Saíram bem cedo para o aeroporto. O pai, de gravata, com um jaquetão bege dependurado no corpo magro. Era como se seus ombros, com a doença, se tivessem estreitado e descaído ainda mais: as mangas não só cobriam inteiramente os punhos duplos da camisa, mas também a metade das mãos. Um dos tripulantes iria tomar conta dele. Do menino e suas irmãs cuidariam as duas babás.
O menino conhecia, de muito ver, os aviões. Não só os militares brasileiros, pequeninos e curiosamente vermelhos, como para chamar a atenção no voo, mas também os norte-americanos, camuflados com manchas de vários tons de cinza, azul e verde, e alguns enormes, as fortalezas-voadoras. Era a primeira vez, porém, que entrava num aeroplano e o aparelho pareceu-lhe estreito e abafado.
Amarrou-se à cadeira. Trouxeram-lhe dois chumaços de algodão para os ouvidos. E também uma caixinha de chicletes, com o conselho de que os mascasse, tão logo o avião desse partida. O menino sentia um calor de queimar as veias, dentro de um suéter que a avó lhe tricotara. Tinham-lhe dito que fazia frio durante o voo e se quisera prevenido. Por ora, sofria o sol contra o metal da fuselagem.
Um rapaz, em terra, fez girar com a força dos braços a primeira hélice. E, depois, a segunda. Os motores pegaram com estrépito e sacolejo. E o aparelho começou a correr, a escoicear para os lados, como a partir garrafas. Ao soltar-se do solo, o menino lhe acompanhou a subida, olhando, lá embaixo, as praças, ruas e casas a diminuírem de tamanho. A praia e o mar foram-se fazendo em grandes nódoas, até que umas nuvens envolveram o avião e desmancharam o interesse pelo que se via da janela.
À tarde, baixaram no Recife. Era ainda claro de rasgar os olhos. O menino foi para o hotel — sendo a primeira vez que entrava num hotel, estranhou a dezena de portas a se abrirem para o corredor — e caiu logo na cama, com um lenço molhado sobre a testa, para espantar a enxaqueca.
Sonhou com o carneiro que havia deixado para trás, que a mãe mandara vender, como mandara vender todos os móveis da casa. Os soins, o macaco-de-cheiro, o papagaio, os marrecos, a jaçanã que não era jaçanã, os periquitos, os passarinhos e o cachorro tinham sido dados a tios, primos e amigos. Os gatos e os pombos não saíram da casa, ficaram com o inquilino. A sorte de todos era certa, mas não a de Mimoso. Iria ele servir de sela a um outro garoto, que aprenderia a querer-lhe bem? No sonho, o menino lhe via a cabeça cortada, sobre a mesa do açougue. Tinha o focinho seco e a cicatriz das lágrimas a descer dos olhos fechados.
O menino acordou em prantos, cheio de remorsos. Era impossível trazer com ele o bichinho — bem o sabia —, fosse de navio ou de avião, mas o argumento não bastava para apagar nele a saudade e a culpa. A mãe queria que ele viesse a ser um grande homem e, por isso, o levava para o Rio — mas como compensar a ausência do amigo, com a lã que lhe acarinhava as mãos e o rosto, os grandes chifres espiralados, a testa que fingia marrar com a sua testa?
O menino viu do Recife apenas os rios, as pontes e o caminho até a cama. De Salvador, só teria mantido a lembrança das ladeiras, ao chegar na tarde do dia seguinte, não fora a chuva que começara a cair à noitinha. Da janela do hotel — um hotel cheio de cortinas e sofás de veludo escuro —, ele pôde acompanhar o chuvisco voltar-se em aguaceiro. E ainda chovia forte, quando, pela manhã, desceu da jardineira, no aeroporto. Esperaram algum tempo, tripulantes e passageiros, a ver se o tempo abria. Depois, voltaram para o hotel.
Mal estiou um pouco, o gerente sugeriu às amas que levassem as crianças para ver as igrejas. A do Bonfim. A Catedral. A dos Jesuítas. A do Convento de São Francisco. E nesta, ainda mais que nas outras, o menino pensou ter entrado num livro. Em vez da estampa achatada e quase sempre em branco e negro, ele via o espaço aprofundar-se em ouro e azulejos. Do banco que lhe acolheu o pasmo, voltava a cabeça para os púlpitos e os altares, aturdido de sombra e dourado, tonto de voltas, volutas, laços, conchas e ramagens, a enquadrarem anjinhos de bochechas vermelhas como pintadas de ruge, e santos, serenos, extáticos ou trágicos, com grandes panejamentos escarlates, rosados, castanhos, azuis, brancos e verdes. Os arcos, que dentro da igreja conduziam o olhar a outros arcos, enfileiravam-se no claustro coberto de azulejos.
O menino sentiu vontade de rezar a um deus em quem não estava certo se ainda acreditava e que, no fundo de um túnel de intensa luz amarela, se deixava abraçar, misericordioso, pelo mais simples dos santos. Soube, de dentro, que aquela, como as outras igrejas que acabara de visitar, eram as primeiras em que reconhecia o trabalho do homem com as mãos do espírito. Nunca, antes, tinha chegado pertinho de uma obra de arte, visto algo parecido com os poemas que seu pai declamava. Agora sabia o que eram coluna, pilastra, fuste e capitel.
Do lado de fora, ficou olhando como na fachada se alternavam a pedra e a alvenaria, como dançavam calmas as portas verdes de almofadas e as cornijas das janelas, e ondulavam os frontões, e subiam as torres, e repousava o coração. Apagou-se no menino a inveja de outras igrejas, vistas no papel. Ele passara a compreender como era o altar-mor de La Caridad, em Sevilha, e até mesmo a colunata de Bernini, diante de São Pedro. As imagens a que se acostumara nos livros ganhavam, de repente, volume, cor, textura e movimento. O que ainda não podia trazer para o outro lado da rua era o Alhambra, Chartres e um templo grego.
Voltou para o hotel com os olhos cantando. Dormiu sem sonhos. E, na tarde seguinte, desceu no Rio de Janeiro.