ESTRANHOS, MAGNÍFICOS PODERES 

Numa destas manhâs, e um tanto contra os meus hábitos de viúvo, despertei cedo, muito antes das sete, mas perfeitamente saciado de sono. Noutros dias, deixava-me ficar na cama embrulhado na roupa quente durante uma hora ou mais, à escuta dos sons que vinham tanto do interior do prédio como da rua, ou a ouvir a minha grandiosa música de Beethoven, a ler um livro e a deliciar-me, de olhos fechados e coração tranquilo, com o calorzinho dos lençóis. Nesses dias, a minha cama era um lugar edénico, de onde só eu lograva expulsar-me para sair de casa, ao encontro do mundo lá de fora. 

Surpreendeu-me, por isso, a energia anímica que me fez erguer de um salto, sem ao menos me espreguiçar por entre grunhidos e bocejos nem aconchegar um pouco mais o corpo ao conforto da roupa (sou dado aos longos serões e nada ao despropósito das inúteis matinadas). Esqueci-me até de contemplar por um instante e de beijar com ternura a foto da minha falecida, o que fazia infalivelmente cada manhã ao acordar, retirando-a da mesinha-de-cabeceira e pondo-me a recordar, com suspiros de amor e uma grande saudade, os olhos, o sorriso, a vida que continuava a impregnar a minha memória dela. 

Sentia-me – não sei dizê-lo de outra maneira – como que ungido de uns estranhos e magníficos poderes. Uma tão insólita onda de optimismo arredou-me da mente e do espírito aquelas sombrias ideias madrugadoras que em vão estragam os nossos pobres dias, com o coração talhado pelo desconforto, pela solidão deste tempo português, tão plano e vazio – tempo sempre igual, batido pelas mesmas rotinas diárias, levado pela inércia de uma falta de sentido para tudo o que nos acontece a nós e à nossa volta. 

Num impulso, cheio de fome e vontade de viver, tratei logo de tudo e mais alguma coisa: uma boa meia hora de ginástica doméstica, para adestrar o corpo e retardar o envelhecimento; o banho diário, quase frio, para estimular os mecanismos internos da minha cabeça; o corte ágil da barba ao espelho de aumentar; a higiene escrupulosa da pele, dos olhos, das orelhas e da boca. Comi uma laranja das maiores, tão grande como uma das mais nobres luas de Verão, e um iogurte natural; mastiguei devagar, conscienciosamente, uma torrada com a côdea tão dura como uma casca de noz, barrando-a com mel e canela; bebi o meu chá quentinho, sem açúcar, de poejo. E fumei o primeiro cigarro do dia – tranquilo, na paz abençoada da minha casa, ainda sem pensar em nada, sem lástimas nem queixas sobre a falta de saúde ou sobre os seus percalços, alheado até da minha condição de viúvo. Em dois tempos, vestido e, como sempre, arranjado a meu gosto, estava pronto para sair. Feliz da vida, sublinho, como há muito não me acontecia. 

Era demasiado cedo para dar início aos procedimentos rotineiros das minhas manhãs na rua. Sendo assim, entretive-me com os arranjos da casa, por aqui e por ali durante mais de uma hora, ouvindo música clássica, escutando o despertar dos vizinhos do lado e como que seguindo com a imaginação os movimentos sonoros, que se produziam por cima da minha cabeça, daqueles que no prédio se erguiam mais tarde do que eu. Conhecia assim os ritos das pessoas nas suas casas, a prepararem-se para doze horas de luz do dia nas ruas, nos empregos, nos passeios ao sol ou sentadas à conversa com outras nos bancos de pedra do único jardim público que existe no meu bairro. 

Quando finalmente saí de casa, estava a manhã aberta por uma luz pendular, já alta, a anunciar tempo primaveril. Lisboa resplandecia sob a curva de um firmamento limpo, que iluminava as cores, o grande estuário do rio, os relevos, a paisagem da cidade. Logo ao fechar a porta da rua atrás de mim, chegou-se uma jovem romena de raça cigana que vendia calendários aos transeuntes, a pedir uma ajuda para comer, dizendo-me estar ainda em jejum. Apesar de o ano ir já quase a meio e de eu estar bem servido de calendários, não tive dúvidas em dar-lhe uma nota de cinco euros por um daqueles de parede, por sinal um tanto garrido e de mau gosto, para afixar na minha cozinha. Mas foi com um raro sentimento de paz interior que a vi depois correr, alegre, incrédula, aos pulinhos, em direcção à pastelaria da esquina, à qual também eu me dirigia para tomar o meu café matinal. Entrando atrás dela, ouvi-a pedir um bolo de arroz e um «galão», o que ingeriu de pé junto ao balcão, contra a vontade de alguns clientes que demonstravam não gostar de romenos nem tolerar ciganos à sua beira. Notava-se que ela, voraz, matava uma fome de séculos, patente naqueles olhos morenos, no rosto não muito limpo e até nos cabelos sem brilho, que a menina prendia na nuca com uma rodela de elástico. 

Atento e embevecido, fiquei a vê-la comer, de olho na avidez da sua fome, à espera que o rapaz me trouxesse um café expresso, uma garrafinha de água mineral e o jornal com as primeiras notícias da manhã. O empregado que habitualmente me servia já me saudava com a jovialidade de quem encontra uma pessoa de família. Sabia como é que eu gostava do café, que jornais lia, qual a minha mesa preferida – que reservava sempre até à hora de eu aparecer. Chamava-se Adérito, natural do Norte, e nunca resistia a meter conversa comigo. Adorava falar do tempo que fazia ou se anunciava lá fora. E recorria muito aos diminutivos. Por exemplo, o frio era sempre o «friozinho»; a garrafa de água, que me encostava às costas da mão para eu dizer se estava ou não demasiado fria, era a «aguinha». Ou seja, cumpria comigo todos os seus rituais de empregado de mesa: um cumprimento discreto, quase afectuoso, duas ou três graças bem-humoradas e breves frases de circunstância, a vénia mútua entre dois cavalheiros que sinceramente se estimam, um sorriso de cumplicidade a concluir e a encerrar os protocolos do quotidiano. Depois afastava-se de mim, afogueado, muito profissional, para ir atender os outros clientes. 

Chegava então a minha vez de me dedicar a mexer o açúcar, vazar a água fria para o copo, estender e abrir o jornal sobre a mesa e logo arregalar os olhos para os trágicos grandes títulos que ocupavam toda a primeira página. Sim, de facto, o mundo estava turvo, perigoso, uma tragédia mal escrita e pior encenada, dia após dia afundado em guerras, terramotos, inundações, acidentes, frases políticas que só anunciavam epidemias e catástrofes económicas. Falava-se de crise, de um ruim tempo de austeridade na economia que ameaçava atrapalhar e descoser as nossas vidas, terçando opiniões como se fossem armas para um duelo. Por muito que isso me impressionasse, uma última evidência havia para me consolar: esse mundo violento e nefasto ficava longe, bem longe da minha porta, acontecendo em regra do outro lado do planeta. Eu não estava obrigado a estragar o dia nem o meu já breve tempo de vida com tantas coisas medonhas que ocorriam fora da minha casa, da minha rua, do país abrigado mas irreal em que eu ainda acreditava. Virava portanto a página do jornal e passava adiante, sem mais. 

Com esse consolo na alma, entreguei-me à leitura das folhas interiores, onde não se falava tão causticamente do mundo como na primeira página. Nelas vinham anúncios estampados, fotos de belas mulheres seminuas, as deliciosas histórias banais da gente televisiva e sobretudo as minhas queridas palavras cruzadas. Faço-as com a maior concentração, ausentando-me por completo das vozes e de tudo o mais que se passa em volta – sorvendo colheres distraídas de café e dando breves goles naquela água pura que dia a dia me hidrata a pele e alimenta a minha saúde física e mental. Não é apenas uma maneira de passar melhor o tempo do princípio da velhice e da minha reforma, não; mas de impor ao mundo o saber da minha cultura geral e o domínio da língua portuguesa na resolução de cada jogo de palavras cruzadas. 

É do fundo dessa ausência, a bem dizer surda às desgraças do mundo exterior, que Adérito, o criado, me chama e volta a chamar, para que eu acorde para a realidade e veja o que se passa na rua, à porta da cafetaria. Não é muita a gente que deseja entrar, vir ao meu encontro e chegar junto da minha mesa: pouco mais do que uma família numerosa. O suficiente, em todo o caso, para que o empregado, exagerando, me fale num atropelo e aluda a uma «multidão». A comandá-la, vem a tal menina de há pouco, a ciganita muito morena, de carrapito, a quem eu dera o dinheiro para o pequeno-almoço a troco do calendário horrendo nas suas figuras hirtas, demasiado ostensivas mesmo até para as cores já de si berrantes de uma cozinha. 

– Querem por força falar com o senhor, veja lá! – insiste Adérito andando à minha volta, numa excitação mal contida e até algo indignada contra a ousadia de uma gente sórdida e inoportuna, da Roménia, que nunca era bem-vinda nem tolerada no seu local de trabalho: a rua. Em volta, as cabeças acenavam de modo afirmativo, apoiando, sublinhando as opiniões de Adérito, só porque tinha sido ele o primeiro a falar e a dizer em voz alta aquilo que os outros pensavam. Sei que os portugueses odeiam alguns estrangeiros, não todos. Mas precisam de alguém que tome a iniciativa de os odiar em voz alta e de olhar depois em volta, a colher o aplauso dos olhos e das bocas que até então se fingem ausentes, distraídas, a pensar apenas nas suas vidas. 

Amontoadas na rua, as pessoas ameaçam forçar a entrada, destruir o café, dar uma carga de pancada no primeiro que tentasse impedi-los de vir à minha presença, falar-me, ouvir-me, tocar-me nem que seja só com o dedo mindinho. Acedo de pronto a ir recebê-los à porta e a conversar com eles sem reservas, mas do lado de fora da pastelaria. Até para não provocar mais iras nem olhares rancorosos aos clientes que não gostam de convívios nem de contactos com ciganos! São pessoas famintas e desvalidas, gente estrangeira e europeia que ainda não obteve casa nem trabalho em Portugal. Virão certamente pedir-me que lhes pague também a eles, como à menina dos calendários, a primeira refeição do dia, para lhes matar a fome. 

«Não seja esse o problema!», pensei. «Dá-se sempre um jeito, apesar da despesa que isso acarreta.» 

Não sou um homem rico, nada disso; vivo honestamente no conforto de uma reforma e da pensão de sobrevivência da minha defunta. Temos de ser uns para os outros, sobretudo se há por aí uma gente tão pobre, cheia de larica logo de manhã, à nossa beira, enquanto tomamos o nosso café e lemos dramas e tragédias nos jornais que vão para o lixo no dia seguinte. 

Dirijo-me então para a porta. A menina de há pouco aponta logo para mim. Pulando e gritando, talvez demasiado excitada para o meu gosto, diz aos seus seguidores: 

– Foi ele! O senhor que me salvou o dia dando-me de comer! 

Ergue-se um imenso clamor à minha volta, algo como um pranto numa língua que me é desconhecida, interrompido de vez em quando por ordem da ciganita, para que possa traduzir o que cada um deles pretende dizer-me ou pedir-me em nome de todos. Surpreende-me que ninguém se queixe da sua fome. Nem do frio das noites. Nem de viver no desamparo das ruas molhadas, dia após dia. Nem de ser objecto de discriminação social e laboral por parte dos portugueses. Ouço-os, compreendo-os, lastimo-os. Que poderá o pobre de mim, viúvo e reformado, fazer por eles? Respondem-me em coro que posso muito bem dizer-lhes uma palavra, uma simples palavra mágica que os anime e os salve dos ultrajes deste mundo e dos desesperos da vida que levam. Tremo imediatamente de pânico, só de pensar que posso não estar à altura do pensamento nem da vontade, nem dos seus secretos ou ousados propósitos. Não sou revolucionário nem profeta. Nunca fui um crente na política. Como pôde ter-lhes passado pela cabeça que eu seja dono de algum poder, de um mistério só meu, de uma condição influente que as pessoas não conheçam? São porventura muito mais loucos do que eu supunha: acreditam em milagres, crêem nos falsos redentores que passam por acaso nas suas vidas e nos profetas demagogos que prometem acudir ao povo e salvar o mundo. Mas ocorre-me de repente dizer-lhes a palavra «revolta». E logo todos eles saltam no ar, irrompendo numa súbita fúria colectiva, de novo tão poderosos como outrora o foram lá nas suas pobres terras distantes, finalmente dignos de si ao cabo de muitos anos de silêncio e de humilhação fora do país onde nasceram. 

Vejo-os a dispersarem-se, partindo cada um ao seu destino, mas a voltarem pouco depois trazendo outros e mais outros consigo. Amparam agora um coxo com uma perna atrofiada: ele estende a mão para me tocar, e é o bastante para que se ponha logo a saltar e a dançar, proclamando que a sua perna pareceu dar um estalido eléctrico lá por dentro, ganhar forma e volume, e tornar-se perfeitamente funcional. A seguir, trazem um cego à minha presença: fito-o nos seus olhos apagados. E eis que ele se espanta de ver de repente o céu tão azul, as árvores carregadas de verde, os pássaros por aqui e por ali, os transportes públicos na paragem ou em movimento, os prédios de todas as formas e cores à sua volta. Vêm a seguir dois drogados com dentes da cor do chumbo e gengivas roxas, os cabelos, os pescoços e as vestes encardidos, míseros e ultrajados na sua condição de humanos. Logo se animam os olhos descrentes desses seres esquecidos do mundo em geral, mas que nesse instante se sentem livres da dependência maldita e da escravidão social. 

O pior é que todos os que vão sendo salvos e redimidos pelos meus estranhos e magníficos poderes deste dia partem a proclamar o milagre, o prodígio da grande metamorfose por mim operada nas suas vidas. Vão buscar outros, sempre outros, muitos e muitos outros. Trazem-nos a trote arrastando-os atrás de si ou empurrando-os como mortos à sua frente, para que nenhum deles deixe de aproveitar a grande e única oportunidade das suas vidas sobre a terra, num tempo que não admite que haja dó nem misericórdia de ninguém na terra dos outros. 

Há até um momento em que o povo toma de assalto toda a rua e corta o trânsito nos dois sentidos. Não consigo avistar daqui tanta e tanta gente, nem mesmo tendo subido primeiro a uma cadeira e depois acima de uma das mesas do café. Sei que tenho agora centenas, milhares, talvez milhões de pobres e de indigentes à minha espera, pela rua acima. Parecem refugiados de guerra a desembarcar à minha frente, vindos de todos os portos do mundo, subindo dos seus lastimáveis barquinhos para terra firme ou descendo do alto da imponência dos navios que vieram largá-los na doca. Pedem-me por fim que suba a uma árvore ou ao alto de uma varanda. Precisam de ver-me, sobretudo de serem vistos por mim. Sem isso, dizem, voltarão todos de novo à condição da miséria, às desgraças sem nome do mundo doente de onde vieram, corridos e rejeitados. Gritam, murmuram coisas impossíveis de acreditar. Há até quem me assegure que há olhos e mais olhos acesos como brasas nos rostos da multidão, olhos de gente saudável que ali veio só para me suplicar a ressurreição dos seus mortos – e que isso lhes fora prontamente concedido por mim, pelos meus poderes. Regressam por fim os perdidos e os ausentes: reaparecem em casa, no seio da família, os maridos e as mulheres infiéis que partiram em busca de amores inventados ou iludidos, e também os filhos desaparecidos nos feios mundos da perdição que desconhecem a via do reencontro e o desejo do regresso ao lar. 

Reconciliam-se muitos dos que nunca na vida tinham sido capazes de em si acolher um sentimento elementar de perdão. Os pobres e os famintos sentem os estômagos finalmente em paz e em aconchego. Os deprimidos, que olham de súbito à sua volta, encontram o meu rosto tranquilo, divino, e sorriem-me com o ar de felicidade dos que se sentem curados dos males infinitos da alma. Os velhos deixam de ser tristes como a mais triste e eterna noite do mundo, de sentir pontadas nas costas, dores nas articulações, tonturas causadas pela coluna cervical. Até os cancerosos se aventuram a crer e a acreditar que dentro de si morreram as cobras venenosas e os vorazes escorpiões da sua doença. Os desempregados sem esperança proclamam-me obreiro do milagre de terem por fim encontrado o trabalho com que sempre haviam sonhado. E os falidos e desesperados dão graças a Deus por lhes ter mandado um divino, um messias terreno, um novo redentor do mundo que os livrará também da vergonha e da desgraça em praça pública, junto dos amigos, em casa, no seio da própria família. 

Existe tanta, tanta felicidade humana à minha volta, que não tarda a armar-se ali um tumulto, uma guerra entre os que me querem como a um profeta e aqueles que se sentem prejudicados com o corte do trânsito, o ajuntamento do povo, o excesso de barulho na tranquilidade habitual do bairro e outras odiosas e mesquinhas disputas lá entre si. Querem todos ver-me, chegar-se a mim, tocar-me nem que seja só com a ponta de uma unha mais afiada ou trocar comigo um breve olhar de súplica e de salvação. No fundo, precisam tanto de crer em mim como de acreditar na sua fé a meu respeito. Não tardam a romper o dique, a quebrar as montras e os vidros do café onde apenas me limitei a vir, como faço todas as manhãs, ler o meu jornal e olhar a cidade que passa por cada um de nós, a pé ou de carro, ao correr da montra e a caminho do trabalho. Ouvem-se sirenes ao longe, e mais perto o assobio estridente dos polícias de giro, seguido das luzinhas de alarme a piscar nos velozes carros azuis do ministério. Não tardam a chegar também os sapadores bombeiros. E a polícia de choque. Alguns dos tumultuários tomam posição nas esquinas. Pretendem erguer uma barricada para impedir as autoridades de virem invadir o meu reduto, de me darem voz de prisão, de me algemarem arrastando-me depois dali para fora, sabe lá uma pessoa para onde – como se de um subversivo ou de um criminoso se tratasse. 

Adérito, o empregado, segreda-me ao ouvido que os polícias vêm não simplesmente para me deter e levar consigo, mas sem dúvida para me matar ali mesmo, à frente de todos, ciganos e outros, decerto com um tiro entre os olhos ou na nuca, desfechado à traição mas como se parecesse um acidente, e assim acabar de uma vez por todas com a minha peçonha. Eu passara num instante à situação de suspeito e de agitador social, diz-me ele; pusera nas mãos imponderáveis do povo não a ordem, nem a religião, nem a moral pública, nem as leis do governo, nem o dogma político do Estado, mas sim a ideia da justiça entre os humanos. Nada havia de mais explosivo no coração popular do que o sonho de um novo ideal para o futuro. 

O melhor, intima-me ele, é eu agachar-me, segui-lo de gatas por entre as pernas das mesas e cadeiras da cafetaria e fugirmos ambos pela porta das traseiras, por onde entram e saem a toda a hora, desde manhã bem cedo, os armazenistas, as mulheres da limpeza e os fornecedores da pastelaria. Depois pede-me que me ponha a correr à sua frente, que fuja para longe dali sem nunca olhar para trás. Segundo ele, existe neste mundo e nesta cidade portuguesa muita inveja, pessoas capazes de toda e qualquer aleivosia neste reino de Deus para me obrigarem a revelar o segredo de tão estranhos e magníficos poderes – nesse único dia de glória e de alegria que nunca mais voltou a cumprir-se comigo, no melhor de mim, a não ser nos pensamentos, na imaginação do bem, nos meus modestos e inocentes sonhos de poeta.