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O menino desenhava uma história em quadrinhos, mas não perdia as vozes da cozinha.

— O difícil na roça é que nunca se acaba de pagar ao patrão.

Quer se corte cana, quer se desça carnaúba, sempre se está pendurado no armazém do dono da terra. O ganho é miúdo, e as necessidades, grandes. Feita a primeira compra de caderneta, sem estender o dinheiro no balcão, o tipo está perdido. Fica escravo, por dívida. Por uma dívida que não diminui nunca.

— Melhor é cuidar do gado. Pelo menos, a gente se torna dono de um bezerrinho em seis ou dez, e os nossos bichos crescem na pastagem do amo e comem de seu farelo.

— Mesmo assim, não se sai da pobreza. Para ser remediado, já não digo rico, é preciso nascer branco.

Quem assim falava era um arrieiro do tio-avô do menino. Claro de pele e de cabelos melados, não tinha pinta de índio ou negro. Mas não nascera branco — e isto o menino começava a compreender, de tanto que ouvia as conversas ao pé do fogão e da capoeira —, porque ser branco dependia pouco da cor da pele: branco era quem usava as mãos dos outros. Uma das babás do menino era filha de portugueses, mas branca era a vizinha de frente, ainda que acafuzada, porque mulher de médico e senhora de muitas terras de massapê. Os brancos não eram todos iguais: havia os grandes, que tinham com eles a força do governo, e os pequenos. Uns e outros, porém, descendiam dos antigos proprietários de escravos. Eram, mesmo se de patrimônio modesto, donos de obediências.

O menino já sabia que nada se tinha por assim tão simples. As palavras mudavam de sentido conforme a ocasião e a boca de que saíam. Aqui, ser branco era não ser pobre. Mais adiante, ser branco era não ter traços fortes de africano ou índio. De um grande, o interventor federal, dizia-se ser negro, nas rodas das calçadas. A um chamavam-lhe cabra; a outro, sarará; àquele, mulato. Sempre em voz baixa e pelas costas.

Pretos de verdade, e retintos, eram um capitão do Exército e sua mulher. Mal chegaram do Rio, um dos melhores clubes mandou-lhes, como fazia com todos os novos oficiais, o convite para que o frequentassem. O coronel e a esposa acompanharam-nos ao primeiro baile e a alguns outros, na tentativa de tornar natural o que aos sócios do clube causava espanto. Depois, com a partida do coronel para o sul, passaram o capitão e sua mulher a sentar-se sem companhia. Dançavam um com o outro, da primeira à última música, ela sempre a sorrir. E, a sorrir, despediam-se, estes e aquelas a acenar-lhes polidamente com a cabeça.

Havia a tia solteira do menino acabado de contar isso, quando alguém na roda beliscou a mãe com o argumento de que cada um devia ficar no seu lugar.

— E não é aquele o lugar dele, um oficial do Exército? — perguntou a mãe, indignada. — Queria ver era fazerem desfeita semelhante ao interventor, em vez de disputarem o seu lado na mesa. Antes de meu marido ficar doente, alguns de nossos melhores amigos eram homens de cor. O dr. Elpídio Boamorte, que foi chefe dele por tantos anos. O dr. Juliano Moreira. O professor Basílio de Magalhães. E o pobre do Hermes Fontes. Aqueles, sim, é que eram gente! No Rio Grande do Sul, a rapaziada clarinha, alguns até ruivos e de olhos azuis, só queria ouvir falar do Cruz e Sousa. O Cruz e Sousa era negro. E o Gonçalves Dias, mulato. Vocês já olharam bem para um retrato do Rui Barbosa? E para o meu marido? Será que ele é algum ariano?

E arrematou:

— Estamos em guerra é com os arianos. Não com os pretos e os pardos, que são dos nossos.