas quatro paredes.
Saindo do meio dos seus pesadelos, foi a vez de Marília acordar em sobressalto. Pôs-se muito assustada, pois sucumbira também aos cansaços de um dia de trabalho e afundara-se num sono mais pesado do que o meu. Quando acordava a meio da noite de modo menos natural, sobrevinham-lhe uns espasmos nervosos que lembravam convulsões. Num sussurro de voz ensonada, e do mesmo modo aflita, perguntou-me baixinho quem era e o que pretendia de mim – se acaso não se trataria de alguém a ser perseguido, em fuga da Ditadura, a precisar de se esconder durante umas horas na nossa casa, como de vez em quando nos sucedia; ou se, pelo contrário, eram eles, outra vez eles à nossa porta, os malfadados do costume, que aí vinham de novo para me prender e levar consigo. Visto que se pôs a chorar, foi-me inevitável concluir que encontrara a resposta aos seus próprios receios. Agora, a voz retraía-se enquanto ela soluçava, num misto de cólera e de susto inconformado. O coração das mulheres trabalha mais depressa e mais perto da verdade que o dos homens. O dela tinha o dom acrescido de adivinhar, de pressentir à distância os passos da minha perdição.
Procurei o despertador na mesa-de-cabeceira. Na verdade, quem poderia ser senão a polícia política? Àquela hora, ninguém de bom senso andava evadido de porta em porta pelas ruas de Lisboa, nem tocaria com tal insistência à campainha da porta de quem precisava de repousar dormindo na paz da sua cama, com trabalho e deveres para cumprir no dia seguinte. Marília travou-me pelo braço, com os olhos redondos, dilatados pelo terror.
Sempre a chorar, pediu-me que não acendesse as luzes, não me movesse nem levantasse, nem lhes abrisse a porta: o melhor era fingirmos que não estava ninguém em casa, que tínhamos ido ambos para fora. Acabariam por desistir e ir-se embora. Ou arrombassem eles a porta e depois arcassem com o escândalo do barulho a horas tão impróprias, ante a estranheza e a indignação dos vizinhos do lado, dos andares de cima e de baixo. Não íamos ser nós a facilitar-lhes as coisas, pois não?
– Ou pensas que sim? – alarmou-se, ao deparar-se com o pessimismo dos meus olhos vencidos e já desesperados.
A minha resposta consistiu em fazer-lhe uma carícia com as duas mãos no cabelo e no rosto, que agora se desfigurava mais, convulsionado por um novo assomo de pranto. Tentei sorrir-lhe sem dor nem demasiada tristeza e tranquilizá-la, a fim de lhe incutir um pouco de confiança quanto à minha situação; mas saiu-me um sorriso tão triste, tão resignado à sua má sorte, que a fez chorar com mais força e deixar cair a cabeça, abandonando-se aos meus braços. Desfeita por dentro, e de novo por minha causa. A mania que eu tinha de andar sempre a pisar o risco e a incorrer nas temeridades da política! Tinha uma linda cabeça, a minha mulherzinha, redonda e coroada por uns discretos caracóis, negros como a hulha. Ela sabia que eu a adorava tanto por essa beleza como pelos seus receios e cuidados a meu respeito. Inculcara-se-lhe até a convicção de que era ela quem me protegia do mundo e tomava conta de mim, da ingenuidade da minha fé em tudo, e não o inverso dessas e de outras ilusões.
Marília não significava só o amor e o conforto de uma vida, mas sobretudo a fonte de onde manava o fio de água da minha coragem cívica – esse fiozinho bravo, límpido, determinado, que me levara já a suportar duas prisões, e nelas as privações do sono e os longos interrogatórios, por entre delírios e imagens alucinadas. Eram bárbaras as sevícias praticadas por rafeiros assanhados que, apesar de serem polícias, trajavam à civil: as torturas do sono e as tentações dos agentes que representavam o papel ora dos maus, ora dos bonzinhos – que até estavam contra os métodos violentos do poder e da autoridade, e compreendiam que nunca houvera, nem haveria, uma unanimidade opinativa em relação a nenhum regime político, mesmo em Portugal. O mais normal desta vida, no nosso como em qualquer outro país do mundo civilizado – diziam os agentes «bonzinhos» dos interrogatórios –, era que houvesse por aí quem discordasse do governo. E que tal lhe fosse reconhecido como direito à opinião e à dignidade. Que dúvida podia haver quanto a isso?!
A récita malévola, o arrazoado hipócrita dos «bonzinhos».
Ajudei a minha mulher a levantar-se da cama e a vestir o robe de chambre. Fui até à janela para tentar espreitar. Abri-a um pouco, só o necessário para assomar a cabeça ao exterior, e perguntei lá para baixo quem era e o que pretendia de nós àquela hora. Uma voz fria, que falava e tossia, respondeu-me dizendo secamente:
– Polícia!
Foi por instinto que recuei e me escondi atrás das cortinas, no quarto às escuras, como se reagisse a uma ferroada da unha do Diabo. Lá fora, as trevas arremetiam contra as luzes amarelas dos candeeiros públicos. Mas não tardariam a empurrar a madrugada, a dar passagem aos tons incipientes e clareados do dia por nascer. «A hora do lobo», pensei então. Nem noite nem manhã. O silêncio de um prédio inteiro a dormir, numa rua sem trânsito nem gente de passagem por ali; o céu, sob uma ameaça de chuva, a carregar as nuvens para cima das casas. E eu prestes a cair na armadilha e a ser abocanhado pelos lobos.
Eram três, todos de chapéu e gabardina. Uma brigada da polícia política, a tal da defesa do Estado, vinha procurar-me, proceder a uma busca domiciliária mais ou menos sumária, coisa de pouca importância. Não mais do que isso: palavra de honra do agente, um tal Magalhães (assim se anunciou ele) que eu não conhecia e a quem fora confiada a missão de me prender. Daí a nada, dando-se conta da forma desastrosa como me anunciara os seus bons propósitos, emendou o tom de voz e tornou-o grosso, imperativo, como quem não admitisse mais conversas comigo:
– Abra e depressinha, Professor! Não me faça perder mais tempo aqui a esta porta, ao frio!
Quem não conheceria as manhas e as cruéis ironias de um qualquer agente da polícia política, chamasse-se ele Magalhães ou desse por outro apelido qualquer? Não me importavam os nomes, mas sim o timbre daquelas vozes frias, os olhos, as bocas moles ou duras, os modos brutais ou os gestos subtis. Eu sabia que, a partir daí, não haveria nenhum espaço de manobra a meu favor, nem qualquer garantia de respeito pelas pessoas da minha casa. O mal está em deixarmos que nos apanhem desprevenidos na nossa gaiola. Caso não facilitasse a entrada da polícia ou não descesse pelo meu próprio pé ao seu encontro, o agente mandaria erguer uma barreira de olhos para ali ficar de plantão, a espreitar-me desde a esquina, junto à porta ou frente às janelas do edifício. Até que eu me entregasse, faria chantagem emocional com a minha mulher; apertaria cada vez mais o cerco ao prédio e à rua onde morávamos, à qual não podíamos, nem eu nem ela, descer sem que nos rendêssemos à claridade escandalosa do dia e eu voltasse a deixar atrás de mim um rasto feito de segredos, murmúrios suspeitáveis, escárnios e até ódios cegos por parte dos vizinhos que entre dentes me tinham por mais um dos «do contra», um reles «conspirador», um «subversivo político», talvez até um «comunista». Esses eram os termos usados pelo regime contra os opositores. Era bem provável que os vizinhos concordassem com eles acerca da minha pessoa.
Tal como fizera nas duas vezes anteriores, pedi a Marília que me preparasse uma malinha com algumas roupas, os objectos da higiene diária, os meus remédios para a asma, o livro que andava a ler e que de certeza seria de imediato apreendido à entrada da prisão. Recomendei-lhe por fim, falando-lhe quase em segredo ao ouvido, que, mal eles me levassem e desaparecessem comigo na primeira curva, telefonasse a acordar o Colaço, o nosso advogado, a pô-lo ao corrente do sucedido e a pedir-lhe que voltasse a encarregar-se do meu caso. Só então premi o botão de abrir a porta da rua, que soou como um tiro no escuro do prédio. O trinco disparara lá em baixo, no patamar da entrada ao fundo da escada, e acto contínuo bateram passos no interior. Ouvi vozes a maldizer o frio que ia na rua e a pouca sorte de quem tinha uma profissão tão ingrata como aquela, muitas vezes sem direito a um jantar decente com a família, nem a ir para a cama a horas mais ou menos certas, nem a aquecer e consolar o corpo no aconchego de um lar, como as outras pessoas. Decidi retardar a invasão da casa mantendo a minha porta trancada nas duas fechaduras, uma delas vulgar de Lineu, a outra atravessada por uma armação de ferros na parte de dentro, e que eu mandara chapear por um serralheiro. Mantive-a fechada até me recompor mais um pouco do choque causado por essa visita tão indesejada, ainda para mais de noite, e despedir-me a preceito da minha mulher com beijos, abraços e festinhas no cabelo. Pus-me por fim às ordens do Magalhães e da sua brigada, que decerto se especializara em invadir domicílios a desoras, em contravenção aos escritos da lei. Entraram empurrando-se uns aos outros, precavidos como ladrões, amontoados e brutos, aos tropeções em tudo, quando destranquei a porta e me mostrei pronto a acompanhá-los debaixo de armas, sob prisão. Protestei dizendo que aquilo era, uma vez mais, uma prepotência e uma ilegalidade inconcebíveis, próprias das ditaduras e dos seus agentes públicos. Iníquos, estavam a violar os meus direitos de cidadania, a cometer o abuso de uma violação do domicílio, com uma violência sem propósito, sem um mandado de busca assinado por um juiz, nem uma ordem de detenção que me tratasse de acordo com as leis do meu país. Mas o agente limitou-se a levantar um braço entediado, a mandar-me calar como se estivesse a fazer parar o trânsito num cruzamento e a dizer que sabia de cor o arrazoado dos meus queixumes. Vi a sua mãozorra agitar-se no ar, os dedos grossos, inquebráveis, e as unhas quase quadradas, largas como favas. Mas eu era bem homem para ele, se o apanhasse sozinho e à mão de semear. Vi-me, no entanto, obrigado a calar-me. Sem os outros dois ali por perto, seria fácil para mim pôr-lhe as mãos no pescoço e apertar-lhe o gasganete até o ver desmaiar. E fazê-lo com alma. Assim, nem pensar em mexer-me, quanto mais resistir-lhe! Seria o bom e o bonito, uma briga à minha porta ou dentro de casa, comigo a filá-lo pela gola do casaco ou pela garganta e a empurrá-lo para o patamar da escada. Um escândalo perfeito, aos olhos do prédio inteiro. Nem a mim parece razoável imaginá-lo!
Mandou aos seus que fossem pela casa fora, à procura de indícios e provas que me incriminassem na conspiração contra o regime, nas minhas repetidas traições à pátria. Bateu um cigarro contra a unha do polegar, acendeu-o, bufou uma fumaça que me pareceu blasfema àquela hora da noite em que ninguém fuma, nem come, nem bebe, nem vai a lado nenhum. Fumou passeando de lado para lado à nossa frente, com uma pose tão solene que eu diria algo episcopal, até Marília não aguentar mais e grunhir de cólera no seu canto do quarto. Chorou, gritou, chamou-lhes nomes feios, cornudos e filhos desta e daquela que parira uma tal polícia política em Portugal. Magalhães estacou diante da minha mulher com maus olhos, uns modos de pessoa ofendida nos seus brios, e avisou-a, de dedo em riste, que tivesse cuidado com o que vomitava da boquinha para fora; quem dava ordem de prisão a um subversivo político como eu, podia mandar prender também mais um ou dois ou três da mesma laia, os que fossem precisos. E atenção, minha senhora!, não seria para irem ambos em lua-de-mel para o Forte de Caxias, não!
Vi os lábios dela descorarem e franzirem-se de rancor, e lágrimas iradas caírem-lhe dos olhos impotentes, cada vez mais furiosos. Daí a nada, chegaram os dois que tinham estado a passar revista à casa: as mãos cheias de pastas, jornais e papéis numa desordem, os livros e os cadernos de tópicos e com os sumários das minhas aulas. Mandaram-me vestir, e eu vesti-me. Disseram-me para os acompanhar sem objecções nem resistência, e eu acompanhei-os sem objectar nem resistir. Que não me armasse em esperto, e nem tentei armar-me em esperto. Fui escoltado até ao patamar. Com um piscar de olhos e um meio sorriso a disfarçar a mágoa da minha revolta, despedi-me da mulher que me inspirava coragem contra a Ditadura. Ainda a ouvi abafar um grito nas minhas costas, prestes a rebentar de fúria, a insultar de novo os polícias, a bater com a porta para ir espreitar-me da janela, depois a abri-la, a continuar a recomendar-me que não cedesse nem abrisse nunca a boca perante «essa escória do regime». Iria visitar-me nesse mesmo dia na presença do Colaço, o nosso amigo e advogado, e exigiriam a minha libertação imediata. Enquanto descia todos os degraus do terceiro andar para a rua, ouvi-a insistir nas suas recomendações. Mas a voz como que se enrolava já nos meus ouvidos. Tudo o que dizia ia ficando de vez para trás, num virar de página, perdendo pouco a pouco o sentido.
Daí a nada, estávamos na rua, fazia frio, eles empurraram-me para o interior de uma viatura discreta, na aparência normal, ou seja, não oficial, mas já com as duas portas de trás abertas. Atravessei a cidade meio adormecida, levado ao longo do rio, depois pela calma orla do mar, que a essa hora despertava à primeira claridade do dia. Tal como acontecera nas minhas prisões anteriores, enchi os pulmões, aspirei fundo o sal imaginário do ar que se comprimia entre o vulto negro da água e a solidão sem glória da minha mente. Voltava a despedir-me da pequena luz matinal que tanta falta viria a fazer-me na cela, na opressão sem glória do meu espírito, naqueles corredores vazios de Caxias que acolhiam os olhos silenciosos, as dores secretas, os pensamentos vãos dos presos políticos. Onde a culpa passava por inocente e a inocência nunca deixara de ser culpabilizada.
Entrámos os portões do Forte, que se abriram à troca de um santo-e-senha entre o Magalhães e o plantão de serviço. Fui depois empurrado para dentro de uma cela e caí de borco no chão, atordoado, sem energia nem reflexos de defesa. Olhei à minha volta, continuava tudo na mesma: a cama com a mesa-de-cabeceira baixinha ao lado, o travesseiro, a almofada quadrada, a colcha de um padrão militar por cima dos cobertores de lã. A luz franca e amena do dia infiltrava-se já por entre as grades da janela. Tudo, sem tirar nem pôr, à imagem e semelhança das vezes anteriores.
Para me alentar um pouco e, se possível, firmar-me melhor no meu sentimento de coragem, ergui-me do chão e fui ver o deus Sol a raiar lá longe, nisso a que usamos chamar horizonte. Pus um pé na mesinha-de-cabeceira e icei o corpo à altura das grades. E o que vi deixou-me num princípio de êxtase. Um grande e formoso navio branco passava a linha da foz, de luzes acesas na manhã. Livre como a luz que dele irradiava. Era um esplendor vê-lo deslizar rio abaixo, vencer a barra e entrar mar dentro, silencioso e imponente de beleza, com a altivez da elegância e da indiferença. Tive a breve ilusão de avistar cabecinhas humanas no convés, ora em movimento, ora paradas a olhar para mim, como se me desafiassem à liberdade dessa viagem de evasão para o lado contrário do mundo. Caí logo em mim: aquele não era o meu barco, nem o meu sonho, nem o meu próximo destino. Para evitar sofrer, vendo-o afastar-se e ganhar a distância a separá-lo mais e mais de mim, fiz-lhe um aceno de adeus, com a mão do lado de fora das grades, ao qual ninguém correspondeu. Apeei-me do parapeito e fui-me deixando cair sobre a enxerga, onde me deitei de ventre para baixo, com a cara escondida no travesseiro. Pus-me a chorar. Chorei durante algum tempo, até o choro me cansar e eu adormecer sobre a colcha da cama, sobre a solidão da minha vergonha.
*
Os interrogatórios, os castigos corporais e o suplício da privação do sono vieram mais tarde. Eu chegava armado de uma vontade iluminada pelas razões éticas, pelo valor de tudo o que acreditava ser inadiável no meu país; pela vigília inconformada da minha mulher, que em casa, na nossa cama, ou já na rua para ir passar palavra sobre a minha detenção, continuaria a pedir-me que não cedesse em nada, nunca abrisse a boca para lhes confiar a minha verdade, nem mesmo para mentir a esses sicários a soldo de outra gente – e a mando de ninguém.
Durante dois dias, e de acordo com a prática mais corrente em Caxias, deixaram-me ali sozinho, sem nada dizer, sem me mandarem chamar, presumo eu com o intuito de infundir em mim um sentimento de incerteza e de abandono à minha sorte. Foi aí que o tempo parou no interior da minha cabeça. Estagnou, longo e imóvel, recusando-se a vir ao meu encontro. Fora dele, a vida transformava-se num relógio parado na minha solidão, na vigília do meu Horto das Oliveiras, enquanto outros dormiam e o meu suor se convertia em sangue, angústia, tempo suspenso mas não inexistente. Os espíritos duros deixam-se amolecer mais depressa pelo desprezo intencional do que por gritos e ameaças, ou até pela violência física. Seria essa a intenção deles a meu respeito, não me restavam dúvidas. Amolecer-me o ânimo. Diluir, dissolver o plano da minha resistência interior. Desarmar-me, em suma.
Limitavam-se a introduzir um caneco de água e um prato de alumínio com comida através do postigo, que umas mãos esquivas vinham abrir e fechar, por entre o som cavo de uns passos e o tinir de chaves no corredor. A mesma sombra calada enfiava pela abertura a ração seguinte e recolhia a anterior, a bem dizer intacta. Também isso representava em mim um método e uma rotina. Eles sabiam que eu tentaria, como das outras vezes, fazer greve de fome até me autorizarem a visita do meu advogado. Mas na manhã do terceiro dia, irromperam de novo na cela. Apressados, nervosos. Que me barbeasse e vestisse para sair.
– Prepare-se para ir a Lisboa! – dignaram-se informar, sem mais explicações.
Meia hora depois, um carro celular levava-me de volta à cidade. Lá ia eu, por fim, ferreamente guardado por dois agentes armados de pistolas-metralhadoras, a caminho da Rua António Maria Cardoso, onde ficava a sede da polícia política. Até isso estava nítido e inscrito nos meus cálculos quanto aos tratos, usos e costumes da prisão. Não me apanhariam desprevenido quanto àquilo que ali me esperava: os rituais de tortura da mente, a prática de sevícias a que me sujeitariam, a que sempre recorriam ao lidar com os seus presos – as suas vítimas, as suas «ratazanas». Estava conformado com a minha má sorte, disposto a ser também «ratazana» nas mãos que me iriam torturar – mas, para isso, teria de levantar a cabeça perante eles, exibir firmeza nos olhos, nos ombros, em todos os ossinhos e músculos do meu corpo de «rato», o qual não tardaria a ser pisado sob o tacão e a crueldade das suas botas cardadas.
Estavam três senhores engravatados, com uma postura de quem viera para me acusar dos meus delitos de opinião, sentados do lado de lá da sua mesa censória: um deles, o do meio, era grosso como a base invertida de um tronco de araucária cortado pela raiz, os outros dois pareciam uns cepos lisos e delicados. Estes usariam de subtilezas e não de grosserias para comigo, ao contrário do gigante que se acomodara ao centro. Ei-los: eram os mesmos, sem tirar nem pôr, das minhas duas prisões anteriores. Só eu me considerava cada vez mais um «outro», distinto de mim mesmo à medida que se repetiam as experiências da reclusão. Na primeira vez, mal ali cheguei e fui presente àquele triunvirato, o pânico apoderou-se de mim e fez com que me urinasse todo pelas pernas abaixo. De puro medo, de um absoluto terror. Nunca apanhara um sopapo nem uma simples bofetada de ninguém, nem mesmo dos colegas de escola e de liceu, tão-pouco dos meus pais e avós quando era um adolescente com humores sinuosos e risos sarcásticos. Agora, estes iam bater-me e torturar-me até que eu confessasse tudo o que andara a fazer contra o país e o seu governo, e lhes denunciasse os cúmplices das minhas ideias e acções na política. Então chorei de raiva e de vergonha. Não conseguindo disfarçar a incontinência urinária, senti-me um débil, um menino frágil, um miserável, com aquele líquido quente a escorrer-me até aos pés e a alastrar pelo chão fora, o rubor a invadir-me a cara e as orelhas, a ponto de os próprios agentes, com aparente dó de mim e algo embaraçados com a minha infantilidade, tentarem animar-me:
– Vá lá, homem: ninguém vai fazer-lhe mal! Não se enerve tanto, tenha calma, nós somos gente de bem, não o que para aí dizem de nós.
O meu cérebro repetiu, duas, três vezes seguidas, em eco:
«Ninguém vai fazer-lhe mal! Ninguém vai fazer-lhe mal! Ninguém vai fazer-lhe mal, mal, mal…!»
O caso é que eu não passava então de um rapazinho. E não pretendia mais do que testar o meu horizonte de coragem. Mas logo havia de suceder aquilo de eu me urinar todo, de me tremerem tanto as pernas e a voz, de me ter posto a bater o dente como se estivesse despido perante eles, transido de frio e a tremer de medo. Depois, lá me recompus. Endireitei-me, mordi os lábios, fiz-lhes frente. Voltei a ser um homem.
Essa primeira prisão do meu tempo de rapaz não passou, segundo eles, de «um procedimento de rotina». Avisaram-me para ter cuidado comigo: visse bem com quem andava metido e embrulhado, pois iria continuar sob vigilância. Ao segundo dia, após novos avisos e conselhos, mandaram-me preparar a trouxa, e ala para casa. Assim se amansam os resistentes. Assim se quebram as forças dos heróis. Sem os barbarizar. Com modos ternos, paternais. Já na segunda vez, nada foi igual: começaram por não gostar da insolência dos meus olhos e da minha boca. Como medida preventiva dessa altivez de estúpido chapado, trataram de esbofetear-me, à vez e de forma rotativa. Foi assim que me rebentaram os lábios e me puseram a sangrar do nariz. Mas apenas as primeiras bofetadas me doeram. Uma fogueira a arder-me na cara, com uma chiadeira dentro do ouvido maltratado e a cabeça a querer desintegrar-se por dentro, o corpo repassado pelos arrepios do orgulho ferido e da ira reprimida. Vi-me a aguentar, firme e de dentes cerrados, as agressões. Ganhei fama de duro com a força da minha resistência às sevícias seguintes. As palmatoadas, as afogadelas no pescoço, as mãos deles, crispadas e rancorosas, a encherem-se com o meu cabelo. Sacudiram-me a cabeça contra as paredes, largaram puxões nas minhas suíças arrepeladas. Agora, com a experiência que tenho, indo já na terceira prisão, mal seria que não me tivesse posto um homem a sério e a valer, mais duro, mais rijo de têmpera e de persistência contra a comédia e os fingimentos deles.
Teve aí início o nosso diálogo de surdos. Eles a imputarem-me conspirações, umas concretas, outras em abstracto, e eu a encolher os ombros, a cerrar os lábios com força para não responder a nada nem ceder a provocações. Interrogavam-me os três, um após outro. O do meio passava palavra ao da direita e este ao da esquerda, que estava sentado na ponta oposta da mesa. A voz mais rude, que ocupava o centro da mesa, devia pertencer ao chefe. As outras, por enquanto cordatas e pacientes, debitavam frases curtas, todavia muito bem elaboradas na sua gramática, o sujeito, o predicado, os complementos no sítio certo, invocando leis, artigos, parágrafos, e muitas, muitas vezes a palavra pátria por entre os decretos lá deles que eu desconhecia e desprezava. Não sei explicar bem porquê, mas vi logo que, dessa vez, o agente que se sentara à minha direita era quem representava ali o papel mais perigoso e o mais perverso. Possuía uma cabeça e um rosto afiados, com olhos e nariz de ave carnívora. Severos, os lábios uniam-se numa fúria mal contida, a imitar um bico cruel, pronto a mudar de humor, do manso ao histérico, do faminto ao predador, para me debicar como a uma presa. E depois as mãos: não era preciso ser muito experiente em prisões políticas para imaginar que as dele seriam hábeis a beliscar, a bater de uma forma que eu diria científica, no estômago, no fígado, até a manejar o alicate nos casos mais extremos, para dilacerar as unhas ou esmagar os dedos do preso torturado.
Falaram, fingiram, disseram tudo o que lhes veio à cabeça. Cansaram-me a ponto de eu próprio me distrair dos muitos e presumíveis crimes de associação conspirativa, dos documentos de protesto por mim assinados e distribuídos que denunciavam os abusos, a prepotência e as arbitrariedades do regime. Decidiram culpar-me dos piores males do país: ter participado, como activista e conspirador, em reuniões clandestinas contra o governo; andara por aí, como um vadio qualquer, a enfiar por debaixo das portas panfletos nocturnos que incitavam o povo à revolta, à greve contra os patrões e a favor dos sindicalistas detidos por desobediência às ordens das autoridades. Julguei ouvir e entender que me acusavam também de aliciar a juventude a recusar-se a ir para a guerra nas colónias: havia tantos refractários, tantos desertores, tanta gente a trair a pátria e a fugir para França! E sendo eu um sonso e um mal-agradecido, um homem cheio de privilégios e estudos, dera-me ao luxo de cobrir com maledicências e insultos o governo lá deles e o próprio Presidente da República – que designavam religiosamente, inclinando a cabeça numa vénia discreta, por «o mais alto magistrado da nação». Tanto ou tão pouco disseram, que me reconfortou imaginar como tudo isso, um dia, havia de ser verdade, fazer parte de uma paródia, de um riso futuro sobre a minha tragédia do momento. As coisas, situações, pessoas e sistemas sempre tiveram os dias contados. Tal como eu e eles. Sendo assim, devia continuar a resistir-lhes, calado, sem ceder às provações, sem nenhum propósito de passar por herói ou por um obstinado. Limitar-me a dar tempo ao tempo: irritá-los, consumi-los na sua violência impulsiva e depois seguir avante com o meu plano de os deixar no centro escondido dos meus actos e da vida lá fora. Importava-me fazer com que moessem a calma e se enfurecessem contra mim mandando-me dali para o isolamento, para os interrogatórios por turnos, as bofetadas e os murros, a farsa dos agentes bonzinhos que alternavam com figuras broncas, sádicas, horrendas, amiúde bestiais. Enquanto os entretivesse, outros iriam dando os passos que eu perdera mas que voltariam a pertencer-me.
Agora é o agente mais grosso que toma a iniciativa da acusação. Rude. Vai ditando para os autos o que bem quer e entende a meu respeito em matéria de acusação. Alguém bate teclas frenéticas numa máquina de escrever, ali mesmo ao lado: vejo o rosto triste do funcionário, a sua cabecinha espetada no vão da janela aberta de par em par, que dá para uma cabina telefónica ou um confessionário, não maior do que isso, com uma porta logo atrás das suas costas curvadas. Claro que vão mandar que assine no fim, sem ler nem tresler, o que presumo ser o rol dos crimes políticos que me são imputados «em nome do Estado português». Mas é óbvio que não o lerei, nem hei-de assinar nada sem ser na presença do Colaço, o meu advogado. O agente grosso, que detestava advogados e presos teimosos, irá irritar-se com a minha mania de duvidar das suas evidências, e ainda por cima querer defesas e luxos que só existem nos filmes estrangeiros, sabendo eu que, quando acharem oportuno, me nomearão um defensor oficioso junto do Tribunal Plenário, onde se julgam os crimes políticos que tanto tempo fazem perder à nossa polícia, aos magistrados e ao supremo juiz. Fosse ele a mandar e a coisa havia de ser tão clara como a água: uma deportação para a África portuguesa, com trabalhos forçados nas minas de sal ou nas roças de café, lá bem no meio do mato. Para infelicidade sua, ele não tinha tais poderes, não mandava o suficiente. Talvez perca a paciência comigo, talvez se erga da cadeira, dê uma volta lenta à mesa e venha pôr-se de pé, enorme e musculoso, à minha frente; talvez agarre com ira os meus cabelos, como fazia a professora da instrução primária. Ou me aperte o gasganete, para tentar asfixiar-me. Ou talvez me dê um murro em cheio no alto da cabeça, no pescoço, na cana do nariz. Eventualmente, uma joelhada no estômago ou no peito, para me fazer desmaiar. Se assim for, será o primeiro aviso sério à minha integridade física, o início da minha prova de fogo nesta terceira prisão política. Inconsciente, virão outros buscar-me para me levaram ao posto de socorros. Uma vez aí, alguém me lançará um balde de água fria pela cabeça abaixo, o que será talvez suficiente para me acordar. Partirei então de regresso a Caxias sem ver o meu caso nem resolvido nem arquivado, com meia missa rezada e outro tanto, ou mais ainda, por celebrar.
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Acordei cedo, na minha cela às escuras, despertado pelo rangido da porta a abrir-se e a dar passagem a dois carcereiros que me falaram num tom de voz despachado e imperativo. Que me levantasse depressa e me pusesse a andar atrás deles. Pelo meu pé. Não estavam para arcar comigo às costas. E agora é que iam ser elas: veria o que custava ter decidido brincar ao gato e ao rato com os senhores agentes de Lisboa, coitados deles, que tão boa vontade tinham manifestado a meu respeito. Mas eu, um preso ingrato e casmurro como poucos, em lugar de colaborar assinando tudo e ir-me embora para casa, descansadinho, decidira fazer pouco da polícia e armar-me em «herói valente». Uma pena: um senhor tão bem-posto, com tão bom ar, professor a meio de uma carreira tão bonita, sujeitar-se a confessar tudo e mais alguma coisa não de forma espontânea, patriótica, mas só a poder de gritos, enxovalhos e excessos tão escusados – ai, pobre de mim, que pena eles tinham da minha pessoa!
Dar troco a carcereiros! Nem mesmo isso mudara desde a última vez que ali estivera. Haviam-me privado de tudo: das minhas roupas, do relógio, do livro que trouxera, do recreio diário para uma meia hora de sol no pátio da prisão, das visitas de Marília e do advogado. Esperava-me a parte pior do caminho para o meu calvário.
– Agora, sim – disse para comigo, caminhando ao lado deles. – Vais ser um homem entre os homens. Nada de lhes abrires o jogo. Não revelarás nomes, nem factos, nem projectos, nem ideias de conjura. Nada de nada. Nem que te arranquem as unhas ou te dilacerem os dedos com um alicate. Um homem, ouviste?
Tal como nas prisões anteriores, tive de passar portas e corredores daquele mesmo pavilhão, entrar numa sala quadrangular, esperar ali de pé, sozinho, no centro dessa arena de torturas, ser espiado até que viesse alguém dar-me ordens, mandar-me despir da cintura para cima. Expor assim a minha nudez fragilizava-me aos olhos deles. A uma outra ordem, sentar-me-ia num banco como os de cozinha, que têm fraco equilíbrio nas prisões políticas. Foi, sem tirar nem pôr, o que se repetiu.
Chegaram dois dos que haviam estado comigo na sede, o corpulento e o magrinho, e a eles se juntou um terceiro indivíduo que eu não conhecia. Dirigiu-se-me dizendo que se chamava Teixeira, chefe de brigada. Apontou o dedo aos outros dois, para o caso de não os reconhecer, e apresentou-me os agentes Barata (o mais gordo) e Gomes (o fininho). O Magalhães, esse não viera, nem nunca mais apareceu. Nenhum dos outros se dignou erguer para mim um olhar, guardando-se desde já, sem dúvida, para o festim colérico que ia seguir-se. Fingi-me distante e soberbo, para ficar à altura deles, dizendo e repetindo para mim próprio que não lhes daria o ensejo nem o prazer de me toparem assustado como nunca estivera, muito menos de me verem de novo a urinar-me pelas pernas abaixo, nesse transe infeliz da minha estreia na prisão. Ia ser um homem, claro, e provocá-los e desesperá-los com a obstinação do meu silêncio. Não aceitaria como interlocutores uns patifes que se pretendem donos e senhores dos meus actos e das minhas ideias. A infâmia do regime, a ditadura nacional, não era em nada distinta da deles. Eu opunha-me ao sistema em nome da dignidade e do sentido da honra, com a consciência do meu dever de lealdade para com o pobre povo que emigrava para a Europa, embarcava para as três guerras de África e ia à missa aos domingos para escutar a resignação e a ausência de Deus nas suas vidas magras, rezando pela saúde, pelo discernimento e pela felicidade do nosso ditador, pela santa conversão da Rússia, pelo pão com as lágrimas de cada dia.
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De cada vez que cedia ao peso do sono, cerrando as pálpebras para adormecer, uma forte palmada na mesa feria-me o cérebro. O susto provoca-me um sobressalto no coração. Parecia uma mensagem ou uma declaração de loucura, esse enxame de vozes babilónicas a caldear-se com as minhas ideias, como que a anunciar-me as primeiras alucinações. Havia três noites e três dias e meio que não dormia. Estava de pé à frente do homem que me vigiava no turno da tarde; o homem que a todo o instante exigia que me mantivesse acordado, de olhos bem abertos, e que de repente se erguia da cadeira, me prendia pelo sovaco e se punha a andar comigo em volta da mesa, rente às quatro paredes da sala, cada vez mais depressa, até me estafar. Quando parecia que ia cair redondo no chão e desmaiar, ele largava-me uma patada no peito do pé ou calcava-me os dedos já muito pisados pelas suas botas cardadas. Eu uivava de dor. Gemia no meu desespero, chorava como um menino, pedindo e suplicando que acabassem comigo de vez. Não iria ser, com toda a certeza, o homem valente da minha segunda prisão, na qual experimentara, mudo e de dentes cerrados, as mesmas torturas e idênticos tormentos. Sentia-me muito cansado, tão espremido nas últimas forças, que me imaginei a inchar todo por dentro, as tripas, o fígado, os rins, a bexiga. Não tardaria a explodir, a morrer de pé agarrado ao homem que ora corria a meu lado levando-me consigo, ora travava o passo com brusquidão, para que tudo dentro de mim voltasse a contrair-se e me doesse ainda mais do que antes. Tomara eu que o sofrimento se tornasse extremo e insuportável, a ponto de perder a consciência e desligar-me do corpo, o meu pobre corpo exausto, dorido, já resignado à ideia da sua morte. O pior para mim era que persistia a terrível lucidez da mente, mais aguda à medida que aumentava o cansaço e as agressões dobravam, tanto em número como em violência. Cada vez mais perto da consciência da minha dor do que o corpo das suas funções vitais.
A mente. Foi por ela que reconheci os meus gritos. Gritava de fora para dentro. Sofria fora de mim. A voz assemelhava-se a um eco, a um retorno à origem da boca e dos ouvidos. A mente servia-me de espelho ao corpo. Um modo de ver o meu rosto inchado, às manchas roxas, azuis, purpurinas; as feridas abertas que voltavam a esgarçar-se ao redor dos olhos, na cabeça e nas fontes; sangue a escorrer-me do cabelo e a pingar aos pés do homem irado que se desesperava com o meu silêncio de preso teimoso; desse homem que perdeu subitamente a paciência e concebeu a ideia triunfal de cortar o mal pela raiz e matar-me, «como parece que eu pretendia», disse ele. Puxou o braço atrás, fechou o punho, torceu-o em movimento de rosca para me causar ainda maiores danos e veio acertar-me em cheio na boca. Os dentes sofreram um impacto brutal, mantendo-se embora firmes, alinhados dentro das gengivas. Mas os lábios, outra vez cortados, cuspiram e golfaram sangue; a cabeça, a chiar, rodou toda por dentro e a mente girou com ela. O mundo caiu à minha frente e pôs-se de pernas para o ar. Custou-me entendê-lo assim, ao contrário do costume, com o tecto no chão e este por cima de mim, num céu todo forrado de nuvens. Mas deviam ser coisas da mente a desprender-se do seu rochedo: tonturas à mistura com novas e cada vez mais absurdas confusões. E dores. Muitas dores. Sons, palavras e frases a perderem-se do sentido, na turvação da água interior da minha memória, das muitas vidas que eu já tivera antes desta de agora.
Horas depois, foi ainda pior. Vieram os três ao mesmo tempo, segredaram entre si que era impossível eu passar do sexto para o sétimo dia praticamente sem dormir e continuar a não falar, não entrar em delírio, não estar já um louco varrido. Uma coisa assim só muito de quando em quando ali se via, mas com homens de ferro que nada tinham a ver com os meus antecedentes prisionais. Haviam tentado tudo de todas as maneiras: começaram por bater-me com pequenos sacos de areia das praias, toalhas molhadas, instrumentos tão limpos que não deixam marcas no corpo do agredido. Persistiram em impedir-me de dormir, de cada vez que ia para desfalecer de exaustão ou me punha a dizer coisas turvas e desvairadas que ninguém entendia. Mas o médico da prisão, o doutor Toledano, atestara que eu ainda tinha corpo e saúde para resistir aos interrogatórios. Bastava que continuassem a dar-me um copo de água com açúcar, um ovo cozido por dia, caldo de galinha, de vez em quando uma chávena de leite, morno ou frio. Sobretudo, que me concedessem um pouco de tempo de sono, não muito, apenas o suficiente para restaurar a lucidez que me ia faltando com o passar das horas e para me devolver a vontade de colaborar.
Em lugar disso, ofereceram-me pão duro sem mais nada; quando nem era pão com nada, vinha uma açorda, que parecia ter sido vomitada, com feijão-frade e um peixe frito com demasiadas espinhas que me sabia a fénico; uma detestável carne à jardineira, como a que me davam na tropa todas as semanas às segundas-feiras; ou então esparguete à não sei quê com almôndegas banhadas em calda de tomate. A comida, deduzi eu, fazia parte da hospedagem, como instrumento de tortura e não de cortesia. Ajudava a abrir caminho para o fastio, a debilidade, a morte por repúdio e por repugnância de tudo e mais alguma coisa que nos estivesse reservado nos segredos e no abandono do Forte de Caxias.
Ganhara, é certo, o ar alucinado dos que aos poucos se iam passando do juízo. Mas também isso fora calculado e previsto por eles, de acordo com a experiência colhida junto de anteriores presos políticos. Eu via bichos e mais bichos subirem e descerem das paredes: aranhões, lacraus, escorpiões, centopeias, escaravelhos gigantes que mais pareciam um pelotão de fuzilamento a marchar ao meu encontro. Jurava ver no chão, à minha volta, um enxame de abelhas sem asas a vir de carreirinho para me cercar, para me comer vivo. Tive outras visões fantasmagóricas, como isso de entrar um cavalo alado, branco, pela sala dentro, e pôr-se-me a jeito, tendo-se agachado até ficar de joelhos no chão, para que eu o montasse. Logo de seguida, abriu as leves asas, abanou-as, sacudiu-as como que a acamar o ar sob os sovacos, voou comigo dali para fora rompendo o tecto e deixando-os a eles boquiabertos com os meus poderes de evasão.
No extremo do esgotamento, passei a ouvir vozes ali mesmo ao lado, muitas vozes, umas de bebés desesperados que choravam com fome, as outras dos meus pais a pedirem que pelo amor de Deus não me magoassem mais, poupassem-me a vida, e também a recomendarem-me a mim que aprendesse de uma vez por todas a conhecer os meus limites, a saber perder o que não podia ganhar sozinho. Não me ocorreu que ambos já tinham morrido, mas sim que estava à espera deles havia muito tempo, anos e anos a fio, sem que jamais tivessem voltado aos seus pontos de partida. O rosto de minha mãe iluminou-se num sorriso extremoso e triste. Tentei afagá-lo e cobri-lo de beijos, desamparado pelas saudades, com todo o meu amor de seu filho único. Não o alcancei: de cada vez que estendia os braços, o rosto dela parecia deformar-se e fugir do meu contacto. A seguir, ouvi distintamente a voz de Marília, ali tão perto que dir-se-ia dentro da mesma sala mas por detrás de um biombo: aqueles cães estavam a torturá-la, a ela também, à minha querida mulher, porque chorou de raiva, chamou-lhes porcos e bastardos, gritou por mim para que acudisse e a livrasse das suas garras de ursos. Cães e porcos com unhas de ursos, portanto. Mas não sabia que se tratava de uma alucinação. Desvairei: depois de ter passado por tudo isto, ainda sou um cavalheiro, posso muito bem prescindir da vida a favor da minha mulher. Sempre estivera pronto a morrer por ela, em sendo isso preciso. Dei dois passos na direcção do seu pranto, tentei atirar-me em frente para a salvar. Mas um dos agentes puxou-me para trás à bruta pegando-me pela gola da camisa, e pôs-se a ralhar comigo, colérico, de novo muito ofendido. Berrou, berrou, mas não entendi a razão dos seus gritos de ódio contra mim. Limitara-me a tentar socorrer Marília: levar-lhe um sorriso, um pouco de colo como ela tanto gostava, se possível uma toalha turca para lhe limpar o suor e o sangue do rosto. Afinal, ela não era para ali chamada, nada tinha a ver com a minha vida pública; o papel de Marília consistia em amparar e moderar a minha temeridade, em orgulhar-se, um pouco que fosse, da coragem do seu homem contra as prisões e torturas da polícia política, contra as crueldades do país em que vivíamos e garantir-me que esperaria até ao fim pela minha chegada – do mesmo modo que levo anos a esperar pelos meus pais mortos, pelo seu regresso impossível à vida e à casa deles neste mundo.
Os polícias não podiam entender nada do que se estava a passar dentro da minha cabeça. Verem-me agora assim, a sorrir, depois de tudo aquilo por que passara – tanto malho, tantas noites perdidas –, pusera-os em lume contra a minha obstinação. Como se acaso eu os tivesse insultado, caíram-me em cima de novo, atiraram-me ao chão, enraivecidos, os três sentados no meu corpo, sobre as pernas e as ancas muito doridas, chamando-me cão tinhoso, comunista, traidor da pátria, filho de não sei quantas velhas que me haviam parido. Descarregaram mais algumas punhadas nas minhas costas, afogaram-me com as manápulas a apertarem-me o pescoço. Fui-me sentindo ceder, cair, quase a apagar-me. Um deles, por certo mais desvairado que os outros dois, agarrou-me pelos cabelos e bateu com a minha cabeça três vezes seguidas contra o chão. Pontapeou-me no estômago, no peito, nas costelas. Histérico, passado dos miolos, uma criatura bestial. Primeiro, não pode ser descrita a crueza de quem sente a cabeça a chocar contra o cimento. Uma descarga turva a percorrer-nos de alto a baixo, desde a base do pescoço até à ponta dos dedos dos pés. Depois os pontapés à sorte por todo o corpo, e eu já sem reagir à violência nem à dor.
Foi quando algo se partiu cá dentro, não sei o quê, mas decerto os ossos. Compreendi que tinham decidido passar ao assalto final da minha trincheira, feita de água e areia, e por isso sem comparação possível com a fortaleza deles. Também ouviram o som dos meus ossos a quebrarem-se. Deram-se conta do seu excesso, tarde, demasiado tarde. Escutaram os meus gritos de dor a pedir-lhes que por favor, ou por amor de Deus, não me matassem. Ou então que o fizessem de uma vez por todas, com limpeza e por misericórdia. Um fio agudo parecia rasgar-me de cima a baixo, como se me tivessem esquartejado. Impossível resistir, impossível aguentar, impossível continuar a ser um homem! Estava finalmente disposto a falar, a responder a todas as perguntas e a assinar o que eles quisessem: não suportava tanto sofrimento, tanta humilhação, tanta vã crueldade; eu afinal não queria morrer tão cedo, ainda com tão pouca idade, longe da família e do mundo. Não queria, não queria, não queria.
(«Tudo menos morrer às mãos sujas destes facínoras», lembro-me de ter pensado).
Ficaram logo como que extasiados, incrédulos com a sua vitória sobre mim. Se bem haviam escutado, eu estava a implorar-lhes a minha vida. Quando tal acontecia com um detido, isso era música para os seus ouvidos. Sinal de que o preso abdicava das suas contumácias e se considerava vencido. Não haveria melhor ocasião para lhe impor as condições de rendição. Não obstante, ainda me berraram várias vezes ao ouvido a perguntar-me se estava mesmo disposto a «cantar os nomes deles», a dizer-lhes tudo, tudo, tudo, quem eram, onde viviam, o que faziam na vida os que comigo (ou com a minha cumplicidade) conspiravam contra a nossa pátria. Confirmei que sim com a cabeça e depois com uma voz exangue; faria o que fosse preciso para acabar com os meus pesadelos. E ei-los que, por fim, suspiram, felizes, aliviados. Um deles disse entre dentes, deixando cair os braços:
– Até que enfim, estupor danado do Inferno! Cantarás tudo o que gostamos de ouvir.
Como recompensa e troca de serviços, ofereceram-me um cigarro, que recusei porque já nesse tempo eu não fumava. Mas levar-me-iam nesse mesmo dia para o hospital da prisão: um banho bem quente, os lençóis limpinhos e passados a ferro, médicos a assistirem-me, comidinha da melhor, a limpeza e a sutura das minhas feridas para mais tarde reaparecer decente e bem tratado à família, num regresso tranquilo a casa e à minha vidinha de professor. Nunca mais voltariam a incomodar-me nem a fazer-me mal. Assenti de novo com a cabeça, que sim, de olhos fechados, contorcendo-me com dores no estômago, na cabeça, nos ossos partidos, nos músculos despojados da sua capacidade de acção. Estava quase, quase a morrer, e a suspirar por isso, não era verdade? Iria morrer sem glória nem paixão, abatido e aniquilado por quem não se daria sequer ao trabalho de me fazer um funeral. Sem proveito nem exemplo para ninguém. Constava, em segredo, que a única coisa proibida dentro dos muros de Caxias era que os presos morressem às mãos dos seus verdugos: vinham logo as organizações internacionais em defesa dos acusados de delitos políticos e armavam escarcéus contra o regime, contra o bom nome do senhor presidente do conselho de ministros, contra o país empenhado no seu esforço de defesa do Ultramar e até contra a Igreja portuguesa, que se calava e nada via de olhos fechados, a rezar também pela saúde do ditador.
Duas dores insuportáveis, a dos ossos ofendidos e a da minha rendição aos inimigos. Daí a loucura, uma vesânia à solta dentro da minha cabeça. Já não dava conta de quase nada, nem distinguia entre a realidade e a poeira das alucinações. A mente reduzira-se à ideia de uma derrota sem honra. O meu pensamento mal entendia que, daí em diante, iria ser outra pessoa. Sem razão, sem causas, sem palavra, sem amigos. «Roma não paga a traidores.» Ninguém com um pingo de dignidade me receberia de braços abertos, quando fosse de volta ao meu mundo. Não faz parte das regras de etiqueta nem da bondade dos humanos compreender e aceitar os pontos de vista de um vencido. Como a história é sempre escrita pelos vencedores, também a eles, os torturadores, pertenceu arrolar e redigir os factos e as circunstâncias que lhes fui revelando, por entre as dores da tortura e as minhas lágrimas de arrependimento, e que eles repetiam entre si, como se cantassem vitória.
Mandaram que eu dissesse os nomes dos que estavam contra a soberania portuguesa em Angola, Moçambique e na Guiné, e eu disse os nomes; e os de quantos desejavam ou prediziam a morte do senhor presidente do conselho de ministros; e os de quantos lutavam contra a censura prévia à imprensa, a polícia política, o partido nacional único, a falta de eleições livres e justas, a proibição da liberdade de expressão e de pensamento; e os nomes daqueles que eram pelo direito à greve, à educação gratuita, à saúde pública, à segurança social do Estado, ao trabalho, ao sindicalismo e ao amor livre. Uma palavra-ideia, sobre as demais, os desvairava e enraivecia: revolução. Talvez por ser essa a palavra que ameaçava virar os feitiços contra os feiticeiros. Se alguma vez ocorresse uma revolução em Portugal, sairiam à rua multidões sedentas e embriagadas, com os seus gritos de morte ao ditador, aos ministros e apaniguados do governo, a exigirem justiça popular, julgamentos sumários com a participação do povo, quem sabe se fuzilamentos ao romper da aurora, contra uma barreira, um muro, umas moitas mais esconsas, um canavial à beira de um riacho ou de uma grota cheia de pedras soltas e de vegetação. Talvez fossem eles, polícias de defesa do Estado, os primeiros a ser passados pelas armas em nome do povo, da pátria e da liberdade. Mas mesmo essas coisas tão imponderáveis só seriam possíveis por cima dos seus cadáveres. Por isso odiavam tanto a palavra revolução, temendo-a por si e pelas suas vidas, abominando-a, perseguindo-a em defesa de causa própria. Os revolucionários saltavam como coelhos das suas tocas: havia que estar alerta, apontar espingardas, esticar arcos, manter as fundas ou fisgas prontas a disparar.
Voltaram a exigir-me nomes. Queriam saber quem eram, onde moravam, o que faziam na vida os cabecilhas, os inteligentes subversivos da revolução. Iam anotando os nomes com uma espécie de fervor religioso, sem distinguir entre os verdadeiros e os falsos, porque todos eles, saindo da minha boca, passavam a ser uma questão de fé ou uma profecia apenas minha. Nomes e mais nomes destituídos de verdade e de sentido, apelidos inventados e ditos apenas por dizer, e eu a chorar por causa das dores, com o corpo a abrir-se todo por dentro, com fendas a alargarem-se no interior dos órgãos e na pele. Dores de carnes rasgadas, de fissuras abertas nos ossos do crânio e da bacia, dores de cabelos arrancados, dores baixas, médias e altas como labaredas agitadas pelo vento. E transversas, oblíquas e perpendiculares, também. No meio delas, pensava num povo inteiro, o meu inglório povo, vários milhões de portugueses que estariam contra a prisão e a tortura (caso soubessem que ambas existiam no quotidiano do seu país) de um homem que pretendia ser livre, merecer um nome, a sua cidadania, a sua própria sombra a acompanhá-lo à luz do dia.
Também sei que poderão ser esses mesmos milhões a não perdoar a minha fraqueza, com a cedência da minha confissão às mãos dos algozes. Marília, ao sabê-lo, não quererá receber-me de volta quando me soltarem, com vergonha de mim e decidida a requerer o divórcio. Eu, pelo meu lado, estarei na origem de uma nova vaga de prisões, ou de um movimento de fuga para a clandestinidade e o exílio. O mesmo acontecerá aos meus amigos e conhecidos; e aos nossos vizinhos de há tantos anos, a comentar, a escarnecer de mim, por sempre me terem considerado não um fraco nem um medíocre, mas um traidor da luta e das suas causas. Por toda a parte, para onde quer que vá daqui em diante, haverá sempre uma figura deformada a ocupar o perfil e o volume da minha sombra, a sobrepor-se a ela; a confidenciar a toda a gente que eu afinal não prestava para nada, nem era uma pessoa de quem devesse alguém fiar-se. Não fora homem para morrer pelas minhas ideias nem para dar a vida pela minha pátria futura, a da democracia e da liberdade. Não aguentara os espancamentos, os sadismos deles, sempre irónicos e persistentes, nem a privação do sono – e não sou portanto um homem como os demais são homens, com a caução de uma moral social que me permita merecer uma consciência limpa, o amor de alguém, o meu tempo de agora e a minha vida de amanhã em diante.
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Perdi, é óbvio, os amigos mais antigos, que eram os que em mim confiavam. Tornei-me suspeito até perante aqueles que compreendem que uma pessoa não é de ferro, ao ser tão selvaticamente torturada numa prisão. Gente piedosa em relação aos seus mártires beatificados nos altares, porém sem piedade nenhuma dos que eram sujeitos a tratos degradantes e às piores humilhações, nem atender à fraqueza humana dos presos martirizados por aquilo a que chamavam «delito de opinião»!
A história da minha cedência perante os torturadores não tardou a passar de boca em boca, primeiro ainda lá dentro, sendo murmurada de cela para cela, e depois cá fora, à minha saída da prisão. Deu origem a uma conspiração, silenciosa e defensiva, contra mim. Além de me terem por fraco, dizem-me que me converti num vendido, num novo reles mercenário do regime. Isto apesar de ter ficado todo torcido para o resto da vida, com os ossos do tronco mal curados e duas costelas, desalinhadas, que reagem mal ao frio e à humidade. Ainda coxeio um pouco, mas não o suficiente para lhes parecer um heróico aleijado de guerra ou uma vítima das sevícias da ditadura. Pressinto que já não contam comigo para nada, nem mesmo para uma dessas inconfidências conjugais que os homens tanto gostam de confiar em segredo aos amigos e conhecidos. Deixou de ser permitido ou aconselhável darem-se comigo, não vá eu ser de novo preso e incorrer nas tentações dos acordos e arranjos com quem me quis matar em Caxias.
E eis portanto o meu selo interior, esse ferro em brasa que me marcou por dentro, na minha passagem da esperança para a desilusão de cada dia. Se alguma vez viermos a ser um povo e um país livres do ditador e da sua polícia secreta, isso será porventura um grande problema para mim. Podem vir a processar-me por injúria, a acusar-me de ter colaborado com as tiranias da ditadura. Quem sabe se, esteja eu onde estiver, não virá uma multidão cercar-me e prender-me à porta de casa, nos dois extremos da rua onde eu morar, e impor um julgamento popular que me condene de novo a Caxias, ao exílio interno ou externo, a um definitivo desterro. Ou a morrer fuzilado. Nunca se conhece o princípio nem o fim das revoluções. Nem onde mora a essência, nem como e até onde se projectam as suas sombras, quais brasas e labaredas a arder nos corações e no sangue das multidões.
À cautela, Marília adiantou-se às adivinhações imponderáveis da política: pediu-me e obteve o divórcio. Não conseguia viver com um culpado que se deixou deprimir no seu canto, nem com um vencido da ditadura. Disse-mo ela. E não queria vir a ter um filho meu, que depois pudesse sentir vergonha da minha história, se alguém um dia lha fosse contar. Tão-pouco perdoar-me aquilo que, num homem que se preze, nunca terá atenuantes nem perdão. Segundo ela, o amor e a culpa são tão ou mais incompatíveis do que a água e o azeite, a água e o fogo, o aprumo e a roupa suja. Não foram apenas imagens, as dela, mas insinuações baixas e injuriosas, vexames e berreiros que usou contra mim para me reduzir de novo à minha condição de vencido.
Tento ser o mais discreto possível em tudo, agora: não andar nas ruas senão pelo lado das sombras, por causa da luz do Sol; nunca pedir a palavra nem falar mais alto do que os outros; não invocar a minha humanidade em nenhuma circunstância da vida, nem candidatar-me a lugares públicos que me façam subir na escala social e vir a dar nas vistas. Sobretudo, nunca acusar ninguém de traição nem de cobardia. Bebo. O vinho e a cerveja ajudam-me a encontrar o fio entrançado da corda com que toda a gente imaginou vir a enforcar-me, mas só dentro da sua cabeça e no território amado dos seus preconceitos. Passarão anos, virão as novas gerações. Os antigos carrascos contarão com a caridade humana, com o esquecimento misericordioso dos seus crimes por parte dos homens futuros. Esquecer o crime alheio exige mais do que uma simples desistência da memória: impõe o perdão do criminoso. Mesmo sem o ter cometido, não serei esquecido nem perdoado pela imaginação impune dos meus erros. Pondo de parte o remorso, que não existe ou não tem lugar em mim, continuarei a ser um cidadão marcado por um ferro em brasa, um labéu, uma desonra sem nome. As senhoras baixarão os olhos ao passarem por mim na rua. Os homens mudarão de assunto, à pressa, ao ouvirem-me chegar e dar-lhes os bons-dias. E não mais voltarei a ser a mesma pessoa, tanto de mim para comigo como no conceito de toda a gente.
Só eu sei quanto tudo isto é inapropriado em mim. Considero-me o contrário do que pensam do meu carácter. Não vou ao ponto de pôr comigo na conta de um santo sem mácula, muito menos na pele de herói, nada disso. Mas esses que agora se afastam e me evitam nos nossos acasos comuns, e que deixaram desde então de crer em mim, antes de me atirarem a sua pedra deviam comprová-lo primeiro por si. Passar pelos mesmos infernos da tortura e da dor. Resistir aos tormentos infligidos pelos mesmos demónios. Experimentar aquilo de os ossos internos se abrirem e racharem; e de que modo a loucura ameaça invadir e saquear a nossa cabeça. Sentirem como de repente tudo se converte em noite nos nossos olhos, e ainda assim o mundo põe connosco à beira do silêncio e do abismo, à margem de qualquer sonho futuro – onde acabaremos por nos tornar mais pequenos, mais frágeis, agarrados com todas as forças às rochas para não cairmos no vórtice das águas. As quatros patas de uma sombra para uns passos perdidos, e o mar tão louco e tão bravo lá muito em baixo, a bramir.